Senso Incomum

Santa Joana dos Matadouros, rogai por nós!

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19 de dezembro de 2013, 7h00

Spacca
Os cotidianos casos e os casos cotidianos… e Paris vale uma Missa
Há mais de 20 anos nessa luta, faz algum tempo que parei de usar casos bizarros para explicar o Direito. Usava muito em palestras no velho ID, lá no Hotel Glória, na belle époque dos congressos. Não havia internet e os celulares estavam na aurora. Na verdade, como sou Procurador de Justiça que atua junto a uma Câmara Criminal do TJ-RS, poderia escrever uma coluna semanal relatando bizarrices que mostram a miséria do Direito e o Direito da e na miséria. Há poucos dias deparei-me com dois casos que merecem ser discutidos em público. E sabem por quê? Por causa do prefeito e do governador de São Paulo, que, em plena crise das manifestações em SP, cantavam “Trem das Onze” em um evento comemorativo em… Paris. Sempre Paris. Sim, Paris merece uma missa. E muita música. Lá, Cavendish (da Delta) e o governador Cabral cantaram juntos, com guardanapos na cabeça (poderia ser a música “Bastidores”, pois não?).[1] Para Paris iriam os estilistas com dinheiro da Viúva (Lei Rouanet), para mostrar “moda” nos Campos Elíseos. E esta coluna também vai escrita pelo valor simbólico que representa o dado estatístico de 61,8% dos negros vítimas de violência que não dão queixa na polícia de Pindorama. Eles não confiam nos agentes. E também em certos governantes. Por que será? Pois nos casos abaixo descritos, os condenados são do andar de baixo. Negros e brancos. E abandonados.  Que não vão a Paris às custas da Viúva. Que Santa Joana (n)os proteja! E nos livre dos helicópteros que transportam droga abastecidos com dinheiro público…

Caso 1: crime de abandono (de quem?)
Um casal, ela com 39 anos e ele com 48, foram processados com base no artigo 244 do Código Penal, porque em datas de 2007 e 2008, deixaram de proporcionar os recursos necessários para a sobrevivência dos dois filhos menores, que ficaram sem alimentos. Os pais foram condenados a um ano de detenção, substituídas por serviços à comunidade. Em grau de recurso, sustentei a absolvição de ambos, com base no artigo 386, III, do CPP.

Aqui já de pronto merece destaque o voto do relator, desembargador Francesco Conti, cuja posição é a de que o parecer do Ministério Público de segundo grau esvazia a controvérsia, no caso de se posicionar pela absolvição do(s) apelante(s). Eis a ementa do acórdão:

APELAÇÃO CRIME. ABANDONO MATERIAL. ABSOLVIÇÃO. PEDIDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O recurso exclusivo da defesa aliado ao pedido expresso do agente ministerial (atuante nesta instância), no sentido de que os réus sejam absolvidos, esvazia a controvérsia posta nos autos. De ressaltar que o Procurador de Justiça é quem detém atribuição para atuar junto aos Tribunais perante as Câmaras, nos termos do artigo 29, I, “a” e artigo 31, respectivamente, da Lei Orgânica Estadual e Nacional do Ministério Público, de sorte que o pedido por ele deduzido é o que deve ser considerado nos julgamentos dos recursos. A Carta Magna de 1988 filiou-nos ao Sistema Acusatório, e, a um só tempo, incumbiu exclusivamente ao Ministério Público a titularidade da ação penal e impediu o juiz de tomar qualquer iniciativa. Com isso, distinguiu o persecutor do julgador, sendo, sem dúvida, a inércia do juiz a garantia da sua imparcialidade. APELO DEFENSIVO PROVIDO (AP Nº 70053245734). Ele foi acompanhado pelo Des. Ivan Bruxel, com divergência da Des. Genaceia Alberton, no tocante à tese da posição do MP de 2º. Grau.

No mérito, o acórdão transcreve meu parecer, nos seguintes termos:

“O parecer encaminha-se no sentido do provimento da apelação, uma vez que o presente caso constitui hipótese de absolvição, diante da ausência de comprovação do dolo dos agentes. Na verdade, trata-se de um processo delicado, que nos apresenta, de um lado, a miséria do Direito e, de outro, o Direito da miséria. Em tese, poder-se-ia dizer que, se há um caso em que se caracteriza o abandono material, este é um deles. Afinal, os dados objetivos são tão dramáticos que transcrevê-los, aqui, já constitui um mergulho na crueldade humana.

Entretanto, em Direito Penal é comezinho exigir-se o dolo em uma conduta. Dogmaticamente, sempre se diz que o dolo está no tipo. Todavia, não vislumbro no caso concreto a existência do querer que as crianças fossem submetidas a este tratamento degradante. Esse é o busílis.

A literatura, por vezes, nos ajuda a compreender as insuficiências da Lei, quando contraposta ao Direito e suas mazelas. Nada melhor do que a peça Santa Joana dos Matadouros’, de Bertolt Brecht, para compreender o fenômeno ora em discussão. Joana, uma voluntária da Cruz Vermelha, vai até o dono dos frigoríficos de Chicago para interceder a favor dos trabalhadores em greve que estavam sendo mortos à míngua por um lockout da indústria da carne. O dono, conhecido como Bocarra, leva Joana ao submundo onde convivem os operários. Sua pretensão é a de mostrar que não só os ricos eram maus, mas que os pobres também o eram.

De fato, Joana se depara com a extrema maldade de alguns dos operários pobres, que, por um prato de comida, delatavam seus colegas. Mas Brecht quer mostrar na peça que os operários não eram maus, não tinham o dolo de serem maus. Eram as condições sub-humanas que transformavam os homens em lobos e ratos. Isto é, eram as condições econômicas que determinavam até a psique dos homens.

Guardadas as devidas proporções do tempo, da história e do mecanicismo marxista de Brecht, eis um bom modo de a literatura nos ajudar a explicar a situação da ‘maldade’ (ou do ‘dolo’) dos réus neste caso.

Isto porque, em que pese a situação absolutamente precária e dramática em que criadas as crianças, tenho não ser possível determinar até que ponto os réus possuíam capacidade de prover condições de subsistência distintas — isto é, até que ponto a condição de sujeira, abandono, miséria e desconsideração revelada não faz parte de sua própria conformação como indivíduo. 

Claro que se pode(ria) reclamar conduta diversa aos réus. De qualquer modo, muito embora estas questões possam tornar reprovável sua conduta, entendo que não sirvam à caracterização do presente tipo penal, eis que este exige a configuração de dolo específico e pressupõe a capacidade do agente em conferir sustento a seus dependentes e a vontade deliberada em não o fazer — o que, no caso em tela, não vem demonstrado.

Assim, considerando que na esfera penal revela-se imprescindível a demonstração clara e segura do dolo dos agentes para configuração do delito previsto no artigo 244, CP, e que, in casu, isto não ocorre, entendo que outro caminho não resta senão o absolutório.”

Fim do acórdão. Fecham-se as cortinas! PS: como dizia o poeta, faz escuro mas eu canto! Vale a pena demi(s)tificar o senso comum. E o locus para isso é o Senso Incomum!

Caso 2: crime de dano? Assim? Em terrae brasilis?
Em uma pequena cidade do interior do RS, um patuleu foi condenado a 1 ano e 8 meses de prisão, mais multa, por ter cometido crime de dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, inciso III, do CP). Qual foi o crime? Escrever seu nome a lápis (ou giz) na parede da cela da Delegacia em que estava detido provisoriamente (observe-se: a única coisa que não se discutiu nos autos foi a legalidade da tal prisão!). Diz-se que o prejuízo foi de menos de R$ 100. Foram realizados laudos (?), arroladas testemunhas, enfim, um volumoso processo. Até a delegada prestou depoimento, para comprovar que a parede havia sido pintada antes de ser “assinada” pelo choldréu.

Exarei parecer pela absolvição, que ainda está pendente de julgamento no TJ-RS. O caso dos autos encontra-se incluído em uma lógica pampenalista de ver o Direito Penal — que, provavelmente, teve seu ápice na década de 90, nos EUA, com a política do “tolerância zero”, resultado da chamada “broken windows theory”, mas que continuam presentes no imaginário de muitos juristas, até os dias de hoje —, na qual mínimas infrações ou, ainda, condutas sem qualquer resultado significativo, incapazes, portanto, de lesionar bem jurídico, são objeto de ação do Direito Penal.

Ora, despiciendo afirmar que condutas como a dos autos não ensejam a intervenção do Direito Penal: “O apelante danificou patrimônio público do Município, ao escrever seu nome na parede da cela”. Isso é crime? Então as pichações também o são, pois não? A reação do Estado, nestes casos, mostra-se descabida em relação ao fato que a ensejou, acarretando em uma contrapartida desproporcional à conduta que se pretende sancionar, referindo-se a um imaginário punitivista. É acaciano referir que, no presente caso, a condenação penal do acusado — e a consequente estigmatização — revelam-se incompatíveis com a própria conduta que é descrita no fato da inicial.

Neste sentido, entendo que, muito embora tenha vindo demonstrado o “dano” causado à parede da cela, torna-se adequado questionar se, in casu, realmente houve crime, uma vez que, como se sabe, o Direito Penal contemporâneo deve ser invocado somente quando os demais meios — sejam administrativos, sejam civis — tornarem-se inapropriados e/ou insuficientes para a resolução do problema.

Diante disso, portanto, cabe analisar se o caso dos autos, com suas devidas circunstâncias e peculiaridades, deve realmente ser sanado pela esfera penal, que já se encontra repleta de assuntos com importância incomensuravelmente maior para serem tratados e resolvidos. A lógica da “tolerância zero”, afinal, enquanto fundamentalmente repressiva, revelou-se falaciosa e inoperante.  Aliás, onde está a tolerância zero em relação ao não cumprimento da LEP, quando os detentos são armazenados como o eram nos navios negreiros?

Não creio que a intervenção do Direito Penal deva ir tão longe. Em suma, o Direito Penal sequer se legitima — enquanto ultima ratio sistêmica — para tal finalidade. Ele deve intervir tão-somente, uma vez que é composto do elemento restrição da liberdade dos indivíduos, em questões que não possam ser solvidas pelos demais ramos jurídicos. Aliás, no Estado Democrático de Direito, é de duvidosa constitucionalidade criminalizar “danos”, exatamente em face de um princípio extremamente relevante: o da subsidiariedade! De todo modo, considerando o valor irrisório da res danificada no presente caso, tenho que inexiste qualquer motivo capaz de justificar a utilização da persecução penal — regida pelo princípio da subsidiariedade — para punir um dano material ínfimo.

E não se diga que o caráter transindividual do delito — eis que a vítima, in casu, é o Estado — impossibilita a aplicação do aludido princípio, afinal são os próprios Tribunais Superiores — notadamente o Superior Tribunal de Justiça, corroborando entendimento firmado no Supremo Tribunal Federal — que afirmam ser insignificante o valor que não ultrapassar R$ 10 mil nos delitos de sonegação de impostos (agora, com a portaria 75 do Ministério da Fazenda, o valor foi para R$ 20 mil — pronto: país rico é pais sem miséria!). Nada como uma “boa” teoria das fontes… Uma portaria vale mais do que uma lei… Em terrae brasilis, pode. Falando em delitos “transindividuais”, o que dizer do uso da cota de gasolina (do Congresso) em helicópteros e jatinhos?  Por Santa Joana, o parecer vai pela absolvição do réu!

Das “janelas quebradas” e paredes pintadas à miséria de Santa Joana
Impressiona, nestes casos, o modo como os juízes e membros do Ministério Público olham estes fatos. Veja-se: em ambos os casos, houve condenações. Qual o país que eles habitam? Esta é a pergunta. Basta olhar ao redor.

Pensando no crime da parede pintada pelo nosso Picasso dos pampas, que tipo de crime comete o funcionário público quando usa o telefone da “repartição” (ou do fórum) para assuntos pessoais? Mas, é claro, quem comete dano é sempre o “outro”. Lembro de um caso contado por um deputado federal de Mato Grosso, processado por improbidade por ter usado folhas timbradas quando prefeito, para uma defesa judicial. Prejuízo: alguns reais. No dia do interrogatório no TJ-MT, o desembargador ou a desembargadora, antes de iniciar, pediu licença para ligar para sua casa, porque um filho ou neto estaria com problemas de saúde e teria que falar com a empregada. Terminou a ligação (telefone do tribunal) e disse ao prefeito (mais ou menos assim): – “Então, o que temos aqui? O senhor pode nos dar sua versão?” E o prefeito teria respondido: “Pois é, Excelência, estou aqui por motivo de menos importância do que agora o(a) senhor(a) acabou de cometer”. “Como assim?” “Pois o meu crime é menor do que o seu. Aposto que a ligação feita agora custou mais ao erário do que as folhas que usei”. Bingo. E terminou a ação de improbidade. Pronto. Preciso dizer mais alguma coisa? Afinal, o que é “prejuízo ao erário”? Hein?  

Vejam: no caso acima peguei no varejo. Agora, vem o atacado. O que é Direito Penal? Para que(m) serve? Maluf vem sendo processado há anos e a máquina não consegue pegar o nosso Jason. A operação Satia-não-agarra-ninguém-e-eu-me-rolo-de-rir foi um fiasco. A operação Castelo-entrou-areia foi levada pela primeira marola que passou. Havia prova ilícita, discussão de princípios etc. E no caso do (crime de) abandono feito por um casal de miseráveis? Onde estão os tais princípios constitucionais, tão decantados por aí? Hein? Qual foi a prova “carreada” aos autos? Qual o dolo? Quais as circunstâncias que levaram os pais a abandonarem os filhos? Não cabia, no caso, a máxima de Ortega y Gasset, de que yo soy yo y mis circunstancias?  O que a prefeitura disse? Ah, não foi ouvida? E o Estado? Não tem nada a ver com isso? Ah, bom.

Penso no personagem Bocarra — dono dos frigoríficos de Chicago — tentando mostrar para Joana que os “pobres são tão maus  como os ricos”. Pois é. Não sou mecanicista. Longe disso. Trouxe a Santa Joana dos Matadouros de Brecht para mostrar a degradação humana. A total miséria. Mas trouxe também para mostrar que, no Brasil – e mil desculpas por repetir a frase que uso desde 1985 — la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos. Enquanto isso, a indústria que mais cresce é a dos compêndios (facilitadores) de Direito Penal, para os quais só existe a ficção: Caio e Tício, que brincam de mocinho e bandido com Mévio… E novamente Caio, que põe fantasia de cervo e vai brincar no mato, para levar um tiro de Tício, só para possibilitar o exemplo do que seja erro de tipo. E eles são lidos exatamente pelos membros da magistratura e do ministério público que se mostram insensíveis a isso tudo. Por isso, vendem tanto. Claro. Apenas reproduzem o senso comum.

Por certo, nos casos em tela, foi “alcançada a verdade real” (e-eu-me-rolo-de-rir do “princípio”!). Viva! Buscou-se a essência dos fatos…. Ah, os fatos! Esses fatos! PS: dia destes, vi na TV um professor cantando uma música para explicar a diferença entre prescrição e decadência… (aliás, coisa complexa, não? Muiiito!). Fiquei pensando: o que seria mesmo de-ca-dên-cia? Não seria a própria figura dos professores de Direito em Pindorama querendo dizer coisas pífias e óbvias, como se o-mundo-pudesse-ser-chamado-de-Raimundo, como no poema de Drummond? Ainda há chance? Estaríamos mesmo condenados à mediocridade?

Sem dó nem piedade.  Rezemos para Santa Joana. Quer saber? Brecht era “o cara”! Sugiro que larguem os compêndios facilitado(re)s e o Direito plastificado… (pelo menos por algumas horas) e leiam Brecht. E também Machado, Eça, Victor Hugo… Parafraseando o velho Barão, diga-me o que estás lendo e eu te direi se sabes alguma coisa e se posso gastar dois dedos de prosa com você.

PS 1: não vou discutir, nos limites do espaço da coluna, as causas da criminalidade etc, etc. Apenas trouxe exemplos do que estamos “construindo” em terrae brasilis. Enquanto um laranja arrecada um bilhão para meter em campanhas e se discute se empresa “possui cidadania” e se mais uma vez o STF vai legislar para “fazer história” (sic), todos os dias casos como esses se escancaram diante de nossos olhos. Emocionamo-nos vendo Os Miseráveis, de Victor Hugo. Mas temos milhares de Valjeans por aqui. Com os quais não nos importamos. Nem um pouco.

PS 2: Em Tristes Trópicos, Levy Strauss descreve a vida nos seringais: “o fato de aquela gente se acostumar à miséria é algo tão presente, que a vida nem é percebida como sofrimento”. Isso serve, metaforicamente, também para dizer: o fato de nossos juristas se acostumarem com esse modo-de-estudar-e-aplicar-Direito é algo tão presente, que as injustiças e as idiossincrasias do e no cotidiano sem mais são percebidas. Talvez por isso, sejamos (tão) duros com pintores de paredes de cadeias e com pais que, atolados na miséria (des)humana, abandonam os filhos e, ao mesmo tempo, sejamos tão tolerantes com a sonegação de tributos… Acostumamo-nos com essas “misérias jurídicas”. Talvez por isso assistamos a pequena Portuguesa de Desportos ser depenada pelo STJD da CBF, em um caso que o porteiro de qualquer tribunal resolveria. Até o Conselheiro Acácio tiraria de letra… Alguém se deu a pachorra de ler a legislação da CBF, da FIFA e o Estatuto do Torcedor? E depois dizem nas salas de aula que o Direito é um sistema de regras… e princípios. Faltou avisar ao tal tribunal da CBF. Claro: esqueci que esse tal tribunal não lida com o Direito. Apenas com os direitos dos outros… Ah, Santa Joana, rogai por nós, habitantes dos tristes trópicos.


[1] Sabem o que aconteceu? São Paulo foi desclassificada na primeira rodada. Deve ter sido a desafinação da dupla ou trio de cantores… Pobre Adoniran!

 

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