Critérios definidos

Há solução jurídica para a demarcação de áreas indígenas

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4 de dezembro de 2013, 7h10

Algumas distorções nos trabalhos da Funai que causaram indignação aos atingidos ocorreram em processos realizados sobre a égide do Decreto 1.775/96, cuja aplicação não é possível na maioria dos casos de demarcações atuais.

A Constituição Federal de 1988 definiu expressamente que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União, reiterando a de 1967, e reconheceu aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a posse permanente, competindo à União demarcá-las.

O erro central de quem tem operado as demarcações indígenas é aplicar diretamente o Decreto 1.775/96, como se o art. 231 da Constituição Federal fosse por ele regulamentado, o que seria uma inconstitucionalidade formal. Contudo, a regulamentação das demarcações não é feita diretamente pelo Decreto 1.775/96, mas pela Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), que foi recepcionada pela Constituição de 1988 em sua maior parte.

A Lei 6.001/73 diferencia as áreas indígenas em quatro tipos: a) Terras Ocupadas – são aquelas com posse efetiva e permanente por índios que as habitam, independentemente de demarcação, definindo como bens inalienáveis da União. Essas são as terras a que se refere o caput do art. 231, da CF; b) Áreas Reservadas – o Estatuto do Índio define que a União pode estabelecer áreas indígenas reservadas através de compra ou desapropriação. Não se confunde esse tipo com as de posse imemorial, tradicionalmente ocupadas. As áreas reservadas podem ser: b.1) reserva indígena – é o habitat com meios para subsistência; b.2) parque indígena – é área contida na posse de índios integrados e para preservação ambiental, como o Parque do Xingu; b.3) colônia agrícola indígena – área para exploração agropecuária, administrada pela Funai, onde convivam índios aculturados e membros da comunidade nacional; c) Território federal indígena – entende-se que não foi recepcionado pela CF/88; d) Terras de domínio indígena – aquelas adquiridas na forma da lei civil. Equivale à propriedade civil comum.

A interpretação das normas aplicáveis às demarcações deve ser feita de modo a preservar o sistema jurídico, pois o Decreto 1.775/96 regulamenta o Estatuto do Índio e não diretamente a Constituição Federal. A interpretação isolada a partir do decreto desintegra o conjunto normativo, levando a consequências desastrosas.

Do que se demonstrou anteriormente, somente as terras ocupadas, de que trata parte do Estatuto do Índio, são passíveis de demarcação administrativa na forma do Decreto 1.775/96, que nunca pretendeu desconstituir propriedades seculares, protegidas pelo art. 5º da CF.

O estatuto garante aos indígenas a posse permanente das terras que habitam, determinando a demarcação administrativa conforme processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. Assim como o art. 231 da CF/88, a demarcação administrativa só pode ser feita em terras da União e apenas em terras ocupadas pelos indígenas ao tempo da Constituição de 1988.

A nulidade e a extinção de atos jurídicos são apenas para os títulos que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos índios ou comunidades indígenas. A exceção é para as terras que tenham sido desocupadas em virtude de ato ilegítimo de autoridade ou particular, mas que tem de ser devidamente comprovada e não apenas pelo laudo antropológico unilateral.

Assim, tanto o caput do art. 231 quanto o Decreto 1.775/96 destinam-se unicamente às áreas ocupadas pelos indígenas em 1988. Isso decorre do corolário lógico de que a demarcação meramente administrativa somente pode ser feita em área que seja da própria União Federal, como são as áreas indígenas ocupadas.

Proibido riscar
Assim como qualquer particular, a União em suas áreas pode criar administrativamente divisões e modificar destinações. Não pode, no entanto, riscar o mapa de áreas privadas como se estivesse em seu próprio domínio, unilateral e inconstitucionalmente revogando títulos válidos.

No regime constitucional e legal brasileiro não é possível que um ente público desconstitua propriedade privada através de ato meramente administrativo. O direito de propriedade foi uma conquista histórica dos direitos humanos, que substituiu o sistema de domínio do rei ou da Igreja, garantindo aos cidadãos a propriedade de suas casas e os direitos correlacionados, como a inviolabilidade do domicílio e a privacidade. Trata-se o direito de propriedade de fator estruturante do modelo de República brasileiro e como tal deve ser tratado, conforme estabelece a cláusula pétrea do art. 5º da Constituição.

Para resolver o problema de criação de outras áreas indígenas, deve a União constituí-las no segundo formato previsto na Lei 6.001/73, de áreas reservadas, adquirindo-as pelos meios jurídicos disponíveis, em especial a compra e a desapropriação.

No entanto, essa constituição de áreas reservadas terá de obedecer a todos os preceitos constitucionais e legais, em especial os princípios do direito administrativo, dos quais se destacam o da legalidade e o da razoabilidade, cujo atendimento poderá ser avaliado judicialmente.

Nesse aspecto, não podem as demarcações mal iniciadas no formato do Decreto 1.775/96 serem transformadas em outro tipo no meio do caminho, por vício ao princípio dos motivos determinantes do ato administrativo. Equivocadas portanto as conclusões do CNJ acerca das demarcações em curso no Mato Grosso do Sul.

Causa dos conflitos
A extensão indevida da aplicação do Decreto 1.775/96 é que tem causado a série de conflitos entre indígenas e proprietários. Para aqueles, cria a expectativa de direito que não têm, estimulando uma espécie de revanche histórica. Para esses, impõe a perda de suas casas sem direito à indenização.

Com têm sido conduzidas as demarcações, há vícios a vários princípios constitucionais, em especial os da legalidade, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, de obtenção de uma decisão substancialmente justa e do princípio da proporcionalidade.

Ante a insatisfação das pessoas atingidas pelas demarcações, em decorrência dos vícios acima apontados, cuja condução fere o senso comum, é natural a busca de proteção através do Poder Judiciário, o que acaba postergando a solução do problema por vários anos.

O Judiciário, ao seu tempo, após um período de incompreensão da matéria e do contexto do problema, passou a clarear seu posicionamento no sentido de limitar a pretensão da União, da Funai e do MPF na condução das demarcações indiscriminadas.

Relativamente a aldeamentos extintos, a Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal afirma que “Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.

Mais recentemente tem-se várias decisões em que as demarcações foram restringidas, como pelo STJ no MS 4.821/DF, que impediu demarcação de área de reforma agrária; na ação 4.810/DF, no MS 1.835/DF, onde o ministro César Rocha disse que mero relatório de um técnico não pode derrogar títulos seculares, secundado pelo ministro José de Jesus Filho. O ministro Humberto Gomes de Barros afirmou que título público só se desconstitui por decisão judicial. Igualmente na MC 6480, do STJ, o relator José Delgado prestigiou os títulos de propriedade em detrimento da demarcação administrativa.

No Juízo Federal de Primeiro Grau, a Justiça Federal em Joinville (SC) suspendeu portarias no processo número 2009.72.01.005799-5/SC. O mesmo aconteceu na Justiça Federal em Chapecó, no mesmo estado. Mais recentemente a Presidência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região suspendeu a ordem de demarcação da Reserva de Mato Preto, no Rio Grande do Sul, por risco de lesão à ordem e ao patrimônio público.

Só no STF havia 144 ações discutindo demarcações, podendo se exemplificar com as liminares proferidas nos MS 28.541/DF; MS 28.555/DF; MS 28.567/DF e AC 2.556/MS. No Recurso Extraordinário 219.983-3/SP, o ministro Marco Aurélio afirmou que a ocupação indígena que caracteriza a tradicionalidade para efeitos de demarcação administrativa, na forma do art. 231 da CF/88, é um estado atual e não imemorial, sob pena de poder ser demarcada a Praia de Copacabana. Nesse julgado, o voto do ministro Nelson Jobim narra que a teoria do indigenato, propagada pela União, pela Funai e pelo MPF para justificar a demarcação em áreas particulares, não foi acolhida pelo constituinte de 1988.

19 salvaguardas
De todos os julgamentos envolvendo demarcações indígenas, o leading case é sem dúvida o da Petição 3.388, caso Raposa/Serra do Sol de Roraima, no qual o STF estabeleceu que o marco temporal da ocupação tradicional é a data da promulgação da própria Constituição. Também estabeleceu definições importantes, como o marco da tradicionalidade da ocupação, o marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional e o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”.

Como se vê, a questão relativa ao marco temporal da ocupação e da tradicionalidade da terra indígena é de vital importância no processo de demarcação, devendo-se registrar o brilhante voto do ministro Menezes de Direito, que estabeleceu 19 salvaguardas a serem obedecidas nas demarcações indígenas, a princípio determinando a sua aplicação a todos os casos.

Essas condicionantes definem que (1) o usufruto da riqueza pelos indígenas é condicionado ao interesse da União e não abrange (2) recursos hídricos e energéticos; (3) pesquisa e lavra de minerais, dependentes de autorização do Congresso; (4) garimpagem e faiscação.

Também (5) não se sobrepõe aos interesses da Defesa Nacional e do resguardo de riquezas; (6) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal fica garantida, independendo também de consulta às comunidades e à Funai.

Igualmente (7) não se pode impedir instalações de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, construções para prestação de serviços públicos. Ainda, o usufruto dos índios e o acesso de pesquisadores (8, 9 e 10) em reservas com áreas de preservação fica sob a responsabilidade e a administração do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

O ingresso, trânsito e permanência de não índios deve ser admitido nas condições da Funai, (11 e 12) não podendo ser objeto de cobrança de tarifas pelas comunidades indígenas, (13) mesmo para uso de estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia.

A condicionante 14 diz que as terras indígenas não poderão ser arrendadas ou objeto de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o usufruto e a posse direta; sendo (15) vedada aos não índios a caça, pesca, coleta de frutas ou agropecuária extrativista. (16) Os bens do patrimônio indígena, a exploração das riquezas e utilidades e a renda são tributariamente imunes.

Importante condicionante, e que já pautou o Parecer 99/2012 da AGU, é a 17ª, que veda a ampliação de área demarcada. A 18ª declara que os direitos relacionados às terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

Também importante condicionante é a 19ª, que diz ser  “assegurada a participação dos entes federativos durante o processo demarcatório”.

Em atenção ao teor desse julgamento, a Advocacia-Geral da União editou a Portaria 303, de 16 de julho de 2012, no qual as salvaguardas institucionais às terras indígenas foram estendidas à Administração Federal, conforme o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, a normativa foi suspensa após pressão da Funai, dos indígenas e das ONGs atuastes na questão indígena.

Sem critérios
Os processos administrativos de demarcação continuam a ignorar solenemente os requisitos fixados pelo Supremo Tribunal Federal, conduzindo as demarcações com critérios próprios e sem respeito a qualquer garantia processual aos interessados.

Com o julgamento dos Embargos Declaratórios no caso Raposa/Serra do Sol, há a expectativa de ser reeditada a Portaria 303/AGU. Com ela, as condicionantes passam a ser de atendimento obrigatório pelo Poder Público, como já aconteceu na demarcação da Reserva de Votouro/Kandóia, nos municípios gaúchos de Faxinalzinho e Benjamin Constant do Sul, conforme Parecer 99/2012 da AGU, que deu pela impossibilidade da ampliação da reserva.

A AGU poderia ter avançado na Portaria 303 nos aspectos de tornar adequados os procedimentos demarcatórios à Constituição Federal e à legislação infraconstitucional, adotando também a fixação do Marco Temporal e demais marcos. Mas o teor da portaria já será em si um avanço na questão demarcatória.

Frise-se que na Medida Cautelar da Reclamação 14.473, o ministro Marco Aurélio entendeu já aplicáveis as condicionantes estabelecidas na Petição 3.388.

Por fim, a finalização do caso Raposa/Serra do Sol estava dependendo do julgamento dos Embargos Declaratórios oferecidos contra a decisão do colegiado do STF, cujo relator foi o ministro Barroso.

Em seu voto, o relator entendeu que são válidas as condicionantes estabelecidas no julgamento da Petição 3.388, mas acolheu os embargos para declarar que seu efeito não é vinculante e de atendimento obrigatório pelas demais instâncias judiciais e administrativas.

No entanto, frisou o ministro Barroso que o caso é naturalmente referência, tratando-se de profunda e completa análise da matéria e cujo entendimento deveria naturalmente ser acolhido por todos os demais órgãos judiciais.

Mencione-se que, após o julgamento do caso Raposa/Serra do Sol, há um julgamento que consolida o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação do art. 231 da Constituição Federal e sua abrangência.

Trata-se do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 629.993. Nesse recurso, o STF reafirma o marco temporal de 1988 para a ocupação tradicional indígena. Além disso, diz expressamente que o art. 231 não se aplica à posse imemorial e que sua interpretação não pode quebrar todo o sistema jurídico pátrio então constituído.

O caso também é emblemático porque é relatado pela ministra Rosa Webber, que de modo expresso afirmou que a posse indígena não contemporânea à Constituição de 1988 não é abrangida pelo art. 231 e seu § 6º, da CF/88, no que foi seguida pelos demais ministros.

O caso se tratava de desapropriação indireta de área particular invadida por indígenas, com apoio da União e da Funai. A ministra entendeu que, se a União quiser destinar aos indígenas outras áreas que não as ocupadas tradicionalmente, deve desapropriar, obedecendo ao rito legal e indenizando os proprietários.

Disse o julgado referido que o esbulho promovido pela União e pela Funai deve ser tratado como desapropriação indireta e gera dever de indenizar. Como se vê, a conclusão não é diferente do que se expôs anteriormente, encontrando-se a solução na mera utilização da legislação já disponível.

Interpretação distorcida
O caos social causado pelas demarcações indiscriminadas foi causado principalmente pela má aplicação das normas incidentes, havendo interpretação distorcida do conjunto legislativo, para atender interesses políticos dos mais variados, em detrimento da Constituição e dos princípios republicanos e dos direitos das pessoas atingidas.

A regulamentação jurídica das demarcações não se limita ao art. 231 da CF/88 e ao Decreto 1.775/96, cuja aplicação é restrita aos casos de áreas ocupadas tradicionalmente pelos indígenas em 1988.

Para atender à necessidade de constituírem-se novas áreas indígenas, fora da hipótese do art. 231 da CF/88, a União pode adquirir terras pelos meios legais disponíveis, desde que atenda às normas e aos princípios incidentes, não podendo se valer do Decreto 1.775/96.

Tal entendimento é confortado pelas decisões judiciais, em especial o julgamento do caso Raposa/Serra do Sol e do Recurso Extraordinário 629.993.

Assim, já dispõe a União e a Funai de instrumental jurídico para realizar corretamente as demarcações de áreas indígenas, tanto nos casos de ocupação tradicional de área da própria União, como para constituir novas áreas com aquisição de particulares, respeitando o ordenamento jurídico e os direitos dos envolvidos.

Como sugestão final, fixado esse entendimento, deve cada área ser gerida buscando-se solução consensual, que respeite o direito dos proprietários e, ao mesmo tempo, permita às comunidades indígenas organizarem-se integradamente à comunidade local, evitando-se os danosos conflitos étnicos que têm ocorrido.

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