Retrospectiva 2013

STJ constrói de modo admirável o Direito da Arbitragem

Autor

  • Selma Ferreira Lemes

    é advogada mestre em Direito Internacional e doutora em Integração da América Latina pela USP professora e coordenadora do Curso de Arbitragem do FGVLaw.

25 de dezembro de 2013, 10h48

Spacca
Desde que a Emenda Constitucional 45/2004 transferiu para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a competência para homologação de sentenças judiciais e arbitrais estrangeiras, foram emitidos 50 acórdãos referentes à arbitragem (sentenças arbitrais proferidas no exterior ou discussão quanto à validade de cláusula compromissória inserida em contrato julgada no judiciário estrangeiro). A radiografia que se extrai em nove anos de experiência do STJ, como a seguir será demonstrado, é a mais positiva possível.[1]

As decisões se fundam na herança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), acrescida de evolutiva conscientização das especificidades que regem a arbitragem como método consensual, mais flexível e extrajudicial de solução de controvérsias. Some-se a isso a pertinente intelecção dos ilustres ministros e ministras do STJ, do papel que a arbitragem representa nos âmbito dos negócios internacionais, no sentido de impor a segurança jurídica indispensável ao comércio internacional.[2] As decisões imprimem lições pedagógicas e profiláticas, inclusive em sede de julgamento em Recurso Especial.[3]

Ademais, de há muito se constata que a arbitragem não é apenas uma cláusula jurídica inserida num contrato (nacional ou internacional), mas também cláusula financeira, pois gera economia nos custos de transação.[4]

Assim, iniciou-se desde 2005[5], jurisprudência que vem definindo e consolidando temas pertinentes ao processo homologatório de sentenças estrangeiras na área arbitral. Partindo-se da premissa de que em sede de ação de homologação de sentença arbitral estrangeira o julgamento é por delibação, em que a análise da corte é limitada à forma e não se avalia o mérito do decidido (artigo 9º Resolução STJ 09/2005), mas verificando a inexistência de violação da ordem pública, dos bons costumes e soberania nacional (artigo 6º da citada resolução), complementada com os requisitos do seu artigo 5º, em que se afere: (a) se a sentença foi proferida por autoridade competente; (b) terem sido as partes regularmente citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia; (c) ter transitado em julgado; e d) estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acompanhada de tradução por tradutor oficial juramentado.

Além, evidentemente, de atentar para os artigos 37 a 39 da Lei de Arbitragem (LA) (Lei 9.307/96) e das convenções internacionais que regem a matéria, especialmente a Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (Convenção de Nova Iorque, CNI, 1958), em vigor no Brasil por força do Decreto 4.311 de 2002. Ressalte-se, também, ser o ônus da prova, na ação de homologação de sentença arbitral estrangeira, da parte que se insurge contra a homologação (artigo 38 da LA e artigo V da CNI).

Para a arbitragem internacional o ano de 2013 foi promissor. Foram lavrados 10 acórdãos, com homologação integral das sentenças arbitrais estrangeiras proferidas e um acórdão que homologou, em parte, sentença judicial advinda de cortes dos Estados Unidos.[6] [7] A média, nos oito anos anteriores, foi de quase cinco casos julgados por ano.

O ponto mais importante desta jurisprudência foi a confirmação do entendimento, já consolidado, dos limites do juízo de delibação, em que, conforme mencionado, o mérito do decidido não pode ser analisado, mas há de se aferir a conformidade com os bons costumes e a não violação da ordem pública e da soberania nacional.

Nesta linha, tentativa de se discutir aspectos referentes à natureza da relação contratual é afastada, tal como o decidido na SEC 6.753, ministra relatora Maria Tereza Assis Moura (DJ 19 de agosto de 2013): “Não cabe  a esta corte, em juízo de delibação, examinar o mérito das alegações,  sob pena de violar o sentido do procedimento homologatório, estando na mesma conta pretender averiguar a injustiça do decisum arbitral”.

Questão referente à citação por carta rogatória foi afastada em diversos desses julgados em 2013, competindo à corte esclarecer que o artigo 39, parágrafo único da LA permite a convocação da parte brasileira, na forma estabelecida pelas partes e não há falar em ofensa à ordem pública. Esclarece o julgado que as Câmaras de Arbitragens não integram o judiciário, mas são entidades privadas (SEC 8.847, ministro relator João Otávio de Noronha, j. 20 de novembro de 2013). Neste mesmo acórdão foi esclarecido que a alegação sobre a legitimidade de parte é matéria a ser analisada no procedimento arbitral (conforme constatado na sentença arbitral homologada) e não é matéria para ser apreciada no juízo de delibação, tal como ressaltado pelo parecer do subprocurador-geral da República, Edson de Oliveira Almeida, no processo mencionado.

Outra matéria frequentemente alegada é que a cláusula compromissória estaria inserida em contrato de adesão e deveria ter sido observado o disposto no artigo 4º, parágrafo 2º da LA. Na SEC 6.761 (DJ 16 de outubro de 2013), a ministra relatora Nancy Andrighi, em seu voto mencionou a SEC 507, relator ministro Gilson Dipp (DJ 13 de novembro de 2006): “para a eventual análise da alegação de que o contrato objeto da arbitragem é ‘de adesão’, seria necessário o exame do mérito da relação de direito material afeto ao objeto da sentença estrangeira homologanda, o que se mostra inviável na presente via”.

Acrescentou a ministra relatora que “ultrapassa os limites do juízo de delibação, ínsito à homologação de sentença estrangeira, a análise acerca da natureza – de adesão – do instrumento contratual e, por isso, da própria alegação de invalidade da cláusula compromissória. Nesse mesmo sentido, cite-se a SEC 4.213/EX, relator ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe de 26 de junho de 2013”. Também aferiu corretamente esse julgado que a arbitragem se rege pela lei indicada pelas partes no contrato (no caso a lei inglesa) e não a lei brasileira, tal como  previsto no artigo 38, II da LA. Idêntico julgamento foi proferido na SEC 5.828, Rel. Min. João Otávio de Noronha (j. 19 de junho de 2013).

Atentar para a lei que rege a arbitragem no sentido de determinar as regras a serem seguidas, também foi invocado na SEC 4.024, ministra relatora Nancy Andrighi (j. 7 de agosto de 2013). Em seu voto exaltou ser a lei do local da arbitragem a que deve ser verificada quanto à forma da citação da parte no Brasil (artigo 38, II e 39, p. único da LA).

Nesta SEC 4.024, também foi afasta a alegação de violação da ordem pública, por tem sido aduzido pela parte que a sentença arbitral estrangeira fixou condenação de juros compostos, o que é vedado no ordenamento nacional. A magistrada esclareceu: “não é qualquer contrariedade ao sistema jurídico local que pode implicar ofensa à ordem pública, de tal sorte que descabe ao STJ fazer análise profunda acerca do conteúdo e (ou) da justiça da decisão estrangeira quando não constatada malversação a valores fundamentais de cultura jurídica pátria”. Recordou a ministra Nancy Andrighi que o artigo 591 do Código Civil, inclusive, permite a aplicação de juros compostos em contratos de mútuos com fins econômicos.

Ocorreu também em 2013 o desfecho do mais longo e complexo julgamento de homologação de sentença estrangeira processado no STJ (104 meses) referente à arbitragem. Foi, sem duvida, um caso paradigmático e é um leading case não apenas para a arbitragem, mas para as sentenças judiciais estrangeiras, especialmente. Analisou-se questão de competência concorrente e litispendência.  

Trata-se da SEC 854, ministro relator do voto-vencedor Sidnei Beneti (j. 16 de outubro de 2013), ingressada em 3 de março de 2005, em que se pleiteava a homologação de duas sentenças judiciais proferidas nos Estados Unidos, transitadas em julgado em 25 de maio de 2004. Ao mesmo tempo, tramitava no Brasil ação de nulidade de cláusula compromissória, invocando-se tratar de contrato de adesão. A ação brasileira foi julgada extinta pela 10ª Vara Cível de Porto Alegre em 31 de março de 2004. Posteriormente, foi acolhida a Apelação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 17 de novembro de 2004. Houve Recurso Especial julgado improvido, por falta de prequestionamento em 17 de março de 2009; e, após, improvido o Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em 23 de março de 2011, ocasião que transitou em julgado.

Referem-se a um contrato de representação comercial e outro de serviços, firmados em 1999, entre empresa americana e empresa brasileira sediada no Rio Grande do Sul. As cláusulas compromissórias nos dois contratos elegeram a arbitragem para solucionar conflitos destes surgidos, seguindo as regras do Centro Interamericano de Arbitragem Comercial (CIAC). Para obstaculizar a arbitragem iniciada em Miami em 22 de abril de 2002, a empresa brasileira ajuizou a ação de nulidade de cláusula compromissória na 10ª Vara Cível de Porto Alegre e também uma ação judicial nos Estados Unidos, solicitando a suspensão definitiva da arbitragem.

Na ação americana a empresa estadunidense apresentou reconvenção e solicitou a imposição da arbitragem, bem como propôs ação cautelar para impedir que a empresa brasileira prosseguisse com a ação judicial por ela intentada no Brasil. A empresa americana saiu-se vencedora no Judiciário americano e a arbitragem teve processamento no CIAC. Atualmente a sentença arbitral ditada tem seu processamento de homologação no STJ (SEC 853). A sentença na ação cautelar condenou a empresa brasileira, determinando seu impedimento de acionar a Justiça brasileira e por descumprimento, impôs também sanções penais (essa parte da sentença foi refutada pelo STJ na homologação da sentença no Brasil, por violar norma de ordem pública, artigo 5, XXXV da Constituição Federal e a segurança nacional).

Discutiu-se na SEC 854 a possibilidade de homologação das sentenças judiciais americanas (ação cautelar e ação de reconhecimento da cláusula arbitral) transitadas em julgado em 25 de maio de 2004, considerando que havia a demanda brasileira que reconheceu a procedência da ação de nulidade de cláusula compromissória, transitada em julgado em 23 de março de 2011, com a rejeição dos Embargos de Divergência, relatora ministra Isabel Gallotti.

O julgamento da SEC 854 iniciou-se com o voto do ministro relator Luiz Fux em 19 de junho de 2006, que opinou pelo deferimento parcial das sentenças estrangeiras (excluindo-se a parte que proibia a empresa brasileira de acionar a empresa americana no Brasil e impunha sanções penais, por violar a ordem pública brasileira). Seguiu-se a substituição do ministro Fux pelo ministro relator Relator Massami Uyeda, cujo voto foi pela negativa de reconhecimento das sentenças, considerando que havia a decisão brasileira em contrário. Houve vários incidentes processuais, cujo relato ultrapassaria os limites deste artigo. Após a votação do ministro Sidnei Beneti solicitou vista do processo, que, ao final, ficou incumbido de redigir o voto-vencedor, primoroso em conteúdo, além de didático e pedagógico, na linha do argumentado acima.

Assevera o magistrado que “o desfecho do presente processo é relevante para a credibilidade de cláusulas de arbitragem constantes de contratos celebrados por partes contratantes no exterior. Evidentemente que a prevalecer a faculdade de bloqueio, via judiciário nacional, da realização da arbitragem por entidade arbitral no exterior, contratualmente avençada, estará aberta a porta para a judicialização, perante a Justiça estatal brasileira, de todo e qualquer processo de que conste cláusula arbitral – e isso ad proprium nutum de um dos contratantes, que, ainda que não tenha sucesso no processo no Brasil, ao menos terá tido o poder de, pelo só ajuizamento, impor majestosa procrastinação da controvérsia, que devia ter sido composta pela via célere da arbitragem – prejudicando-se, como consequência, a igualdade entre as partes contratantes. O reflexo assume relevo não só para a credibilidade da celebração das clausulas arbitrais por contratantes nacionais, mas também para o próprio comercio nacional do pais”. 

Esclarece que a sentença brasileira não obsta a homologação da sentença estrangeira em caso de competência concorrente e não seria o caso de invocar a soberania nacional em decorrência da sentença brasileira ter transitado em julgado; analisa a  cláusula compromissória e seus efeitos (artigo 8 principio da Kompetenz – Kompetenz ); aduz que “os julgados estrangeiro e nacional concluíram diferentemente, mas julgando causas de pedir diversas, e conforme disposto nos artigos 3.1, p. 3 e 4 do Código de Processo Civil, não se configuram nem a litispendência, nem a coisa julgada, visto que ambos os institutos exigem causas idênticas, e  ‘uma ação é idêntica a outra, quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido’ – somente com essas três identidades, não havendo identidade de ações  quando um dos elementos individualizadores é diverso, como no caso, em que absolutamente diferentes as causas de pedir”. E acrescenta: “Não há no caso impedimento à homologação das sentenças estrangeiras em virtude da coisa julgada nacional posterior, da mesma forma que não se sobrestou o procedimento de homologação por litispendência”.

Elucida também o ministro Sidnei Beneti que o obstáculo da ordem pública, sob a alegação de ofensa à soberania nacional da coisa julgada não incide no caso. Assevera que o conceito de soberania nacional já se modernizou, inclusive diante das relações de globalização, de modo que não pode antagonizar-se ao direito processual internacional, como menciona Flávia Pereira Hill.

Conclui, por fim o ministro relator, pela exclusão da interdição de invocação jurisdicional concorrente no país e a sanção criminal e, no mais, concede as homologações às sentenças americanas. A votação foi por maioria.

Resta agora verificar qual será a decisão na SEC 853, em que se pleiteia a homologação da sentença arbitral proferida no âmbito do CIAC e como se dará sua execução.

Não resta dúvida, portanto, que o STJ constrói de modo admirável o Direito (Pretoriano) da Arbitragem, pois como disse Cabral de Moncada, a lei reina, mas é a jurisprudência que governa. 

 


[1]Cf . matéria veiculada no site do STJ em 22.03.2012, Especialista em arbitragem diz que Justiça brasileira se tornou exemplo para o mundo, http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105097e nosso, O Superior Tribunal de Justiça Brasileiro e o Reconhecimento de Sentença Arbitral Estrangeira à luz da Convenção de Nova Iorque de 1958, Newsletter DGAE – Direcção – Geral do Ministério da Justiça de Portugal, n. 06, março de 2006, p. 14/16, também disponível em  http://www.selmalemes.com.br/artigos/artigo_juri07.pdf

[2] Note-se, como salientado pelo Ministro Sidnei Beneti na SEC 854 (analisada neste artigo), citando Flávia Pereira Hill, que no âmbito do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais e judiciais estrangeiras o STJ aproveitou a oportunidade histórica para demonstrar, que a cooperação judicial deixou de ser questão de cortesia internacional, para ser questão de direito. (Apud, Flávia Pereira Hill,  A antecipação de tutela no processo de homologação de sentença estrangeira, Rio de Janeiro: GZ Tese, 2010, p. 267).

[3]Neste sentido, confira-se o voto do Min. Sidnei Beneti: “…“Mais do que uma simples coincidência, essa orientação [art. 8 da Lei n. 9.307] reflete, de forma cristalina, a opção do legislador em estabelecer, a partir da Lei 9.307/96, um arcabouço normativo que permita à Arbitragem afirmar-se e desenvolver-se como modelo viável e eficaz de resolução de conflitos, tanto quanto possível autônomo em relação ao Poder Judiciário” (REsp.1.288.251, 3º Turma, j.u., 09.10.2012).

[4]Cf nosso livro Arbitragem na Administração Pública. Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica, São Paulo: QuartierLatin, 2007, 319 p.

[5]A primeira sentença arbitral estrangeira homologada pelo STJ foi a SEC 856, em 27/06/2005, Rel. Min. Carlos Alberto Direito. Note-se que além de deferir o exequatur da sentença proferida na Inglaterra, o STJ reconheceu a possibilidade da existência de cláusula arbitral tácita (a parte não externou sua concordância expressa com a cláusula compromissória, mas compareceu e se defendeu no processo arbitral no exterior, sem  alegar que não havia firmado a convenção de arbitragem), bem como invoca a CNI para reconhecer a regularidade da  sentença  arbitral exarada.

[6]Pesquisa efetuada no site do STJ (www.stj.jus.br) em 16 de dezembro de 2013, pelo verbete “sentença estrangeira”. Havia o registro de 79 sentenças estrangeiras (até novembro de 2013).  Destas, 66 referiam-se a casos de divórcio, guarda de menores e sucessões; 2 sentenças  judiciais referentes a contratos  comerciais ; e 11 referentes a arbitragem (sentenças arbitrais e sentença judicial). Pode-se concluir, portanto, que 85% das matérias referentes ao comércio internacional foram resolvidas por arbitragem, o que confirma ser esta a via majoritariamente eleita para solucionar conflitos internacionais. Acresce, ainda, a constatação que a grande maioria das sentenças arbitrais  (nacionais e internacionais) são cumpridas sem questionamentos no judiciário. As homologações de sentenças arbitrais ocorrem quando é necessária a  sua execução, ou para cumprimento de formalidade legal.

[7]Acórdãos publicados em 2013 referentes à arbitragem:

Sec

Publicação

Registro

8847

DJ 28/11/13

31/8/12

4516

DJ 30/10/13

27/4/09

854

DJ 07/11/13

03/3/05

3891

DJ 16/10/13

25/8/08

6761

DJ 16/10/13

08/4/11

6753

DJ 19/08/13

05/4/11

4024

DJ 13/09/13

03/10/08

4213

DJ 26/06/13

16/12/08

5828

DJ 26/06/13

30/06/10

6760

DJ 22/05/13

08/04/11

6365

DJ 28/02/13

02/12/10

 

  

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