Direito Comparado

Não há tendências na proteção do direito ao esquecimento

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

25 de dezembro de 2013, 7h00

Encerra-se hoje a série de colunas sobre o “direito ao esquecimento”. Na última semana (clique aqui para ler), concluiu-se a apresentação do segundo precedente do STJ sobre o tema, relativo ao Caso Aida Curi, e iniciou-se a análise do Direito estrangeiro, com a situação na Alemanha e na Suíça. 

Agora, prossegue-se com a experiência alemã e a europeia. O leitor poderá perceber algo que é central para este colunista: não há uma “tendência” no Direito Comparado à proteção desse “direito ao esquecimento”. A realidade nacional e as tipologias dos casos são bastantes variegadas. Não há um princípio uniforme e a presença dos chamados elementos descritivos (que tornam cada casa um exemplo único) é de grande significado para o resultado do acórdão. 

A anunciada decisão da União Europeia de regular o “direito ao esquecimento”, com forte ênfase em sua proteção, ainda deve ser considerada como algo de lege ferenda e mais uma prova das enormes dificuldades na harmonização do “direito europeu” em face dos “direitos nacionais”, mormente de países com forte tradição de autonomia jurídica, ao exemplo da Alemanha. Como esta introdução está-se aproximando de uma conclusão, é melhor interrompê-la e dar sequência aos demais itens da coluna.   

O “direito ao esquecimento” na Alemanha: continuação 
Na coluna anterior, foi exposto o Caso Lebach, um clássico da jurisprudência constitucional alemã. Um dos assassinos de quatro soldados do Exército da República Federal da Alemanha, proximamente a sua libertação, ingressou com uma ação para impedir a difusão de um documentário sobre o crime. Após derrotas sucessivas nas instâncias ordinárias, obteve a proteção requerida no Tribunal Constitucional Federal. Esse acórdão é bastante conhecido no Brasil e já foi citado em dois importantes julgados do Supremo Tribunal Federal[1] e na doutrina brasileira.[2] 

Há, no entanto, um Caso Lebach II, de 1999, que é uma espécie de revisitação do problema do “direito ao esquecimento”, mas com resultados bem diferentes.[3]

Em 1996, uma televisão alemã produziu um a série sobre crimes que entraram para a História. O crime ocorrido no arsenal militar de Lebach, com o assassínio dos quatro militares da Bundeswehr[4] seria objeto de um dos programas da série televisiva. Diferentemente do que ocorreu na década de 1970, com o programa da ZDF, os produtores da SAT 1 (canal responsável pela série intitulada Verbrechen, die Geschichte machten) mudaram os nomes de algumas das pessoas envolvidas e suas imagens não foram exibidas. Além disso, há comentários explicativos do ex-chefe de Polícia de Munique. 

Uma vez mais, houve contestação da “liberdade comunicativa” da emissora de televisão pelos envolvidos no crime de Lebach, com argumentos muito similares aos utilizados no Caso Lebach-1.     

O Tribunal Constitucional Federal, ao decidir o caso, valeu-se dos seguintes fundamentos: 

1) A “liberdade de radiodifusão”[5] é assegurada, mas não sem reservas. Cabe aos tribunais, na hipótese de colisão com outros direitos, resolver o caso, tendo em conta o art.5o, Absatz 2o da Lei Fundamental, além das normas ordinárias. Sendo certo que a atuação do Tribunal Constitucional, em matéria civil, deve ocorrer somente  se houver violação total aos direitos fundamentais e em caráter de reserva. 

2) O direito geral da personalidade[6] é protetivo dos indivíduos em face de situações como a representações da pessoa, que distorçam ou desfigurem sua imagem em público, de modo a impedir o livre desenvolvimento da personalidade, o que se revela de modo evidente quando há sério risco de estigmatização. Outra hipótese de ofensa a esse direito fundamental dá-se quando essas representações ameaçam, de modo efetivo, a reintegração dos delinquentes à sociedade, desde que esses hajam cumprido suas penas.

3) No Caso Lebach-1, o Tribunal Constitucional preservou o direito geral da personalidade porque ali havia uma lesão capaz de associar, de modo permanente, o criminoso a essa condição. Tratou-se, portanto, de uma questão de intensidade do ato que interferiu no direito ao desenvolvimento da personalidade. Nos termos do acórdão, é de se lembrar que o mero fato de ter cumprido a pena de prisão não significa que o criminoso adquiriu o “direito a ser deixado em paz” (ou, mais literalmente, “direito a ser deixado só”).[7]

4) A intensidade da violação ao direito fundamental dos criminosos, no Caso Lebach-1, era sensível porquanto o programa de televisão da ZDF conferira um caráter sensacionalista ao fato, com a exposição do nome e de fotografias dos envolvidos. A veiculação do documentário, à época, prejudicaria e muito a ressocialização dos condenados. 

5) No programa da SAT 1, no entanto, é inadequado encontrar tal nível de interferência no direito ao desenvolvimento da personalidade dos autores da reclamação constitucional. Passaram-se 30 anos da ocorrência do crime (de 1969; o acórdão é de 1999) e os riscos para a ressocialização foram bastante minorados.

6) O Tribunal Constitucional Federal anotou ainda que, com base no direito à radiodifusão, a proibição a um programa é sempre uma forte violação ao direito fundamental.

Conclusivamente, o acórdão Lebach-2 rejeitou a tese da ofensa ao direito fundamental dos reclamantes, chegando a resultado bem diverso do acórdão Lebach-1.

Em 2009,  no julgamento de outra reclamação constitucional[8], outra vez o problema da difusão de informações desabonadoras sobre uma pessoa foi discutido. Um ex-jogador de futebol foi condenado pelo Tribunal de Colônia[9] em 2008 por delitos sexuais (estupro) a uma pena de 3 anos e 6 meses. Uma empresa de telemedia de um portal da Internet noticiou o fato e as condenações, divulgando o nome do atleta, sua passagem pelo futebol e a menção ao uso permanente dos serviços de uma prostituta dominatrix. O jogador pediu liminarmente nos tribunais ordinários a suspensão da divulgação desses fatos pelo veículo de mídia digital. A decisão do Oberlandesgericht München (OL München, um tribunal superior regional) foi desfavorável ao atleta.  

O Tribunal Constitucional alemão, em seus fundamentos, declarou que o OL München fez uma adequada ponderação entre os interesses constitucionalmente protegidos, posto que em colisão direta. Segundo os juízes constitucionais, a proteção das expressões da sexualidade humana ocupa uma zona central na proteção à vida privada, não interessando a terceiros o que o indivíduo faz ou deixa de fazer nesse âmbito.  No entanto, a cobertura jornalística de um fato verídico e criminoso, ainda que no âmbito das relações sexuais, mesmo que sem uma sentença definitiva, não pode ser obstada sob o fundamento da preservação da vida privada. Ressaltou-se, ainda, que a cobertura foi permanente e não tópica ou após a conclusão do processo. Note-se que o precedente do Caso Lebach-1 foi expressamente afastado.  

O “direito ao esquecimento” e seu debate na União Europeia
Tem sido amplamente noticiada a elaboração de um projeto de diretiva na União Europeia, que contemple, de entre outras matérias, o “direito ao esquecimento”, sob impulso da luxemburguesa Viviane Reding, atual comissária europeia para a Justiça, Direitos Fundamentais e Cidadania.[10] Com isso, o artigo 17 da Diretiva 95/46/CE, mais conhecida como Diretiva de Proteção de Dados (em inglês, Data Protection Directive) passaria a contemplar o “direito a ser esquecido”, em uma tradução mais fiel à expressão inglesa “right to be forgotten”. 

Há diversas versões desse novo texto, com ou sem emendas, o que pode causar alguma confusão em seu estudo. As críticas a essa proposta de nova redação ao artigo 17 da DPD fizeram com que fosse adiado para 2015 o processo de alteração da diretiva. O texto, em uma de suas últimas versões, não mais contempla apenas o “direito a ser esquecido”, mas o direito a apagar (“right to erasure”) ou a retificar os dados (“right to rectification”), este último em um novo art. 16 da DPD. 

A última versão consolidada (e não oficial) do projeto de reforma, datada de 22 de outubro de 2013, está disponível na internet.[11] Em resumo tem-se que a pessoa tem direito a: a) exigir que sejam retificados seus dados, quando imprecisos, e de complementá-los, quando insuficientes; b) demandar o apagamento de seus dados, em diversas hipóteses, como: i) os dados não são mais necessários aos fins para os quais foram recolhidos ou processados; ii) o interessado não mais consentiu com sua permanência, bem assim quando expirou o tempo de manutenção no ar; iii) os dados foram tratados de maneira ilícita; iv) houve determinação para sua retirada, com base nas normas europeias. Além disso, caberia a uma autoridade europeia de supervisão da proteção de dados emitir orientações ou derrogações às regras sobre o “direito de apagar”, podendo, sempre que necessário, consultar representantes da imprensa, autores, artistas e organizações da sociedade civil. 

No âmbito europeu, o “direito a ser esquecido” também foi objeto de impugnação no Tribunal de Justiça da União Europeia. O caso, que já se notabilizou, é o C-131/12 (Google Spain v. Agencia Española de Protección de Datos), o qual tem os seguintes elementos descritivos:  a) em 1998, um periódico em Espanha publicou uma notícia sobre uma execução de dívida previdenciária; b) o devedor, no ano de 2009, descobriu a notícia no ar, a despeito de haver pago a dívida; c) ele requereu ao jornal que retificasse a informação, no que não foi atendido; d) em seguida, o devedor pediu diretamente a Google Espanha que o fizesse e também apresentou representação à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD); e) a AEPD solicitou que Google Espanha aditasse a informação do devedor, o que não foi feito; f) a empresa Google requereu à Audiência Nacional de Espanha, que remeteu o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.

O procurador-geral do Tribunal de Justiça Niilo Jaaskinen ofereceu um parecer, em junho de 2013, no qual examinou a vinculação dos motores de busca (como é o caso do Google) ao “direito a ser esquecido”. Para além de outros fundamentos,  Jaaskinen defendeu que as atuais normas europeias não estabelecem um direito geral a ser esquecido. Essa prerrogativa não pode ser invocada, com base na diretiva europeia, contra os motores de busca. O direito de retificar, apagar ou bloquear dados deve ser exercido em estrita conformidade com as normas vigentes, mas, considerados os elementos descritivos do recurso oriundo de Espanha, não parece ser esse o caos.[12]  

Conclusão 
O debate sobre o “direito ao esquecimento” é tão importante e ainda confuso que até mesmo a expressão que nomeia esse direito foi colocada entre aspas, em todas as colunas, por efeito da irregularidade terminológica que o cerca. Veja-se que em inglês (right to be forgotten) ou em alemão (Recht auf Vergessenwerden ou, diferentemente, Recht auf Vergessen) não há correspondência exata com o que se usa no Brasil.

Essa relevância do debate é ainda maior em um país como o Brasil, com instituições jurídico-políticas ainda frágeis, a despeito dos 25 anos da Constituição e dos quase 30 anos da redemocratização. O papel da imprensa de informar é uma das últimas fronteiras da chamada accountability, que se torna mais saliente em um cenário de enfraquecimento econômico da mídia e de esgotamento ideológico das forças de oposição aos governos estabelecidos (em todos os níveis da federação). Ao mesmo tempo, com a internet, a possibilidade do uso das “liberdades comunicativas” para a prática de verdadeiras políticas de extermínio moral dos indivíduos foi enormemente amplificada. E esse cuidado faz com que se tragam à luz do sol os problemas daí decorrentes. 

Outro ponto que necessita ser coerentemente observado está na identificação de fundamentos jurídicos relativos ao “direito ao esquecimento” e o debate sobre a constitucionalidade do artigo 20 do Código Civil, atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal.  Essa aproximação conceitual está implícita nos votos vencidos do julgamento do REsp 1.335.153/RJ, quando se mencionou a possibilidade de se restringir ex ante as publicações, filmagens ou os escritos que afetassem a imagem de um indivíduo ou sua memória, hipótese última que permitiria a incidência do parágrafo único do art. 20. Observado o famoso Caso Lebach-1, se comparado o documentário da ZDF a um livro biográfico sobre os assassinos dos soldados alemães, estar-se-ia diante de uma hipótese de controle prévio da “liberdade de radiodifusão”. Esse raciocínio pode ser também ampliado para um espaço no qual há uma “enciclopédia on line de biografias”, que é a Wikipedia, na qual diariamente são travados pesados combates entre seus colaboradores em relação à veracidade ou à adequação de dados informativos (ou biográficos) de vivos e mortos. As soluções, ao estilo Caso Lebach-1, e as que preservariam a ampla liberdade comunicativa, podem ser coerentemente compatibilizadas? 

Finalmente, é de ser considerada a dificuldade extrema em se distinguir entre os elementos históricos e a proteção à intimidade de vivos e mortos. Não há qualquer julgado conhecido no qual se tenha discutido a exposição de fatos sobre criminosos de guerra (de quaisquer guerras, embora os nazistas ocupem posição de preeminência nesse campo), muitos dos quais foram condenados a penas não capitais e tiveram longas existências após isso. Em relação a eles não houve preocupação com a ressocialização ou com o estigma. O Caso Lebach-1 não teve idêntica dimensão de um crime de guerra, mas tratou-se de um ato criminoso que ganhou as páginas da história criminal alemã. Haveria fundamento para diferenciar seus autores e outros assassinos contemporâneos? 

É também necessário diferenciar entre a divulgação na internet de fatos sobre indivíduos comuns ou célebres, como uma execução fiscal ou a condição de réu em ações civis públicas, em face de grandes delinquentes, cujos casos interessam ao Direito, à Sociologia ou à História. Essa confusão está na raiz das críticas (muitas delas severíssimas) que se têm lançado ao projeto de reforma da diretiva europeia de proteção de dados. 

É bem provável que o problema do “direito ao esquecimento” alcance novos patamares, inclusive com seu exame no âmbito do STF, ainda que não seja com base nos casos apreciados em 2013 pelo STJ.


 

[1] STF. ADPF 130, Relator  Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe 6-11-2009; STF; STF. MS 24832 MC, Relator  Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2004, DJ 18-08-2006.

[2]  Mendes, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem. Revista de informação legislativa, v. 31, n. 122, p. 297-301, abr./jun. 1994; Barroso, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade: critérios de ponderação: interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Administrativo, n. 235, p. 1-36, jan./mar. 2004.

[3] Acórdão disponível em: http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rk19991125_1bvr034898.html. Acesso em 19 de dezembro de 2013.

[4] Literalmente, Defesa Federal, o equivalente nacional às Forças Armadas.

[5] Tradução para Rundfunkfreiheit.

[6] Referido no acórdão como “allgemeine Persönlichkeitsrecht”.

[7] “A expressão alemã é  “allein gelassen zu werden”.

[8] 1 BvR 1107/09, de 10.6.2009. Decisão disponível em: http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rk20090610_1bvr110709.html?Suchbegriff=lebach. Acesso em 19 de dezembro de 2013.

[9] Landgericht Köln, referido pela sigla LG Köln.

[10] Vide informações em: http://techcrunch.com/2013/01/08/european-parliament-draft-reports-back-ecs-data-protection-reform-reinforcing-the-right-to-be-forgotten/. Acesso em 19 de dezembro de 2013.

[11] Disponível em: http://www.janalbrecht.eu/fileadmin/material/Dokumente/DPR-Regulation-inofficial-consolidated-LIBE.pdf. Acesso em 19 de dezembro de 2013.

[12] Um resumo do parecer foi divulgado pelo serviço de imprensa do Tribunal de Justiça da União Europeia e pode ser lido aqui: http://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2013-06/cp130077en.pdf. Acesso em 20 de dezembro de 2013. 

 

 

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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