Diário de Classe

A trollagem do aplicativo Tubby e o ponto cego do Direito

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7 de dezembro de 2013, 7h00

“O que você é capaz de fazer quando não está sendo vigiado por ninguém?” Esta pergunta, também feita em uma música do Capital Inicial, assume especial relevância se considerarmos os diversos mecanismos de controle social responsáveis pela vigilância ininterrupta dos cidadãos nos dias de hoje. Ela também coloca, implicitamente, o “ponto cego” do Direito e, de certo modo, explica todo o alvoroço gerado em torno dos polêmicos aplicativos Lulu e Tubby, que envolvem liberdade de expressão, privacidade, anonimato e (ir)responsabilidade.

A trollagem do aplicativo Tubby
Nesta sexta-feira (6/12), não houve o tão esperado lançamento do Tubby. Para quem não esteve conectado nos últimos dias, o Tubby seria um aplicativo vinculado ao Facebook que permitiria aos homens avaliarem, anonimamente, o desempenho sexual das mulheres, atribuindo-lhes notas de zero a dez, mediante o uso de hashtags. Na verdade, o Tubby seria uma resposta ao Lulu — aplicativo lançado nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil, onde já foram ajuizadas as primeiras ações indenizatórias — mediante o qual as mulheres podem dar notas aos homens, utilizando a mesma sistemática.

O pré-lançamento do referido aplicativo causou uma grande polêmica com seu slogan: “sua vez de descobrir se ela é boa de cama”. No site do aplicativo, havia inclusive uma contagem regressiva para o lançamento. Entre as hashtags que foram divulgadas constavam: #CurteTapas, #EngoleTudo, #SoMeCustouUmCinema, #ComiPorEducacao, #DaDePrimeira, #SoPareceSanta, #GemeBaixinho etc.

Segundo divulgado, o aplicativo vincularia automaticamente todas as usuárias do Facebook, de maneira que as mulheres que não quisessem participar deveriam se “descadastrar”, removendo sua “conta”. Centenas de milhares caíram nesta e efetuaram o procedimento indicado, ao final do qual o sistema informava: “fulana de tal arregou e não faz mais parte do Tubby”. Aquilo que poucos se deram conta é que não faz qualquer sentido alguém “descadastrar” um serviço antes mesmo dele estar em funcionamento…

Para aumentar ainda mais a polêmica, na última quarta-feira (4/12), os “criadores” do Tubby — dois geeks brasileiros, de vinte e poucos anos, que sequer concluíram a graduação — participaram do programa Pânico na Rádio, onde promoveram o aplicativo. A maior parte das questões girou em torno da responsabilidade legal. Na ocasião, eles esclareceram que não poderiam ser responsabilizados em razão do “termo de uso” do aplicativo, que seria uma ferramenta de “caráter meramente recreativo”, integrada com o Facebook, a quem caberia fornecer os dados de todas as suas usuárias.

A polêmica assumiu tamanha proporção que, ainda no mesmo dia, o juiz de direito da 15ª Vara Criminal de Belo Horizonte deferiu liminar, com base no artigo 37 da Lei Maria da Penha, proibindo o lançamento do aplicativo previsto para sexta-feira (6/12), sob pena de multa diária fixada em R$ 10 mil.

Na liminar (que não refere o número do processo e tampouco traz o timbre do Poder Judiciário de Minas Gerais), o magistrado argumenta que “há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, uma vez que, depois de ofendida a honra de uma mulher por intermédio do mencionado aplicativo, não haverá como repará-la".

Todavia, quando zerou a contagem regressiva à meia-noite de sexta-feira, foi divulgada uma nota oficial do Tubby, por meio de um vídeo publicado no YouTube (veja aqui, mas não esqueça de habilitar a legenda correta), no qual um dos supostos investidores do aplicativo revelou se tratar de uma brincadeira:

“Olá, meu nome é Pyong Lee, da cuboX. Sério, caras, vocês caíram nessa bobagem? […] Droga, pessoas não são objetos, e a intimidade de um relacionamento, por pior que tenha sido, não pode ser exposta dessa forma! Esse tipo de aplicativo pode até ser ‘mera brincadeira’, mas dão as ferramentas para pessoas anonimamente fazerem estragos na imagem pública das outras, caso ainda mais grave nos dias atuais, em que observamos intimidades filmadas por ex-namorados por exemplo vazando na rede e tendo repercussões drásticas. Sem falar no aspecto sexista, machista, heteronormativo e cruel, dentre outros retrocessos que esta futilidade promove. Vocês já ouviram falar de: respeito, intimidade e privacidade? Ou que tal deixar de ser: babaca, imaturo, sem noção e qualquer coisa do tipo hein? Olhem essas hashtags ridículas […] Não seja um imbecil. Trate as pessoas com respeito. Isso vale também pra nossa grande mídia que nunca checa fonte de nada. Sério que caíram nessa?”

Ora, como se vê, tudo não passou de uma farsa, uma trollagem, uma “pegadinha do Mallandro” (yeah-yeah… glu-glu… bilu-tetéia)! Em menos de uma semana, a campanha do Tubby contabilizou 1,5 milhão de pessoas no site, 850 mil resultados de busca no Google, 98 mil compartilhamentos do site somente no Facebook, e, em 24 horas, mais de 3 milhões de impressões no Twitter.

Até a Justiça mineira e o Ministério Público do Distrito Federal embarcaram nessa! Imagino quanta plausibilidade jurídica havia no pedido de liminar que foi deferido… Alguém terá de pagar as custas e os honorários. Esta é mais uma prova das ficções que atravessam o “mundo do Direito”.

Hiperexposição, anonimato e impunidade
Vivemos tempos de hiperexposição. Ao aderir às redes sociais, abdicamos da privacidade garantida pela Constituição. Através de sites de relacionamentos, compartilhamos dados, informações, fotos e vídeos pessoais. Publicamos desde o momento do parto dos nossos filhos e as refeições que fazemos até nossas intimidades e preferências sexuais. Nos últimos dias, sob o álibi do anonimato, utilizamos aplicativos de telefones celulares para “avaliar” o desempenho de nossos parceiros.

Como foi que chegamos a este nível de degradação humana? Qual o propósito de ferramentas como estas? Quais os limites do exercício da liberdade de expressão? É possível renunciar à privacidade deste modo? O que o Direito pode fazer a respeito?

Na verdade, a polêmica em torno do Lulu e do Tubby envolve, fundamentalmente, a discussão a respeito do exercício da liberdade de expressão e da vedação ao anonimato. Ao permitirem que os usuários avaliem anonimamente a performance sexual de seus parceiros, os aplicativos possibilitam que as pessoas se manifestem, livres de qualquer censura, sobre um tema que permanece sendo tabu em nossa sociedade: o sexo.

Como se sabe, o anonimato resulta na impossibilidade de toda e qualquer responsabilização. Por isto, ele é covarde. Se a autoria não pode ser verificada, o sujeito não pode ser imputado pelos excessos de seus atos. E, na ausência da lei, cada um pode fazer o que bem quiser. Não há punição. O céu é o limite.

Lembrei-me do último filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados (1999), em que aparecem elementos bastante semelhantes: desejo, sexo, anonimato e impunidade. O mesmo se aplica aos crimes contra a liberdade sexual, cometidos às escondidas, na clandestinidade, longe dos olhos de qualquer testemunha.

A sociedade invertida
Meu avô costumava dizer que a sociedade estava se invertendo. Passados alguns anos, temo que ele tivesse razão. Ao mesmo tempo em que nos revoltamos com o sistema panóptico; renunciamos, livremente, à nossa privacidade através do (ab)uso das redes sociais. Ao mesmo tempo em que gozamos com a possibilidade de avaliarmos e divulgarmos, anonimamente, a performance sexual de outras pessoas, através de aplicativos para smartphones, reivindicamos maior transparência de nossos congressistas. Ao mesmo tempo em que saímos às ruas para clamar pelo fim da impunidade e da corrupção, vibramos com a possibilidade de exercer nossa liberdade de expressão sem que tenhamos de nos responsabilizar pelos excessos que cometemos. Ao mesmo tempo em que a internet nos promete visualizar tudo, o sistema revela o ponto cego do Direito.

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