Retrospectiva 2013

As ruas, a opinião pública, a Constituição e o Supremo

Autor

  • Luís Roberto Barroso

    é ministro do Supremo Tribunal Federal professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

26 de dezembro de 2013, 7h29

Spacca
Há quase uma década escrevo a retrospectiva da revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o ano no Direito Constitucional e no Supremo Tribunal Federal. Renovado o convite este ano, não vi motivo para deixar de aceitá-lo. É bem verdade que mudei de lado do balcão: já não sou mais advogado, e sim juiz. Não é pequena a mudança de vida. Mas continuo a ser um professor de Direito — vale dizer, um estudioso aplicado das ideias e possibilidades de um sistema normativo legítimo — e um observador atento da realidade brasileira. E muito embora o cargo me imponha limitações e deveres de autocontenção, ele me proporciona, por outro lado, novos pontos de observação.

A principal distinção entre um juiz e um advogado, na fase da vida em que me encontrava, é relativamente simples de enunciar: como advogado, eu escolhia a minha agenda. Soberanamente, decidia as causas em que queria atuar. Aceitava algumas pela tese em discussão; e outras por interesse profissional. Mas em nenhuma hipótese atuava no que não queria. Pois um juiz não tem essa prerrogativa. Tem de julgar o que lhe aparece, não importa se as questões são emocionantes ou miúdas, inspiradoras ou penosas. É uma espécie de bandejão em que se é obrigado a provar todos os pratos. Até aquela saladinha murcha e sem tempero.

Cheguei à magistratura no Supremo Tribunal Federal tendo vivido uma vida completa como acadêmico e como advogado. Uma bênção, pela qual sou grato e reconhecido. Para este semestre e para o primeiro semestre do ano que vem, já havia aceitado convite para fazer um ano sabático: ia passá-lo no Instituto de Estudos Avançados de Berlim, na Alemanha. Já tinha assinado contrato — tinha salário bom e tudo! — e visto casa para morar. Um projeto fascinante: quarenta professores seniores de diferentes partes do mundo reunidos em uma mesma academia. Eu era o único da área do Direito. Os outros vinham dos demais domínios do conhecimento: filosofia, psicologia, ciência política, antropologia. Havia até uma pianista. Um ano inteiro sem  advogado, juiz ou membro do Ministério Público por perto! Cada participante tinha de escrever o seu trabalho — uma tese, um artigo ou um livro — e compartilhá-lo com os demais, em reuniões semanais e apresentações mensais. O meu projeto chamava-se “Sobre o Direito e a Vida” (On Law and Life, pois a língua franca do Instituto era o inglês). Uma viagem sobre teoria da justiça e vida boa. Eu estava feliz e animado.

“Não vamos mais para Berlim”
Mas as coisas não se passariam bem assim. Na quarta-feira, dia 15 de maio de 2013, o voo de Brasília para o Rio de Janeiro pousara com atraso. Eu tentava vencer o tráfego rumo à Faculdade Nacional de Direito, onde falaria na solenidade de entrega do título de Doutor Honoris Causa ao professor Paulo Bonavides, decano dos constitucionalistas brasileiros. Ele próprio me convidara, para minha honra e alegria. Quando eu chegava ao velho prédio do Caco, toca o telefone. Do outro lado da linha, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo: “Professor, a presidente gostaria de conhecê-lo. O senhor pode vir até aqui para irmos ao Planalto”. Expliquei que estava no Rio, para um compromisso que era ao mesmo tempo acadêmico e afetivo. Não tinha como retornar. “E amanhã?” Expliquei que estaria em Natal, para falar na abertura de um Congresso. “Melhor cancelar”, disse ele. “É importante”. Constrangido, avisei aos organizadores do evento que não poderia estar lá por um motivo de força maior e voltei para Brasília. Na manhã de sexta-feira, dia 17 de maio, a presidente recebeu-me em seu gabinete.

Conversamos por cerca de uma hora. Por iniciativa da presidenta, falamos sobre separação de Poderes, Federação, orçamento, sistema tributário, royalties. Não, nenhuma palavra sobre Ação Penal 470 ou qualquer outro tema impróprio para se conversar com um juiz em potencial. Incidentalmente, veio o comentário de que eu não tinha nenhum apoio político. Nem oposição relevante. Não era surpresa, mas achei divertida a observação. Uma hora depois, a presidente me levou até a porta e me disse: “Vou nomeá-lo semana que vem”. Contive o susto e não contei nem para a minha mulher. Narrei o encontro, mas não o convite. Só quem o testemunhou foi o ministro da Justiça. Uma semana depois, a presidente mandou me chamar outra vez e disse que assinaria o ato naquela tarde. Voltei para casa e disse a minha mulher: “Não vamos mais para Berlim”.

A verdade é que quando eu já espichava os olhos para a aposentadoria, ou pelo menos para uma vida mais amena, o destino me prega esta peça. Antes de chegar ao final do caminho, foi-me dado o privilégio de servir ao país e retribuir o muito que recebi. Em meio a pilhas intermináveis de processos, desfruto a sensação indescritível de viver para o bem, para a justiça e para um mundo melhor. Sem qualquer outro interesse ou ambição. É quase como estar no céu sem precisar morrer. 

A Ação Penal 470: ainda, e de novo
Não cheguei ao Supremo em tempos amenos. Pelo contrário, o ano de 2013 foi atípico. O povo voltou às ruas, em reivindicações amplas e difusas. Os condenados na Ação Penal 470 foram efetivamente presos, superando o ceticismo dominante. Esses dois fatos conjugaram o desejo de mudar e o início da mudança. Embora ambos os episódios sejam de certa forma independentes, eles se inserem no cenário geral de um país que busca uma nova narrativa para si próprio.

Há muitas explicações para as manifestações que tomaram as ruas em junho de 2013. Arrisco a minha: o nível de consciência cívica e de compreensão crítica da sociedade se elevou nos últimos anos, em razão da democracia e dos avanços socioeconômicos. Como consequência, as pessoas se tornaram mais exigentes em relação às prioridades escolhidas pela Administração Pública, à qualidade dos serviços públicos e aos índices de corrupção da classe dirigente brasileira. Por outro lado, o Estado e as instituições não conseguem reagir e atender, a tempo e a hora, todas as novas demandas que se criaram, seja por cidadania seja por utilidades públicas. Tal situação é grave, mas compreensível: não é fácil, de um momento para outro, superar quinhentos anos de atávica tradição patrimonialista (a gestão da coisa pública como se fosse um bem privado) e oficialista (que faz tudo depender das bênçãos e do financiamento do Estado).

De certa forma, o julgamento e a execução das penas na Ação Penal 470 vieram ao encontro desse sentimento geral. O Direito Penal, no Brasil, tradicionalmente seletivo — duro com os pobres, manso com os ricos — afastou-se do seu curso tradicional e colheu um conjunto de pessoas bem postas na vida. Era esta demanda por republicanismo e igualdade que estava por trás da catarse coletiva que foi o julgamento e o espetáculo exageradamente midiático representado pela concretização das prisões. Havia uma certa euforia futebolística que destoava da dramaticidade da situação de pessoas cujas vidas entravam em colapso.

Nos dias seguintes, alguns episódios revelaram aspectos intrigantes da alma nacional, que um dia haverão de ser analisados por um bom psicanalista. O primeiro deles: após a prisão de alguns acusados, muita gente que dormiu com raiva acordou com pena. Lembrei-me de um verso que uma voz portuguesa declama na linda música “Fado Tropical”, do Chico Buarque: “E se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega a executa, pois que senão o coração perdoa”. Na sequência, uma segunda característica da psicologia nacional se revelou, quando todos se estarreceram com o que já sabiam. Com efeito, dos editoriais aos colunistas, de autoridades públicas aos familiares dos réus, todos se deram conta de um fato tristemente notório: as prisões brasileiras são masmorras medievais, onde a dignidade humana é deixada na porta de entrada, como a esperança no Inferno de Dante. Não podem ser diferentes apenas para os condenados da AP 470. Precisam ser humanizadas para todos os seus ocupantes, que foram condenados à pena, suficientemente dura, de privação da liberdade.

A Ação Penal 470 será vista no futuro como um marco institucional na história brasileira se não deixarmos que seja o que ela de fato foi: um ponto fora da curva — frase que pronunciei na sabatina no Senado e que me acompanhou como uma assombração no ano de 2013. É preciso mudar a curva. Tais transformações hão de incluir: a) a alteração drástica do sistema político, no qual o dinheiro sem procedência é o personagem principal; b) a superação do caráter seletivo, racial e classista do sistema punitivo brasileiro; e c) uma mobilização nacional por prisões mais dignas, onde a perda da liberdade não signifique violência física e moral, em condições degradantes. (Se eu ainda fosse advogado, esta seria a próxima ação pro bono que eu proporia: a reforma do sistema prisional. Os presos são uma minoria sub-representada, tal como eram os homossexuais, no caso das uniões homoafetivas, e as mulheres, no caso da interrupção de gestação. É preciso retirar a questão dos presídios do processo político majoritário e tratá-la como uma questão de direitos fundamentais.)

Enfim: se o julgamento da Ação Penal 470 conseguir ser o marco zero de um processo extenso e profundo de transformações sociais, toda a energia judicial e política nela dispendida terá valido a pena. E logo à frente, talvez em mais uma ou duas gerações, conseguiremos proclamar a República. Vale dizer: um país onde haja probidade na gestão da coisa pública e igualdade real entre as pessoas.

Uma pausa para reflexão: o Direito, os fatos e a Justiça
O papel de um juiz é interpretar o Direito, à luz de determinados fatos, com o propósito de realizar a justiça. Essa é uma forma simples e acessível de descrever a função jurisdicional. De Aristóteles a Rawls, seria possível explorar cada uma dessas ideias até o infinito, em divagações epistemológicas e filosóficas. Não é a minha intenção aqui. Faço apenas uma breve reflexão sobre possibilidades e limites de atuação de um juiz em geral, sem reducionismo ou mistificação. A simplicidade, na frase inspirada de Leonardo da Vinci, é o último grau de sofisticação.

O juiz, em primeiro lugar, interpreta o Direito. Isso significa que o limite de sua atuação são os princípios e regras em vigor, materializados em normas jurídicas, criadas pelo constituinte, pelo legislador ou colhidas em valores compartilhados pela comunidade política. Juízes não criam normas do nada. Qualquer decisão judicial precisa ser reconduzida a uma decisão política majoritária, esteja ela na Constituição ou nas leis. É certo que as normas nem sempre trazem em si sentidos inequívocos e soluções pré-prontas. Existem vagueza e ambiguidade na linguagem (“dignidade humana”, “urgência e relevância”, “calamidade pública”), existem conflitos de normas fundamentais (liberdade de expressão versus direito de privacidade, livre-iniciativa versus proteção do consumidor, proteção ambiental versus desenvolvimento) e existem desacordos morais razoáveis (casamento de pessoas do mesmo sexo, interrupção da gestação, descriminalização de drogas). Nessas situações, muitas vezes, o juiz se torna coparticipante do processo de criação do Direito[1]. Mas, ainda assim, juízes não inventam o Direito.

Em segundo lugar, o juiz opera com determinados fatos da vida. Na compreensão contemporânea do Direito, a realidade é parte indissociável da própria construção da norma. Fatos são diferentes de opiniões ou escolhas. Fatos fazem parte da realidade objetiva. É certo que a verdade não tem dono. Em passagem memorável, André Gide escreveu: “Creia nos que buscam a verdade. Duvide dos que a encontram”. A vida, de fato, comporta múltiplos pontos de observação e grande dose de relatividade. Porém, nem tudo é relativo: existe um núcleo duro do bem e do correto que não está sujeito à ideologia ou a preferências pessoais. Por exemplo: estamos no Brasil, e no próximo Natal não haverá neve. Apropriar-se de dinheiro público é algo mau, independentemente do partido que o faça. Enfim: as pessoas na vida têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos. Um juiz deve buscar, obstinadamente, a verdade possível.

Por fim, um juiz tem compromissos com a justiça e, consequentemente, com a correção moral de suas decisões. O tema ganha em complexidade quando se agregam adjetivos ao substantivo: justiça formal e material; Justiça comutativa e distributiva. Ainda assim, em um mundo marcado pela proeminência da ideia de dignidade humana e pela centralidade dos direitos fundamentais, assim como pela vitória política do ideal democrático, o bem e a Justiça, vagos e abstratos como possam ser, passam a ter referenciais importantes. É importante lembrar que os direitos fundamentais — de igualdade, de liberdade, de realização da própria personalidade — têm uma dimensão individual e subjetiva (o desfrute de cada um) e outra coletiva e objetiva (a concretização dos valores mais elevados da comunidade política). O Estado, portanto, e o juiz em seu nome, tem deveres de proteção do indivíduo em face da sociedade e, também, da sociedade em face do indivíduo. Esse ponto de equilíbrio é uma das equações mais complexas da vida, sobretudo na persecução penal. Um juiz existe para a justiça. Mas é preciso ter em conta a advertência de Piero Calamandrei: “Para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê”[2].

Comento, a seguir, minha posição em relação a algumas questões controvertidas que estiveram em discussão no segundo semestre de 2013, no Supremo Tribunal Federal.

O óbvio, o certo e o indispensável
Em separado, fiz uma seleção de dez das principais decisões deste ano no STF. Cada uma delas foi resenhada pelo professor Eduardo Mendonça, mestre e doutorando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e meu assessor no STF. Um dos melhores da nova geração. O texto também será publicado aqui na ConJur, em conjunto com o meu. No tópico presente, comento analiticamente três decisões de maior visibilidade pública ao longo do período. Começo pelo caso do deputado Natan Donadon, condenado à pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias de reclusão, em regime inicial fechado. Um pouco para perplexidade geral, a Câmara dos Deputados deixou de decretar a perda do seu mandato, em deliberação plenária, por voto secreto. Surgia, então, uma estranha contribuição brasileira para o direito público universal: o deputado presidiário. Logo após, um parlamentar requereu mandado de segurança para que se declarasse a invalidade dessa decisão, e o processo foi distribuído a mim.

Ao decidir a questão, sustentei que um parlamentar condenado a mais de 13 anos de prisão, em regime inicial fechado, não pode conservar o mandato. É certo que a Constituição, de maneira textual e inequívoca, prevê que a competência para a decretação da perda do mandato, em caso de condenação criminal, é da Casa Legislativa à qual pertença o parlamentar. Porém, o próprio sistema jurídico em geral, e o sistema constitucional em particular excepcionam essa regra. É o que ocorre no caso em que um parlamentar precise cumprir pena, em regime fechado, por período superior ao remanescente do seu mandato. Isso, por duas razões: a) por impossibilidade material e jurídica de comparecer ao Congresso, já que não é possível trabalho externo em regime fechado; e b) porque a Constituição prevê a perda automática do mandato, por mera declaração da Mesa da Casa Legislativa, em relação ao parlamentar que se afaste por mais de 120 dias. Uma solução óbvia.

O segundo caso, revestido de mais emoção, dizia respeito ao cabimento dos embargos infringentes na Ação Penal 470. A questão concreta era relativamente simples do ponto de vista técnico. A Lei 8.038, de 28 de maio de 1990, que disciplina os processos perante o Supremo Tribunal Federal, não previu o cabimento de embargos infringentes. No entanto, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na redação da Emenda Regimental 1, de 25 de novembro 1981, editada ao tempo em que tal ato normativo desfrutava de força de lei, previa expressamente o cabimento de embargos infringentes na hipótese de a ação penal originária ser julgada procedente, mas com quatro votos divergentes (artigo 333 e parágrafo único). Cuidava-se de saber, portanto, se os embargos infringentes subsistiam ou não. Para ajudar a formar um juízo sobre o ponto, havia um fato política e juridicamente relevante. É que, em 1998, o presidente Fernando Henrique Cardoso enviou ao Congresso projeto de lei que alterava a Lei 8.038/90 para o fim de suprimir os embargos infringentes no Supremo Tribunal Federal. O projeto não foi aprovado, com a justificativa expressa de que o Congresso tomara a decisão política de manter o recurso no sistema.

Veja-se, então, que tanto o Executivo como o Legislativo entendiam, de maneira inequívoca, que o recurso estava em vigor. Mais que isso: o próprio STF, em inúmeras decisões, havia se referido à sua subsistência, em sucessivas referências expressas ao artigo 333 e seu parágrafo único. Por isso, a supressão do referido recurso de embargos infringentes, na reta final de um julgamento emblemático, mediante interpretação que contrariava todos os entendimentos até ali manifestados, configuraria, a meu ver, ilegalidade e casuísmo. Com o devido respeito aos que pensavam diferentemente. O desejo de toda a sociedade em concluir o julgamento o mais rápido possível, aliado ao cenário de paixões devastadoras que o assinalavam, tornou complexa uma questão simples. Sob inominável pressão e com a serenidade do magistrado irrepreensível que é, o ministro Celso de Mello acompanhou meu voto divergente e admitiu os embargos infringentes. Na sessão de julgamento, procurei explicitar que um juiz em geral, e um juiz constitucional em particular, deve fazer o que é certo. Deve ser fiel à sua compreensão da Constituição e das leis, mesmo que, circunstancialmente, isso contrarie a vontade majoritária. É justamente para desempenhar esse papel que a própria Constituição o colocou ali, e não para conferir uma aura de legitimidade ao rolo compressor da opinião pública. Até porque a opinião pública, como as nuvens, muda de forma, de lugar e de conteúdo.

O terceiro e último caso que abordo neste tópico diz respeito ao financiamento eleitoral por empresas. O julgamento ainda não foi concluído, mas no encerramento do ano judiciário já havia quatro votos, inclusive o meu, pela procedência da ação, proibindo a participação de empresas no processo eleitoral. A matéria não é simples e situa-se na fronteira movediça e conturbada que separa, de um lado, a interpretação constitucional e, de outro, as escolhas políticas.

Minha posição, não inteiramente coincidente com as outras três no tocante a seu alcance, foi no sentido de que a contribuição por empresas não é, necessariamente, ilegítima ou inconstitucional. Contudo, no âmbito do sistema eleitoral brasileiro de voto proporcional e lista aberta, seu impacto resulta sendo, inexoravelmente, antidemocrático e antirrepublicano. É que vem desse tipo de financiamento a centralidade que o dinheiro passou a desempenhar no modelo brasileiro. A consequência, perceptível a quem quer que tenha olhos de ver, é o perigoso descolamento entre a classe política e a sociedade civil. Temos uma democracia representativa em que o povo não se sente representado por seus representantes. Há também um problema de moralidade pública: muitas empresas contribuem porque se sentem ameaçadas se não o fizerem. É possível argumentar ser legítimo uma empresa financiar partidos e candidatos que representem sua visão de mundo e seus interesses legítimos. Na prática, porém, o que se vê são empresas contribuindo para todos os que tenham alguma chance de ganhar, ou de ocupar espaço político, por medo ou em busca de favores futuros.

A decisão do STF, se se confirmar a proibição, cria dificuldades imediatas e, eventualmente, pode demandar algum grau de modulação. Seu efeito positivo, todavia, haverá de ser o de fazer com que a discussão sobre a reforma política seja retomada e um pacto geral pelo barateamento do processo eleitoral seja firmado. É preciso que as pessoas que se beneficiam desse modelo iníquo saiam da sua zona de conforto. Fórmulas como o voto em lista (com uma excelente versão atenuada, proposta pela OAB) e o voto distrital misto precisam ser consideradas seriamente. Precisamos de democracia e não de uma plutocracia, com baixo patamar ético. Precisamos empurrar a história e este é um passo indispensável a ser dado.

Rumo a uma corte constitucional
Na maior parte das cortes constitucionais do mundo, os juízes têm mandatos longos, mas não são vitalícios. Em resenha anterior, expus meu ponto de vista sobre isso. Embora, no momento constituinte, eu considerasse esta fórmula como a melhor, não acho que seja o caso de se emendar a Constituição para este fim. Pior do que não ter o modelo ideal, é ter um modelo que não se consolida nunca. Fizemos a opção pela formatação de uma suprema corte no estilo americano e, a bem da verdade, penso que ela tem servido bem ao país.

Nada obstante — e é a isso que me referi no título desse tópico —, cortes constitucionais concentram sua atuação em temas que dizem respeito à interpretação da Constituição. E, mais do que isso, têm uma boa dose de controle sobre a própria agenda, selecionando os casos que merecem atenção prioritária. E o fazem, evidentemente, na quantidade possível. Uma agenda enxuta e bem selecionada é o que permite julgamentos e debates de qualidade. Muito antes de entrar para o STF, já havia escrito, por diversas vezes, como o tribunal se enredou na própria voracidade de julgar coisas demais. Todos os ministros gastam a maior parte do seu tempo administrando um enorme varejo de miudezas e desimportâncias. Reitero, para sistematizar, algumas sugestões já apresentadas nesse mesmo espaço:

1. Circulação prévia das conclusões do voto. O relator deveria circular, ao menos uma semana antes do julgamento, a conclusão do voto que irá proferir. Tal proposta teria de ser conjugada com a de divulgação da pauta com maior antecedência, que vai adiante. A circulação da tese central e do dispositivo do voto poupa os demais ministros de terem de preparar votos que podem vir a ser coincidentes, gastando tempo que poderiam investir em outros processos. Naturalmente, tais conclusões do voto permaneceriam reservadas, sem qualquer tipo de vazamento.

2. Aprovação da ementa do acórdão.  A ementa do acórdão, antes de ser publicada, deveria ser submetida à maioria que se formou. Isso pode ser feito, de maneira simples, seja na sessão de julgamento, seja no Plenário Virtual. Não para um novo debate ou para retirar prerrogativas do relator, mas para que haja certeza de que aquele é o ponto de vista do tribunal, e não apenas de quem redigiu o acórdão. Este é um problema que acontece com alguma frequência, pela natural dificuldade de se captar com precisão, em meio a dissensos parciais, a percepção majoritária sobre todas as nuances de uma matéria complexa. Sobretudo nas decisões envolvendo repercussão geral, é preciso que fique claro qual é o holding, a tese jurídica que foi afirmada pelo tribunal.

3. Limitar o reconhecimento de repercussão geral ao que possa ser julgado no ano. Penso que o tribunal não deveria reconhecer mais repercussões gerais do que aquelas que seja capaz de julgar em um ano. Do contrário, o STF passa a atravancar a Justiça, na medida em que todos os processos que dependem da decisão da repercussão geral ficam sobrestados. Para se desembaraçar do estoque, penso que o Tribunal deve considerar a possibilidade de rever a atribuição de repercussão geral conferida a boa parte do que lá está e julgar outro tanto no plenário virtual. Do contrário, precisará de quinze anos — e enquanto isso se formará outro estoque inadministrável.

4. Transferir competências do Plenário para as Turmas. É preciso passar diversas competências que hoje são do Plenário para as Turmas. O Plenário está sobrecarregado, com centenas de processos na fila de julgamento. Por motivos diversos, a Turma tem uma dinâmica bem mais ágil. Seria possível convencionar que, havendo dois votos divergentes na Turma, ao menos nas questões mais relevantes, aí se afetaria a matéria ao Plenário.

5. Pautas de Plenário divulgadas com trinta dias de antecedência. As pautas do Plenário, como regra, deveriam ser divulgadas com 30 dias de antecedência, em volume realista, que possa efetivamente ser julgado. Isso pelo bem dos advogados, dos ministros e da qualidade do julgamento. A divulgação de pautas longas e irrealizáveis, na quinta-feira anterior às sessões da semana seguinte, submete os ministros ao estudo, em poucos dias, de mais de uma dezena de processos sobre temas variados e complexos. Uma jurisdição que deveria ser de reflexão acaba sendo prestada no reflexo, em improviso indesejável. Ou, então, vem o pedido de vista, que atrasa tudo. Quanto aos advogados, é absurda a situação de serem obrigados a se deslocarem seguidas vezes a Brasília, dispendendo dinheiro que muitas vezes o cliente não tem, para que seus casos não sejam julgados. É claro que situações graves ou emergenciais podem entrar na pauta pelo modelo atual. Mas esta não seria a regra.

6. Redução do foro por prerrogativa de função. Por fim — mas isso não depende do STF — é preciso uma redução drástica das hipóteses de foro por prerrogativa de função. Para isso, é necessária uma emenda constitucional. Minha proposta básica é a criação, na Justiça Federal do Distrito Federal, de duas Varas Especializadas para julgar parlamentares e determinados agentes públicos: uma para ações penais e outra para ações de improbidade. O titular de cada uma delas seria escolhido pelo STF e teria um mandato de três ou quatro anos. Ao término do período, iriam automaticamente para o Tribunal Regional Federal, sem depender de ninguém, assim conservando a sua independência. Da decisão de tais Varas caberia recurso ordinário diretamente para o STF. Nessa fórmula, o STF daria a palavra final, mas não seria órgão de instrução nem juízo de primeiro e único grau.

Tenho conversado internamente sobre essas ideias antigas que tenho e outros ministros têm outras ideias. Há esperança de que alguns consensos se produzam já para 2014, para que o tribunal possa se tornar mais funcional e aprimorar o seu desempenho.

Conclusão
Neste ano que se encerra, a Constituição brasileira completou 25 anos. Há três grandes realizações a celebrar. A primeira, o fato de ela ter sido o instrumento de uma bem sucedida transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para uma democracia constitucional. Em segundo lugar, sob a Carta de 1988, o país vive seu mais longo período de estabilidade institucional desde o início da República. Por fim, ao longo desta década e meia, consolidamos progressivamente uma cultura democrática, fundada no respeito às regras do jogo, na separação e equilíbrio entre os Poderes e no avanço da efetivação dos direitos fundamentais.

Ao longo dessa trajetória, o Supremo Tribunal Federal tem tido um papel de grande destaque. Coube a ele definir as regras a serem observadas no impeachment de um presidente da República, assegurar a liberdade existencial das pessoas independentemente de orientação sexual, validar as ações afirmativas, exigir um mínimo de fidelidade partidária da classe política, banir o nepotismo nos Poderes Públicos, romper com a tradição de impunidade no andar de cima, chancelar as pesquisas com células-tronco embrionárias, em meio a muitas outras decisões relevantes. Não foram poucos os avanços.

Neste ano de 2013, o tribunal, entre outras decisões emblemáticas: (i) admitiu os embargos infringentes na AP 470; (ii) deliberou sobre a perda do mandato parlamentar em razão de condenação criminal transitada em julgado; (iii) pronunciou-se sobre o devido processo legal legislativo em matéria de veto, criação de novos partidos e demarcação de terras indígenas; (iv) suspendeu liminarmente a criação de quatro novos tribunais regionais federais; (v) impediu cautelarmente a mudança das regras de repartição dos royalties do petróleo; (vi) iniciou a modulação dos efeitos das normas sobre precatórios, declaradas inconstitucionais; (vii) impôs o compartilhamento entre Estados e Municípios das competências relacionadas ao saneamento básico; (viii) declarou inconstitucional a reintrodução do voto impresso; (ix) considerou válida a introdução de um prazo de decadência para revisão dos benefícios previdenciários; e (x) definiu o alcance restrito das condicionantes impostas na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

O ano de 2014 promete ser igualmente agitado. Será concluído o julgamento da Ação Penal 470, bem como iniciada a apreciação de uma das ações do chamado “Mensalão de Minas”. Também está previsto o início da discussão sobre biografias não-autorizadas, em meio a muitas outras questões de grande visibilidade social. Simultaneamente ao desempenho de suas atribuições constitucionais, e justamente para realizá-las de maneira mais efetiva, o Supremo Tribunal Federal deverá repensar o seu modo de atuação e a definição de sua agenda. Será preciso senso de inovação e ousadia para pensar fora da caixa e implementar as mudanças necessárias. O objetivo é julgar uma quantidade radicalmente menor de causas — foram cerca de 80 mil este ano —, com mais tempo de reflexão e evitando a formação de estoques. Como assinalado, o Supremo Tribunal Federal tem servido bem ao país nesses vinte e cinco anos de democracia. Porém, uma boa dose de autocrítica é melhor para o avanço da história do que a auto-exaltação. É preciso fazer mais e melhor. 


[1] Para aprofundamento do tema, v. Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 4a. ed., 2013, p. 330 e segs. À p. 333, lê-se: “Em variadas situações, o intérprete torna-se coparticipante do processo do processo de criação do Direito, completando o trabalho do constituinte ou do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre as soluções possíveis”.

[2] Piero Calamandrei, Eles, Os Juízes, Vistos por um Advogado, 1995, p. 4. 

 

Autores

  • é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito pela Yale Law School, Doutor e Livre-Docente pela UERJ, e Visiting Scholar – Harvard Law School (2011).

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