Ideias do Milênio

A internet virou a mais importante máquina de espionagem

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15 de fevereiro de 2013, 7h00

Entrevista concedida pelo ciberativista Julian Assange, à jornalista Elizabeth Carvalho, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

Wikimedia Commons
Neva sobre Londres e o táxi que leva ao encontro do ciberativista Julian Assange se desloca devagar. Quando ele entrou no espaço modesto que a embaixada do Equador ocupa em Knightsbridge como asilado político, era verão e fazia calor. Sete meses se passaram, e, como em julho de 2012, chova ou faça sol, a Scotland Yard mantém o prédio cercado e o fareja 24 horas por dia. Os policiais em vigilância ostensiva partilham a rua com ativistas que se revezam pedindo liberdade para o homem chave do WikiLeaks, a maior fonte de vazamento na internet de documentos secretos de governos poderosos. Tornaram-se públicos o manual de procedimento do exército americano com os prisioneiros de Guantánamo, o relatório sobre o massacre de civis no Iraque e centenas de telegramas trocados entre o governo dos EUA e suas 274 embaixadas — inclusive sobre espionagem contra aliados nas Nações Unidas. No dia da entrevista, em uma gelada tarde londrina, os defensores internacionais de Assange na frente do prédio são apenas três: uma chilena, um irlandês e um italiano. Eles trazem cópias de um manifesto de feministas suecas que lutam contra o estupro e denuncia como farsa o processo que Assange deveria responder na Suécia por este crime — um crime que ele nega ter cometido. O medo de Julian Assange é o de ser extraditado para os EUA, onde foi aberta uma investigação criminal que pode levá-lo a uma viagem sem volta pelas prisões americanas — e onde ele também vem sendo ameaçado de morte. Confinado na embaixada, Julian Assange fala agora por meio de um livro: “Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet”, lançado no Brasil pela editora Boitempo. Um livro, que como afirma em sua primeira frase de introdução, não é um manifesto. É um aviso. Este aviso é o tema central da cronometrada entrevista.

Elizabeth Carvalho — Para começar, podemos dizer que este livro é uma maneira de ir em frente, além do seu confinamento, de espalhar suas ideias. Mas aqui não há apenas as suas ideias. Há as ideias de um grupo internacional que tem trabalhado há bastante tempo no que você chama de “nova arquitetura para a internet”. Eu vou apresentá-los, pois acho importante. São eles: Jacob Appelbaum, de São Francisco, o alemão Andy Müller-Maguhn, cofundador do Chaos Computer Club, em Berlim, a maior associação de hackers da Europa…
Julian Assange — Do mundo.

Elizabeth Carvalho — E Jéremie Zimmermann, fundador de La Quadrature du Net, que teve um papel muito importante ao combater o ACTA [Anti-Counterfeiting Trade Agreement, tratado internacional, ainda em negociação, sobre marcas, patentes e direitos autorais e de combate à pirataria).
Julian Assange — Ela provavelmente é a organização política da internet mais importante da Europa.

Elizabeth Carvalho — Então, como e há quanto tempo vocês trabalham juntos?
Julian Assange — É importante entender que não é uma questão que diz respeito apenas à internet. Essas ideias têm sido desenvolvidas há mais de 20 anos e dizem respeito à integração entre a sociedade como um todo e a internet. Isso está acontecendo agora. Portanto, nossas comunicações pessoais, as comunicações entre departamentos dos governos, entre pessoas do mesmo departamento e entre Estados acontecem na internet. A internet penetrou completamente no que antes chamaríamos de “sociedades do primeiro e segundo mundos” e tem uma penetração considerável nos aparatos estatais e empresariais, até mesmo de países em desenvolvimento muito pobres. Então, este livro não é sobre a internet, é um livro sobre a civilização moderna. A civilização moderna e a internet não estão separadas. Pensando em um tempo atrás, vemos que algumas tendências descritas neste livro — como a interação entre a tecnologia, a democratização da tecnologia e o poder dos Estados — foram identificadas por George Orwell. Outro dia mesmo, eu li um artigo publicado no Tribune em 19 de outubro de 1945 no qual Orwell…

Elizabeth Carvalho — Você cita Orwell no seu livro.
Julian Assange — Embora eu não conhecesse o artigo quando escrevi o livro, é fascinante ver que, em 1945, Orwell assistia à democratização das armas. Na opinião dele, a história da civilização é a história das armas, fossem elas armas como o rifle Flintlock, que podem ser usadas por pequenos grupos de pessoas e por indivíduos, ou armas nucleares, que eram a grande preocupação daquela época e que, por natureza, só podem ser produzidas por grandes Estados. Nesta batalha entre a tecnologia disponível apenas para um aparato estatal muito centralizado, talvez apenas para duas ou três superpotências, e a tecnologia disponível para a maioria dos indivíduos e para grupos menores, nós vemos o que acontecia naquele ambiente pós-guerra e que durou pelo menos até 10 anos atrás: a divisão do mundo em três grandes grupos de força. O interessante agora é que há uma nova batalha tecnológica, uma nova corrida armamentista, travada, por um lado, pelos grandes sistemas de vigilância, disponíveis para grupos capazes de interceptar fluxos de telecomunicações entre continentes inteiros.

Elizabeth Carvalho — Você diria que Aaron Swartz, que se suicidou em janeiro, fazia parte desse grupo?
Julian Assange — Ele era mais do que parte daquele grupo. Era alguém que ajudava o WikiLeaks ativamente. O motivo pelo qual prenderam Swartz em janeiro de 2011 foi parte de um fervor neomacartista após o Cablegate promovido pelo WikiLeaks. Não sei se os telespectadores se lembram disso, mas os vazamentos do Cablegate começaram em 29 de novembro de 2010 e os EUA e seus aliados no Ocidente ficaram totalmente obcecados com isso. Políticos estrangeiros queriam que eu fosse assassinado. Joseph Biden, vice-presidente dos EUA, me classificou de “terrorista high-tech”. Foi apresentado ao Congresso e ao Senado um projeto de lei que nos declarava combatentes inimigos, de modo que não precisavam seguir a lei ao nos perseguir, como fazem com a Al-Qaeda. Swartz foi detido dia 4 de janeiro e tivemos muito apoio na região de Boston, pois ele é de lá. A acusação contra ele foi parte dessa histeria causada pelo WikiLeaks e Swartz era meu amigo. Então, aquele processo totalmente absurdo contra ele e sua desproporcionalidade são resultado do desejo do governo americano de tentar se mostrar implacável contra ativistas da internet. O governo Obama abriu mais que o dobro de processos com base na segurança nacional do que todos os governos anteriores juntos.

Elizabeth Carvalho — Estamos falando de um poder que está acima do poder. Está acima dos Estados. Eu gostaria de citá-lo: “O mundo avança a passos largos para uma nova distopia transnacional sob a dominação da indústria da vigilância de massas”, a qual tomou forma, digamos, nos últimos 20, 30 anos. Descreva como é essa distopia e se é possível dizer que a internet se tornou o maior banco de informações pessoais da humanidade.
Julian Assange — A internet se tornou a mais importante máquina de espionagem jamais inventada. Ela coloca a penetração da Stasi, na Alemanha Oriental, junto à população alemã no chinelo. Hoje temos uma situação em que indivíduos, empresas e governos do mundo todo colocam informações detalhadas sobre a própria vida e suas transações em serviços centrais e através de linhas de telecomunicações, que podem ser interceptadas ou se tornam disponíveis, principalmente, para a inteligência dos EUA. Há alguns outros atores envolvidos nisso, como a inteligência russa, mas com uma atuação limitada, ou as inteligências britânica e francesa. Em nível nacional, há comercialização do equipamento usado para isso, de modo que a Líbia, por exemplo, tinha todo um sistema de vigilância nacional fornecido pela empresa francesa Amesys. Na América Latina podemos ver que praticamente todas as comunicações com a Europa e com o Leste Asiático, passam e são interceptadas pelos EUA. Até mesmo as comunicações entre os países latino-americanos, muitas vezes, passam pelo EUA e voltam.

Elizabeth Carvalho — Você poderia dar um exemplo…
Julian Assange — A Agência Nacional de Segurança, que é a principal agência de espionagem eletrônica dos EUA, admitiu para o Congresso que intercepta 1,6 bilhão de comunicações por dia. Há sete bilhões de pessoas no planeta.

Elizabeth Carvalho — Explique a diferença entre o que podemos chamar de vigilância patrocinada pelo Estado, por países autoritários ou não, e a vigilância privada, principalmente a coleta privada de dados. Podemos fazer uma distinção?
Julian Assange — O interessante é que, na verdade, não. E é isso que é tão fascinante. O que acontece hoje é que os provedores de internet levaram uma sacudida do governo, então passaram a se ver como parte do sistema. O mesmo acontece com o Facebook e o Google. Eles não se veem como empresas desligadas do governo americano, eles se veem como parte do sistema.

Elizabeth Carvalho — O Facebook também?
Julian Assange — Sim.

Elizabeth Carvalho — Google?
Julian Assange — É uma questão de registro público. Sem que o Judiciário fosse envolvido, os EUA emitiram centenas de milhares de cartas só da Agência Nacional de Segurança requisitando registros nos últimos cinco anos dizendo que uma atividade criminosa precisava ser descoberta, que eles precisavam passar essas informações. Eles desenvolveram interfaces automatizadas para atender mais rápido essas requisições, por causa do grande número.

Elizabeth Carvalho — Você disse que essa integração entre as estruturas estatais existentes e a internet está mudando a própria estrutura dos Estados. Explique melhor essa ideia e como essa mudança que vem ocorrendo.
Julian Assange — A internet é como um sistema nervoso, como as artérias da sociedade, e a sociedade inclui o Estado. Então, a integração entre as comunicações internas do Estado, da sociedade e a internet está completa. Muito pouco da comunicação formal não acontece na internet. É claro que há conversas sussurradas em corredores. Mas, se você quiser comunicar algo em grande escala – e os Estados fazem coisas em grande escala –, em algum ponto a informação precisa se concretizar e ser transformada em ordens e instruções, diretrizes e coisas do gênero. E tudo isso acontece pela internet. Há uma integração entre minha vida e meus dados no setor bancário, que agora também são passados pela internet. Assim, o sistema financeiro também se integrou à internet. Se você falar de vigilância de transações financeiras ou se for olhar o sistema de vigilância que os franceses da Amesys venderam a Kadafi, ele interceptava a internet e também identificava transações financeiras.

Elizabeth Carvalho — Podemos dizer que as transações financeiras também foram o topo dessa pirâmide – como você descreve no livro –, desse novo sistema que sustenta as comunicações high-tech? Foi exatamente o mercado econômico?
Julian Assange — Não, eu não creio. O que sustenta a internet é esse sistema neoliberal e todos os avanços tecnológicos que ocorrem no mundo todo — mesmo os elementos não neoliberais, como universidade ou centros de pesquisa. Portanto, a internet repousa sobre todos os desenvolvimentos da civilização internacional. Das minas de cobalto do Congo aos pesquisadores do MIT. A internet é o topo do desenvolvimento tecnológico humano. Infelizmente, isso significa que não é possível remover facilmente os elementos ruins da civilização internacional e ainda manter a internet, porque ela depende de todo o resto. O que podemos fazer é usar os mecanismos de equalização do poder de democratização e de educação da internet da melhor maneira possível. Mas precisamos entender que, se rebeldes usam uma arma, é porque existe uma fábrica de armas.

Elizabeth Carvalho — A principal arma que você propõe contra essa vigilância de massa é a criptografia. E, como você disse, o universo acredita na criptografia. É mais fácil criptografar do que…
Julian Assange — Descriptografar. É fascinante.Não precisava ser assim. Descriptografar poderia ser tão fácil quanto criptografar. Criptografar significa que um indivíduo ou um grupo de indivíduos pode lutar contra o poder de uma superpotência e vencer. Por que o que é uma “superpotência” por definição? Ela pode usar mais força coerciva que qualquer poder. Não importa quanta força coerciva você usa para resolver um grande problema, não poderá acabar com esse grande problema. Esses problemas parecem estar unidos à física básica do mundo de uma maneira importante. Não importa quanta regra política exista. Não se pode mudar esse fato básico de como o mundo funciona. Assim, uma criptografia boa, forte, dá aos indivíduos o poder de lutar contra as superpotências daquela maneira específica. De várias outras maneiras eles não podem fazer isso, mas, dessa maneira, podem. Então, nesse aspecto, essa é uma tecnologia libertadora. Porque as superpotências também usam criptografia para manter a segurança de suas próprias comunicações. Não é algo usado apenas para libertar as pessoas. Ela também pode ser usada pelas superpotências para aumentar o domínio delas. Ao contrário das armas nucleares, que só podem ser usadas pelas superpotências ou grandes Estados, a criptografia pode ser usada por indivíduos e pequenos grupos.

Elizabeth Carvalho — Sim, pode ser usada para o que você chama de “quatro cavaleiros do ‘infoapocalipse’”: pornografia infantil, terrorismo, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. Como você lida com isso?
Julian Assange — A expresão “quatro cavaleiros do ‘infoapocalipse’” foi usada para mostrar como é a propaganda a favor do controle do Estado, em especial dos EUA, que se amplia constantemente. Por exemplo: “Temos que usar censura na internet toda, interceptar tudo, caso sejam praticadas essas atividades”. Obviamente, quando se cria um sistema de vigilância de massa porque quer eliminar uma só atividade, você acaba espionando todo mundo e tem capacidade para interromper qualquer atividade.

Elizabeth Carvalho — Você disse que 2013 será um ano atribulado, pois o WikiLeaks tem mais de 1 milhão de documentos prontos para serem divulgados. Você também disse que na Austrália, seu país, um senador não eleito seria substituído por um eleito. Se juntarmos essas duas atividades, a divulgação de informações e as eleições políticas, o que podemos deduzir?
Julian Assange — Bem, vamos voltar um pouco. Desde que a embaixada do Equador me concedeu asilo, recebendo o apoio de praticamente toda a América Latina, minha posição está mais estável, e isso nos permitiu planejar bem mais à frente do que antes. Em 2011 e no início de 2012, nós estávamos em uma batalha muito frágil e constante, que a qualquer momento, poderia levar à minha extradição ou à prisão de outras pessoas. Além desse bloqueio bancário absurdo imposto a nós pela Visa, MasterCard, PayPal, Western Union, Moneybookers e Bank of America.

Elizabeth Carvalho — Para estrangular…
Julian Assange — Para nos estrangular. Algo totalmente extrajudicial, totalmente ilegal. Vencemos uma ação contra eles e o bloqueio teve que ser interrompido. Esse tipo de ataque constante dificultou nosso planejamento e a organização ficou em um estado muito crítico. Desde que recebi asilo no Equador, temos conseguido planejar e nos estabilizar melhor. Isso foi ótimo, porque conseguimos desenvolver sistemas que já queríamos fazer havia um bom tempo. Isso inclui a campanha política australiana.

Elizabeth Carvalho — Você é candidato a uma cadeira no Parlamento australiano, é isso?
Julian Assange — Isso.

Elizabeth Carvalho — Em 2013?
Julian Assange — Correto.

Elizabeth Carvalho — O WikiLeaks mudou sua vida, como mudou a vida de Bradley Manning, um soldado de 25 anos, que está preso desde julho de 2010, em condições muito duras.
Julian Assange — Muito.

Elizabeth Carvalho — Como isso afeta você pessoalmente e a equipe do Wikileaks.
Julian Assange — A prisão de Bradley Manning?

Elizabeth Carvalho — Isso. Em termos de trabalho…
Julian Assange — Esse tipo de coisa não é algo inesperado. Já tivemos algumas pessoas, antes e depois de Bradley, nas mesmas condições. Temos pessoas sendo processadas e julgadas por júris superiores nos Estados Unidos há mais de dois anos. Nós temos mais de uma dúzia de processos legais em curso no mundo todo. No que diz respeito aos Estados Unidos, eles montaram sua própria documentação oficial e a investigação contra nós tem uma escala e uma natureza sem precedentes em todas as investigações governamentais. Nós vimos essa documentação, que envolve uma dúzia de diferentes agências. É algo grande, e faz parte. Mas nós sabemos que eles estão investindo tantos recursos porque nós os estamos atingindo.

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