Diário de Classe

Charges da tragédia e limites da liberdade artística

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2 de fevereiro de 2013, 7h00

Neste Diário de Classe,não poderia deixar de registrar a lamentável ausência de todos os estudantes que foram vítimas do trágico incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Faltam palavras para descrever a dor que se abateu sobre a cidade e, de modo geral, sobre todos nós, cuja atmosfera é de absoluta tristeza e desolação.

Charges da tragédia
Após a polêmica em torno da charge publicada por Chico Caruso no jornal O Globo (clique aqui para ver), o desenhista Marco Aurélio — conhecido por seus cartuns diários na página 3 do jornal Zero Hora — também publicou uma charge alusiva à tragédia de Santa Maria (29/1).

Intitulada “Uma nova vida”, a charge traz uma fila de estudantes que aguardam para ingressar na Universidade de São Pedro, onde irão estudar com Oscar Niemeyer, Gilberto Freire, Euryclides Zerbini, Duque de Caxias…

No dia seguinte (30/1), o jornal recebeu inúmeras manifestações dos leitores, criticando a insensibilidade do autor. Referiam, em suma, que a charge é indelicada, ofensiva, inadequada e desrespeitosa. Alguns exigiram a retratação e um pedido de desculpas às famílias. A redação informou em nota: “O chargista disse que pretendeu homenagear os estudantes, com uma universidade no céu.”

Então, na quinta-feira (31/1), segundo noticiado no rádio e, desde então, divulgado no Facebook, Marco Aurélio teria sido afastado do jornal, diretamente pelo presidente do Grupo RBS, após uma enxurrada de protestos veiculados nas redes sociais. A direção do jornal limitou-se a afirmar que o cartunista está de férias.

Se o referido afastamento do chargista é verdadeiro, ou não, pouco importa para os objetivos desta coluna. Não se pretende, aqui, defender o cartunista e tampouco questionar as razões daqueles que protestaram, mas apenas promover a reflexão acerca dos limites da liberdade artística.

Limites da liberdade artística
Como se sabe, a Constituição assegura que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, IX).

E mais: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição […] é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220, § 2º).

Recentemente, ao apreciar a Medida Cautelar na ADI 4.451, relativa à (im)possibilidade de emprego do humor na propaganda eleitoral, o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

“MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCISOS II E III DO ART. 45 DA LEI 9.504/1997. […] 2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal […] 4. A Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna. Como é parte do estilo de fazer imprensa que se convencionou chamar de humorismo (tema central destes autos). A previsível utilidade social do labor jornalístico a compensar, de muito, eventuais excessos desse ou daquele escrito, dessa ou daquela charge ou caricatura, desse ou daquele programa. 5. Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. […] 10. Medida cautelar concedida para suspender a eficácia do inciso II e da parte final do inciso III, ambos do art. 45 da Lei 9.504/1997, bem como, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo” (ADI 4.451 MC-REF, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, STF, j. em 02/09/10).

É preciso destacar, entretanto, que o direito fundamental à liberdade (artística) não está imune a restrições. Mesmo que a liberdade mantenha uma posição de vantagem em caso de conflito com outros direitos, isto não significa que estejamos diante de um direito absoluto. A vedação à censura não autoriza o abuso da liberdade de expressão. Exemplos conhecidos de limites à liberdade de expressão e suas variáveis são os direitos à honra e à imagem (art. 5º, V e X).

Mas, voltando à charge, houve violação à honra? Se a resposta for positiva, existem os tipos penais (na hipótese, injúria). Não me parece, todavia, que seja o caso. De outro lado, se porventura alguém se sentiu legitimamente ofendido, sempre dispõe da esfera da responsabilidade civil, onde pode buscar a indenização à qual entende fazer jus.

Arte, humor e psicanálise
Millôr Fernandes costumava dizer que o humor é a quinta essência da arte. Em uma entrevista, Ziraldo disse que humor não é apenas a arte de fazer rir. Isso é comicidade. Humor é uma análise crítica do homem e da vida. Por isto, não existe, necessariamente, qualquer compromisso com o riso, que é somente um efeito colateral. Trata-se, na verdade, de uma análise desmistificadora e reveladora. Humor é uma forma de tirar a roupa da mentira, e o seu êxito está na alegria que ele provoca pela descoberta inesperada da verdade.

Tenho certeza de que muitos consideram que a charge de Marco Aurélio não deve ser considerada humor. Também certamente há quem sustente que se trata de um humor negro, de mau gosto, politicamente incorreto. Outros pensam que, mesmo sendo humor, o momento da publicação da charge foi, no mínimo, inoportuno. Tenho minhas dúvidas.

Isto porque o humor funciona como uma espécie de álibi para que o sujeito expresse uma verdade que não pode ser dita. Em Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud afirma que “numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”. Tal verdade resulta de um sentido insólito que exsurge do absurdo. Assim, revela-se um sentido que surpreende o intérprete e provoca o riso.

Segundo o pai da psicanálise, o humor é uma forma inteligente de o sujeito lidar com o sofrimento e, ainda que em situações-limite, obter prazer. É o humor que alivia as dores da existência. Em sua vida, um episódio merece destaque: após as tropas nazistas ocuparem a Áustria, em 1938, quando sua filha foi presa e interrogada, Freud teve de firmar um documento no qual atestava que Anna não havia sofrido maus-tratos. Na ocasião, depois de assinar a declaração, Freud acrescentou, ironicamente: “Posso recomendar altamente a Gestapo.”

Antes disso, em 1933, com a ascensão do regime nacional-socialista, quando soube que seus livros seriam queimados em praça pública, Freud afirmou: “Que progresso estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros.”

Observa-se, aqui, precisamente, o paradoxo inscrito no tragicômico e no humor negro. A ambivalência entre a vida e a morte, que nos leva da angústia ao riso. Em suma: o humor que des-vela o horror. É através dele que o sujeito afirma seu desejo contra a pulsão de morte que o atravessa.

Palavra final
Como já disse o ministro Cezar Peluso, quando era presidente do Supremo: Vedar o humor? Isso é uma piada. Perverso e lastimável — acrescento — é o sensacionalismo praticado reiteradamente por alguns veículos de comunicação que vêm explorando economicamente a tragédia. Este sim não tem nenhum sentido e muito menos graça. 

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