Filosofia jurídica

Dworkin deixa inestimável legado para a teoria do Direito

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19 de fevereiro de 2013, 7h32

Ronald Dworkin deixa para trás inestimável legado para a teoria do Direito e para a filosofia jurídica. Dworkin foi autor de várias obras que ficaram consagradas nas gerações presentes e serviram de acervo eterno para as que se seguirão, entre outras, mais conhecidas entre nós e com traduções no vernáculo: Law’s Empire, Taking Rights Seriously, A Matter of Principle, Freedom’s Law-The Moral Reading of the Constitution, Sovereign Virtue e, mais recentemente, Justice for Hedgehogs.

Dworkin era tido por “liberal”, que, como cuidadosamente nos adverte Carlos Henrique Cardim, na apresentação à versão traduzida da obra “O Liberalismo Político” (Rawls, J., 1993) mais se assemelha aquilo que nós e os europeus definimos como “social-democracia”. Não se confundindo, por diametralmente oposto, com o “liberal” em terrae brasilis.

O trabalho desenvolvido por Dworkin ao longo dos anos perpassou as relações entre o caráter principiológico abstrato moral de conceitos como “liberdade de expressão”, “devido processo legal” e “igualdade” e a limitação aos poderes do Estado. Dworkin esteve entre os primeiros a alertar a sociedade americana quanto aos perigos impostos por ocasião do regime de quasi-exceção que a era Bush pretendeu imprimir com a edição do famigerado “USA Patriot Act, de Novembro 2001”, com um importante artigo publicado pelo New York Times, intitulado “A Ameaça ao Patriotismo” (A Threat to Patriotism).

Dworkin foi assessor do juiz Learned Hand, do Tribunal Federal de Recursos em Nova Iorque, de quem foi ao mesmo tempo amigo e crítico, sobretudo quando Learned Hand opôs-se frontalmente à célebre decisão Brown vs. Board of Education, que tratou do acesso de negros ao então segregador sistema de ensino público norte-americano.

Mais tarde, Dworkin teve a oportunidade de ser assessor do Ministro Felix Frankfurter, na Suprema Corte americana, mas fez a opção pela advocacia em Nova Iorque, fato este que mais tarde lamentou como um dos grandes erros de sua vida.

Dworkin sucedeu H.L.A. Hart na cadeira de “Jurisprudence” da Universidade de Oxford, com quem travou debate acadêmico ao longo de muitos anos contra sua teoria positivista. Em 1977, antecedendo a obra que publicou no mesmo ano “Taking Rights Seriously” — em que se tornou célebre sua distinção teórica de normas em regras, princípios e diretrizes (policies) —, Dworkin organizou uma coletânea de artigos de eméritos jusfilósofos, entre eles John Rawls, Tim Scanlon e o próprio Herbert Hart, intitulada “Philosophy of Law”, cujo tema central era precisamente o confronto com o positivismo jurídico:

“Eu desejo [aqui] fazer um ataque geral ao positivismo, e devo utilizar a versão de H.L.A. Hart como alvo, sempre que um particular alvo for necessário. Minha estratégia será organizada em torno do fato de que quando juristas racionalizam ou disputam direitos e obrigações legais, particularmente nos casos difíceis, quando as questões com estes conceitos aparentemente se agravam, eles lançam mão de referenciais que não funcionam como regras, mas operam de maneira diferente, como princípios, diretrizes e outros tipos de referenciais.”[1]

Na verdade, já nesta obra, Dworkin — e, portanto, ainda antes de outros livros que se tornaram mais conhecidos entre nós — apresenta e define sua concepção teórica distintiva, explicando que toma a expressão “diretriz” (policy) por um

“tipo de referencial que estabelece objetivos a serem alcançados, geralmente uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (apesar de que alguns objetivos são negativos, na medida em que estipulam um provimento atual que deve ser protegido contra mudanças adversas). Eu chamo de princípio um referencial a ser observado, não porque irá assegurar ou avançar uma situação econômica, política ou social tida por desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade[2], ou alguma outra dimensão da moralidade”[3].

Mais adiante, Dworkin, em seu argumento em favor da inexorável relação entre Direito e Moralidade, continuou a aperfeiçoar as noções de regras e princípios como tipos de normas, conceituação esta que, juntamente com as teorias de Robert Alexy, foram de enorme importância para o desenvolvimento da nossa Teoria Constitucional.

Para muitos, as proposições de Dworkin apontavam para uma terceira via, entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. E, na jusfilosofia, entre o realismo jurídico e o construtivismo. Embora não tenha qualquer importância pretender rotular seu trabalho, é certo que Dworkin rejeitava a concepção jusnaturalista de que normas imanentes à natureza humana são pervasivas ao Direito e devem fazer parte de sua constituição, mas, ao mesmo tempo, rejeitando as proposições positivistas, afirmava que o Direito é um fenômeno social e, portanto, tem natureza argumentativa[4]. Assim, o que o direito é ou deixa de ser depende em grande parte da veracidade de algumas proposições que somente adquirem sentido no contexto da prática jurídica levada a cabo pelos operadores do Direito, em termos de justificação argumentativa, e não em termos exaustivos de sanção, validade ou subsunção, conforme proposto por pensadores como Austin, Kelsen e Hart.

Igualmente importante foi a contribuição de Dworkin em seu cotejamento com as demais teorias da decisão judicial, para o que lançou mão da invenção das conhecidas figuras metafóricas da “novela em capítulos” (chain novel) e do “juiz Hércules”[5], um hipotético modelo ideal de julgador onisciente e dotado de capacidades intelectuais e paciência sobre-humanas e que, deparado com um caso difícil (hard case), consegue atingir a decisão mais correta, justa e adequada ao caso, a partir de sua capacidade de haurir da comunidade política seus princípios jurídicos vigentes, o produto da argumentação jurídica proveniente do labor dos operadores do Direito e os elementos de coerência necessários. Mais tarde, em Law’s Empire, é também neste diapasão que Dworkin percebe uma natural relação de similitude entre o Direito e as Artes Literárias, a que fez referência Arnaldo de Sampaio Godoy, em recente artigo publicado neste prestigidado meio[6], poucos dias antes de seu falecimento.

Ao tratar do “direito como integridade”, Dworkin aponta para dois princípios fundamentais: um legislativo, no qual os legisladores inclinam-se a tornar o conjunto total do ordenamento jurídico como um conjunto de leis moralmente coerentes, e um princípio judicial, em que o Direito seja lido, pelos julgadores, de forma a mais coerente possível[7]. Dworkin se utiliza da simbologia da “novela em capítulos” (chain novel), na qual um grupo de novelistas se reúne para redigir uma novela, cada um responsável por escrever um capítulo. Todavia, cada escritor subsequente deve escrever seu capítulo intepretando o capítulo anterior e com o fito de produzir o melhor resultado final possível, desenvolvendo o trabalho já acumulado, de tal forma que cada um, também, ao fazê-lo, de maior ou menor forma, influi na progressão geral da novela.

Assim como na novela, os juízes são, para o Direito, igualmente autores, e em respeito à hierarquia forense e ao precedente judicial, os juízes não podem escrever “capítulos” isolados do Direito em suas decisões, mas, antes, devem levar em consideração o que já foi produzido até então, de forma a produzir um todo coerente, dando continuidade ao fluxo interpretativo proveniente dos precedentes, passando por sua interpretação, e servindo, esta, para as interpretações futuras[8]. Eis a cadeia de eventos do Common Law. Claro que, para cada juiz, o que representa a melhor história final é um conceito que inevitavelmente emanará do campo da moralidade política.

O interesse geral da comunidade jurídica pela prática institucional pretérita, no particular em relação às decisões judiciais, tem a grande valia de permitir a revelação do substrato moral albergado pela comunidade política no processo argumentativo de tomada de decisão, o que permite que os ideais perseguidos abstratamente, tais como liberdade, igualdade e dignidade, preciosos para todos, possam receber o influxo constante de argumentos renovados e reavaliados em sua dimensão discursiva.

O vasto trabalho intelectual produzido por Ronald Dworkin, de inestimável valor, entrou para a história do Direito. E, como ele mesmo afirmou, “se conseguimos viver bem uma vida digna, criamos algo mais (…) tornamos nossas vidas em pequenos diamantes na poeira do cosmos”[9].


[1]Is Law a System of Rules?” in DWORKIN, R.M. (ed.). The Philosophy of Law. New York: Oxford University Press, 1977, p. 43 . Trad. livre (preferiu-se, aqui, traduzir a expressão “standards” por “referenciais” por possivelmente transmitir de forma mais adequada a conotação do termo)

[2] Utilizamos aqui a mesma tradução do termo fairness acolhida por muitos (e.g., na tradução da obra de John Rawls, “Justice as Fairness”, como “Justiça como Equidade”), embora termos deste jaez e complexa carga conceitual sejam de difícil translado, com perfeição, de uma língua para outra.

[3] Id., Ibid., p. 43

[4] Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p.12

[5] Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 105 e segs.

[6] Direito e Interpretação jurídica em Ronald Dworkin. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-fev-10/embargos-culturais-direito-interpretacao-juridica-ronald-dworkin>. Acesso em 16.2.2013. Veja-se também o ótimo texto de Francisco José Borges Motta, também publicado na ConJur, em generosa homenagem ao jusfilósofo; disponível em http://www.conjur.com.br/2013-fev-16/diario-classe-ronald-dworkin-sentido-vida>. Acesso em 18.2.2013

[7] Law’s Empire, p. 176

[8] Ibid, p. 228 e segs.

[9] Jornal The New York Times, 14.2.2013

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