Iguais, porém separados

Há um apartheid na remuneração da magistratura

Autor

  • Wolney de Macedo Cordeiro

    é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região. Professor do Unipê — Centro Universitário de João Pessoa e da ESMAT/13. Mestre e doutorando em Direito.

4 de fevereiro de 2013, 14h46

O tempo passa e as gerações mais novas desconhecem ou não entendem a existência de regimes segregacionistas institucionalizados, como o da África do Sul até 1994. Acabamos também por esquecer que tais regimes, por mais odiosos e brutais que fossem, dispunham de uma estrutura teórica destinada de legitimá-los. Assim, o apartheid sul africano encontrava-se respaldado com a retórica assertiva de que todos eram iguais independentemente da cor, todavia, também por conta da cor, seriam condenados a viver separados. Tratava-se de um paradoxo incontornável, mas usando como retórica para a manutenção de uma situação que, aos poucos, acabou por se tornar insustentável.

Exemplos do discurso segregacionista podem ser identificados na regulação jurídica, embora sem contornos ou consequências tão gravosas. No entanto, independentemente da natureza do bem jurídico a ser tutelado, o conceito de isonomia nas relações humanas talvez seja o postulado mais nítido e contundente, independentemente da ideologia do observador. Vez por outra, entretanto, as conformações políticas e sociais acabam criando verdadeiras armadilhas lógicas, nas quais, até inconscientemente, somos capturados.

Não há dúvidas que uma dessas armadilhas lógicas capturou o sistema remuneratório da magistratura da União, transformando esse setor do Judiciário nacional em um segmento dotado de limites e restrições não aplicáveis aos demais integrantes do Poder Judiciário. Ora, é fato público e notório que, por intermédio da Emenda Constitucional 45/2004, cognominada de Reforma do Poder Judiciário, buscou-se estabelecer um tratamento homogêneo no que concerne à estruturação daquele poder. Alguns ajustes foram feitos no sentido de criar um sistema judiciário ordenado e coordenado, com estruturas transparentes e um comando único.

A mais significativa alteração nesse particular decorreu da criação do Conselho Nacional de Justiça que, por força do comando constitucional (art. 103-B, § 4º), tem atribuição nuclear de promover “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”. Nesse sentido, há uma incontornável tendência de considerar o Judiciário uno, no que concerne ao seu controle administrativo-financeiro e ao seu estatuto.

A visão holística da gestão do Judiciário espraia-se sobre todas as facetas da magistratura, inclusive na composição da estrutura remuneratória, conforme previsto, explicitamente, na CF, artigos 37, XI e parágrafo 11; 39, parágrafo 4º; e 93, V. Estabelece-se, portanto, um conjunto de princípios gerais norteadores da contraprestação devida aos integrantes da magistratura nacional, vinculados à União ou aos Estados-membros, quais sejam: a) remuneração baseada em subsídio, integrado por parcela única; b) escalonamento entre as carreiras de no máximo 10% e no mínimo 5%; c) subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal como teto máximo da carreira, bem como de todo serviço público; d) exclusão das parcelas de caráter indenizatório do limites dos subsídios, desde que previstas em lei.

A compreensão dessas características revela a formação de um bloco monolítico e homogêneo de composição da remuneração da magistratura nacional. Logo, os regramentos estruturados para todas as carreiras da judicatura emanam de uma fonte constitucional comum, não podendo se configurar qualquer discrepância ou discriminação na previsão e aplicação do conjunto retributivo dos magistrados.

Aliás, essa homogeneidade sempre foi tradição no plano infraconstitucional, com a existência, há mais de três décadas, de um estatuto comum da magistratura, representado pela respectiva Lei Orgânica (Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979). Assim, sob qualquer ótica que venha a ser observar, a estrutura das contraprestações devidas aos magistrados brasileiros apresenta origem e limitações comuns. Ressalte-se, por oportuno, que esse postulado já foi, em diversas oportunidades, referendado pelo Supremo Tribunal Federal, ao reafirmar o caráter nacional e unitário da magistratura brasileira, inclusive no que concerne à forma de remuneração (ADI 3.367 — relator ministro Cezar Peluso, DJ 22-09-2006; ADI 3.854 — relator ministro Cezar Peluso, DJ 29-06-2007)

A prática, no entanto, tem demonstrado que essa harmonia e homogeneidade nem sempre são observadas, sendo possível identificar inúmeras situações nas quais o tratamento conferido aos integrantes da magistratura não tem sido isonômico. Um exemplo eloquente dessa desigualdade é o regramento das parcelas relacionadas ao auxílio-moradia adimplidas pelos Tribunais Superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal, bem por diversos estados da federação.

Lastreado pela própria Loman, há previsão específica para o ressarcimento pecuniário da garantia ao direito de moradia assegurado aos magistrados em geral, conforme se vê do artigo 65, II: “Ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado.”

Tal dispositivo legal, em nenhum momento, confronta-se com as limitações constitucionais de percepção de subsídio em parcela única, pois o benefício assegurado na norma infraconstitucional tem natureza meramente indenizatória, satisfazendo, assim, os requisitos de excepcionalidade preconizados pela CF, artigo 37, parágrafo 11. Em outras palavras, o Estatuto da Magistratura garante o direito à moradia por meio de “residência oficial” e preconiza a percepção de vantagem substitutiva do direito mencionado, corporificando-se, assim, sua natureza estritamente indenizatória. Aliás, essa foi a orientação estabelecida pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 13/2006 que exclui da incidência do teto remuneratório as parcelas de natureza indenizatória, entre as quais o auxílio-moradia (art. 8º, I, b).

A partir desse momento, já é possível estabelecer algumas premissas utilizadas para restaurar a homogeneidade do sistema de remuneração da magistratura, pelo menos no que concerne ao chamado auxílio-moradia. Em primeiro lugar, trata-se de vantagem explicitamente reconhecida no plano infraconstitucional, sendo assegurada abstrata e aprioristicamente pelo Estatuto da Magistratura. Em segundo lugar, dado o seu caráter estritamente indenizatório, a mencionada parcela acomoda-se perfeitamente no arcabouço constitucional, especialmente o parágrafo 11 do artigo 37.

Exatamente por conta de tais premissas, apresentam-se irreparáveis as deliberações tomadas por muitos órgãos do Judiciário no sentido de assegurar essa parcela aos seus integrantes. Só a título de exemplificação é possível citar a garantia de parcela indenizatória de auxílio-moradia aos seguintes órgãos de cúpula do Poder Judiciário: Supremo Tribunal Federal (Resolução n. 413, de 01.10.2009, art. 363, I); Tribunal Superior do Trabalho(Resolução Administrativa n. 1.341, de 01.06.2009); Superior Tribunal de Justiça (Ata da Reunião de Conselho de Administração de 29.05.2003); e Conselho Nacional de Justiça (Instrução Normativa n. 09, de 08.08.2012).

Da análise dos regramentos acima é possível identificar as seguintes características convergentes: a) as verbas não foram previstas por lei explícita; b) as parcelas são de natureza indenizatória e são excluídas diante a concessão de imóveis funcionais; c) os valores foram estipulados de conformidade com os limites orçamentários de cada órgão. Observe-se, por outro lado, que, com exceção dos integrantes do CNJ, todos os demais ministros beneficiários ocupam cargos vitalícios na estrutura do Poder Judiciário e, por consequência lógica, devem fixar residência na sede dos respectivos órgãos.

O quadro fático acima delineado atesta, de maneira insofismável, que a concessão e o pagamento do auxílio-moradia é inerente ao exercício da judicatura, obviamente mediante a observância das limitações e imposições orçamentárias. A única limitação explícita para a fruição do benefício, na forma da Loman, é a concessão de residência oficial para o magistrado (art. 65, II). Tal limitação foi assimilada pelos regramentos acima citados, na medida em que cessa o pagamento do beneficio quando concedido o uso de imóvel funcional (leia-se residência oficial do magistrado).

Por outro lado, como forma de se reconhecer a impossibilidade de restrição do benefício poder-se-ia sustentar a necessidade de lei específica, conforme aparentemente exigido na Loman, artigo 65, caput. A alegação, entretanto, não se sustenta pelos seguintes fundamentos:

a) Na enumeração do artigo 65 da Loman há previsão de inúmeras vantagens, inerentes ao exercício da judicatura, que são reguladas e adimplidas no âmbito do exercício da autonomia administrativa dos tribunais, como é o caso da ajuda de custo para despesas com transporte e mudança (inciso I) e as diárias (inciso III);

b) A Loman foi aprovada ainda na vigência da Constituição Federal de 1967, que não assimilava a autonomia orçamentária do Poder Judiciário. Assim, o alvo da leicitada no caput do artigo 65 era, tão-somente, a previsão da despesa, na época de formatação e execução exclusiva do Poder Executivo;

c) A estrutura sistêmica da Loman unifica o tratamento conferido às magistraturas estadual e da União, sendo em que, em relação à Justiça estadual as questões são tratadas por meio de lei orgânica do respectivo estado. No caso da magistratura federal não há qualquer ordenamento jurídico, além da Loman, apto ao regramento de tais questões.

Nesse sentido a regulamentação inserida no âmbito do Estatuto da Magistratura é suficiente para respaldar a concessão do benefício do auxílio-moradia. A insistência na tese de exigência de lei específica para a concessão da parcela indenizatória, por outro lado, não pode ser tópica ou localizada. Assim, se não é possível implementar o benefício inserido no inciso II do artigo 65 da Loman dentro dos próprios lineamentos preconizados por esta Lei Complementar, também não se viabilizaria a concretização das parcelas, igualmente indenizatórias, preconizadas nos incisos I e III.

Um entendimento desse jaez redundaria na impossibilidade de ressarcimento das viagens funcionais dos magistrados e de suas mudanças nas hipóteses de promoção ou remoção. Esse quadro feriria qualquer padrão de razoabilidade ou equidade na aplicação das normas aplicáveis à magistratura, mas numa perspectiva nitidamente kafkiana, estaria em sintonia com a interpretação, vindicada por alguns, de aplicação do inciso II, artigo 65 da Loman apenas diante de lei específica.

Ainda assimilando uma visão de restrição à concessão do benefício, argumentar-se-ia que o parágrafo 3º do artigo 65 da Loman, que delimitava critérios objetivos para a concessão do benefício, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (Rep. 1417-7-DF — relator ministro Moreira Alves, DJ 15.04.1988). O vício de inconstitucionalidade, entretanto, restringia-se aos aspectos estritamente orçamentários, tendo em vista a majoração das vantagens funcionais da magistratura depender de atuação direta e exclusiva do Poder Executivo, nos termos dos artigos 13, III, IV e parágrafo 1º; 57, II; e 65 da Constituição Federal de 1967.

Esse argumento, após a redemocratização do nosso país e da promulgação da vigente Carta Política, não apresenta mais consistência. Logo, o reconhecimento do auxílio-moradia enquanto parcela a ser fruída pela magistratura não apresenta qualquer vício de inconstitucionalidade, até porque adimplida, no plano administrativo, pelo próprio Supremo Tribunal Federal, conforme dito anteriormente.

A resistência na implantação do auxílio-moradia, enquanto benefício eloquentemente assegurado no Estatuto da Magistratura, não é estritamente de ordem jurídica, mas sim reflexo de um impasse político. A timidez no reconhecimento dos benefícios, mesmo de caráter indenizatório, de forma genérica e isonômica, é apenas um sintoma de um problema maior. Com efeito, o esfacelamento da estrutura retributiva dos magistrados brasileiros acaba por criar discrepâncias e divergências inaceitáveis dentro de um sistema que, por força de comando constitucional, deve ser uno e homogêneo.

O reconhecimento e a correção de tais discrepâncias é medida inadiável que depende de uma atuação política, mas também jurídica. A aplicação isonômica e razoável do Estatuto da Magistratura deve partir de uma autuação dos próprios tribunais, no exercício de sua autonomia consagrada constitucionalmente. No caso da garantia ao auxílio-moradia, a ausência de uma posição explícita, e, principalmente, isonômica, do Conselho Nacional de Justiça demanda providências urgentes dos tribunais nos estritos limites legais, constitucionais e orçamentários. Talvez dessa maneira consigamos atingir a plenitude da igualdade, sem qualquer separação ou segregação.

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