Contas à Vista

O projeto de Código de Mineração brasileiro e a CFEM

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

3 de dezembro de 2013, 7h01

Spacca
Em junho de 2013 foi enviado pela presidente da República ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.807/2013 que tratava do Novo Marco Regulatório da Mineração em 27 páginas e 59 artigos. Em 13 de novembro foi disponibilizado pela Comissão Especial criada para analisar o referido Projeto de Lei um texto preliminar para debate com 100 páginas e 130 artigos. Esta comissão, presidida pelo deputado Gabriel Guimarães (PT-MG) tendo por relator o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), realizou dezenas de audiências públicas Brasil afora, visando colher informações sobre o referido projeto, daí a amplitude ocasionada. De um projeto que era ruim, com partes boas, tornou-se um projeto bom, com partes ruins, mudando o acento predominante na análise do tema.

O projeto original tratava basicamente de três assuntos: regulação da atividade minerária, criação e transformação de órgãos públicos e aumento da carga fiscal e se autoenquadrava como uma norma que pretendia “dispor sobre a atividade minerária”, tendo sido transformado em um texto que desde o preâmbulo se autodeclara instituidor do “Código de Mineração Brasileiro”.  De fato, a abrangência de matérias tratadas nesse texto substitutivo é amplíssimo e merece o nome, embora, a rigor, não seja o primeiro Código de Mineração Brasileiro como se pode vir a pensar. Outros já existiram, sendo o atual de 1967. O substitutivo é mais amplo que o projeto enviado ao Congresso e trata da questão da oneração de direitos minerários e da criação de títulos de créditos minerários, entre outros aspectos, e que se constituem em novidades positivas.

 

A parte que era ruim no projeto original e, embora tenha melhorado, permanece ruim no substitutivo, é a denominada de “Encargos Financeiros do Titular de Direitos Minerários” e consta do art. 65 e seguintes. O projeto original era fiscalista e o Substitutivo assim remanesce, conforme se passa a expor, sem o intuito de esgotar a matéria.

Tratemos hoje apenas da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM). Suas alíquotas devem ser fixadas em lei ou em decreto? O caput do artigo 66 do substitutivo pretende fixar estas alíquotas na lei e o Poder Executivo pretende que as mesmas tenham apenas um valor-teto estabelecido na Lei, mas possam variar de acordo com critérios de mercado. A proposta é manter um sistema tal como ocorre com o IPI, em que as alíquotas podem ser alteradas por atos infralegais, com função extrafiscal, de acordo com os movimentos de mercado e a estratégia de política econômica do governo. Neste caso devem-se distinguir dois aspectos. O primeiro é o teórico, no qual as alíquotas poderem variar obedecido um teto de incidência é algo muito melhor e permite a adoção de políticas anticíclicas por parte do governo, compensando as usuais oscilações de mercado existentes no setor minerário. Porém há também um segundo aspecto, da fidúcia, no qual se estabelece que, para que haja esta liberdade de fixação de alíquotas, é necessário haver confiança legítima no governo, e o setor minerário acabou de passar por um apagão de dois anos, durante os quais nenhum pedido de autorização de pesquisa foi sequer analisado, sem que tivesse sido expedida norma nesse sentido. Os pedidos foram simplesmente engavetados, sem nenhum despacho, por dois anos! Logo, a despeito da solução teórica indicar um caminho, o setor empresarial teme o uso político desse instrumento. Ou, como ouvi em seminário recente sobre o tema, de forma jocosa: o Brasil não é a Suécia…

Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao aumento da carga fiscal, pois as reduções da base de cálculo hoje existentes não constam do substitutivo (artigo 65, caput). Atualmente se abate o valor do frete e do seguro, além dos tributos incidentes na operação. Há lógica nesse abatimento, pois permite que as minas localizadas em áreas com mais difícil logística tenham este custo reduzido no valor da CFEM. Com o afastamento destes abatimentos haverá aumento de carga fiscal o que é negativo para o setor.

Ademais, o substitutivo contém uma imprecisão terminológica que poderá gerar muitos problemas de interpretação, quando determina que a incidência passará a ser sobre a receita bruta, abatidos apenas “os tributos efetivamente pagos sobre a comercialização”. Quais são estes tributos e quando eles se tornam “efetivamente pagos”? O texto em vigor menciona “tributos incidentes”, o que é uma expressão de muito mais fácil determinação em um mecanismo de tributos plurifásicos, tais como o ICMS, o PIS e a Cofins. Consoante o texto proposta, o tributo será considerado pago ao final da cadeia econômica? E se for exportado ao seu final, quando não há incidência desses tributos, será mantido o abatimento? Será feita distinção entre contribuinte “de fato” e “de direito”? Esses aspectos, dentre outros, deveriam ser melhor detalhados, ou simplesmente ser mantida a fórmula atual, já consagrada. No mesmo sentido constata-se forte aumento da carga fiscal nas plantas industriais contínuas (artigo 66, parágrafo 1º), pois atualmente a incidência se dá quando ocorre o beneficiamento do bem mineral, e passará a ser computada apenas no “momento anterior à sua transformação industrial”, o que é mais oneroso.

Apenas para ilustrar, consideremos um caso concreto: uma empresa extrai e beneficia minério no município A e o remete através de transporte aquaviário por mais de 2 mil quilômetros até a cidade B onde ocorrerá sua transformação industrial. Hoje este frete é integralmente abatido do preço da CFEM, mas com as alterações propostas o aumento de custo desta operação será potencializado, pois o valor do frete não será abatido e o cômputo de custos da operação abrangerá não apenas o beneficiamento (ponto A), mas sua transformação industrial (ponto B).

Além disso, há um forte discurso governamental a favor do incremento da verticalização na cadeia econômica, visando reduzir a exportação de minério (quase) em bruto. Todavia, o substitutivo é lacunoso nesse sentido, devendo ser prevista redução de CFEM para as indústrias que não apenas extraíam o bem mineral, mas também o transformem em cabos, vergalhões, perfis etc. O projeto trata igualmente quem verticaliza a produção e quem não o faz. Ou seja, falta tornar concreto o que consta do substitutivo em seu artigo 2º, quando declara que “o poder público tem o dever de: VIII — implementar políticas públicas para a criação e o desenvolvimento das atividades de agregação de valor e de transformação dos recursos minerais em produtos acabados e semiacabados”.

Os problemas não param por aí. O artigo 66, parágrafo 2º do substitutivo traz para a CFEM um instituto que é extremamente contestado no direito tributário, que é o da pauta fiscal, ao mencionar a hipótese da Agência Nacional de Mineração (ANM) criar um “valor mínimo de referência” a ser utilizado como base de cálculo da CFEM. A leitura desse dispositivo me faz lembrar a Súmula 431 do STJ, que estabelece ser “ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal”. Ou seja, judicialização a vista, caso este preceito venha a ser mantido no texto.

A mesma importação de modelos se verifica no artigo 66, parágrafo 3º, quando se propõe aplicar à CFEM o regime de preços de transferência, utilizado com muitos problemas em matéria tributária. Esse assunto, inclusive, já foi objeto de veto da presidente da República quando da sanção ao projeto de conversão da Medida Provisória 581/2012, o que gera dúvidas quanto à sua tramitação legislativa em face do artigo 67 da Constituição. Mais judicialização a vista.

Não fossem suficientes os pontos acima indicados, o substitutivo ainda acresce outra equiparação com criticado instituto de direito tributário, que ocorre na transferência de bens entre dois estabelecimentos de um mesmo contribuinte. Até as pedras sabem que nesta hipótese não há incidência de ICMS, pois se trata de mera transferência física de mercadorias. A Súmula 166 do STJ veda a incidência desse tributo ao dizer que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Pois bem, o artigo 66, parágrafo 4º do substitutivo quer aplicar esta regra para a cobrança da CFEM, o que, além de ser contra o que estabelece o STJ, ainda é conflitante em muitas hipóteses com o artigo 66, parágrafo 1º, do mesmo substitutivo, que adota outra fórmula para tratar do caso.

Porém nem tudo é ruim neste âmbito das incidências da CFEM. O substitutivo criou duas normas específicas regulando a decadência em cinco anos (artigo 69) e a prescrição (artigo 70) também em cinco anos. Estas normas são bem vindas, pois a situação atual é completamente caótica, considerando que o DNPM advogou durante muito tempo que este prazo prescricional deveria ser computado pelo Código Civil, em 20 anos… Ou seja, a adoção de regras específicas é positiva e traz mais segurança ao setor. É certo, contudo, que o artigo 70, que trata de prescrição, poderia não importar os problemas existentes no direito tributário e determinar de forma precisa que seu cômputo começaria a partir da inscrição em dívida ativa, e não usar a velha e confusa fórmula do Código Tributário Nacional que estabelece seu início na “data em que o lançamento do débito se tornar definitivo”.

Por fim, encerrando a análise do âmbito da incidência da CFEM, o artigo 71 traz boa inovação ao estabelecer o princípio da anterioridade nessa matéria. Contudo, menciona que tal preceito deve ser obedecido mesmo quando houver redução da incidência. Ou seja, está correto o uso da anterioridade para aumentar a incidência, mas seu uso é incongruente para reduzir a incidência.

No que tange ao rateio federativo da CFEM, o Substitutivo anda um pouco melhor, necessitando, contudo, de alguns ajustes.

Foi redividido o bolo arrecadado a fim de incluir uma parcela de 10% para ser rateada entre os “municípios não produtores”, que sejam impactados pela atividade minerária (artigo 68, IV). A ideia é positiva e nitidamente se espelha nos royalties do petróleo onde existe tal redistribuição. Há forte contestação quando o pagamento desta parcela é efetuado na extração de petróleo marítimo, pois o impacto é baixo ou inexistente, porém ela se mostra bastante adequada quando se trata de exploração terrestre. Logo, entendo que o substitutivo andou bem ao criar esta redivisão do montante arrecadado com os municípios impactados. Será necessário analisar com muita cautela este conceito de impacto, pois uma barcaça carregada de minério que atravesse a hidrovia do Tietê ou que navegue pelo rio Amazonas não impactará todos os municípios que se encontram no trajeto, mas essa é uma questão que deverá ser analisada na regulamentação a ser elaborada.

Outra regra de federalismo fiscal que poderia ser melhor ajustada é a que determina a vedação ao uso dos recursos distribuídos no pagamento de dívidas e no pagamento de salários (artigo 68, parágrafo 3º). Isto porque vedar é insuficiente. O mais adequado seria vincular os recursos à criação e manutenção de infraestrutura, bem como à capacitação de pessoal (não me refiro ao pagamento de salários, por certo). Aqui o caráter de transgeracionalidade do direito financeiro deve ser predominante, pois se trata de receita oriunda de recursos naturais não renováveis, que devem ser implementados com vistas não só à presente geração, mas também com os olhos voltados às futuras gerações.

Por fim, são criados “conselhos de representação da sociedade e do setor produtivo”, paritários, no âmbito municipal e estadual, para fins de “acompanhamento e aplicação dos recursos da CFEM” (artigo 68, parágrafo 6º), o que me parece bastante salutar e encontra-se de acordo com a ideia de controle social do uso dos recursos públicos. Temo apenas pela possível superposição de atribuições com a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), mas certamente isso será melhor clarificado no regulamento.

As observações acima expostas foram realizadas em um workshop ocorrido no dia 29 de novembro de 2013 sobre o novo marco regulatório da mineração, na PUC-SP, organizado pela professora e desembargadora federal Consuelo Yoshida, que coordena o Centro de Estudos e Pesquisas Tecnológicas em Direito Minerário Ambiental naquela universidade. Fiquei muito contente em participar daquela atividade acadêmica junto com outros colegas, tais como Jorge Alex Athias, da Universidade Federal do Pará – UFPA, José Angelo Remédio Junior (PGESP), Bruno Kono (SEMMA/SFX), Gustavo Niskier (representante da Vale) e Ricardo de Oliveira Moraes (Superintendente do DNPM/SP). E dentre os mestrandos e doutorandos presentes registro Flávia Araújo, da PUC-SP e Alexandre Silveira, da USP. Constatei a preocupação daquele núcleo de pesquisas não só com a parte ambiental, mas também com questões vinculadas ao direito financeiro aplicado à mineração. É extremamente salutar e deve ser incrementada esta cooperação entre Universidades de qualidade, tais como a PUC-SP, a USP e a UFPA nessas áreas do conhecimento jurídico.

Agora é a hora da crítica construtiva, visando aperfeiçoar o projeto ainda em debate no Congresso. Existe muito mais a ser analisado no substitutivo sob a ótica financeira, o que me obriga a voltar ao tema em outra oportunidade.

Autores

  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!