Atavismo civilista

Advocacia pública de governo é impossibilidade lógica

Autor

  • Pablo Bezerra Luciano

    é presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil e diretor de comunicação do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

31 de agosto de 2013, 8h52

É até lugar comum enunciar que, em uma República, o poder político emana do povo, e que nela os governantes se alternam no poder por meio de eleições periódicas. Em desdobramento dessa ideia básica, compreende-se em lições preliminares de Direito Administrativo que, em razão do princípio da impessoalidade (que, em rigor, é um sub-princípio do republicanismo), os governos devem mirar a satisfação dos interesses da sociedade.

A impessoalidade exige do gestor o comedimento de evitar tratar a máquina pública como se fosse uma coisa sua, que estivesse ao seu dispor para satisfação de seus interesses particulares. A administração impessoal é aquela que se conduz de forma profissional e voltada à satisfação dos interesses públicos. Entende-se que, em razão da república e da impessoalidade, o que verdadeiramente governa a ação do Estado, em todas as suas manifestações, é a ideia de dever e de função. Não existe entidade, órgão, poder ou função estatais que não esteja preordenado à satisfação de interesses da sociedade. E mais: nenhuma entidade, órgão, poder ou função estatais pode ser vista como guardiã exclusiva dos interesses da sociedade.

Sem qualquer relação de primazia ou de hierarquia entre si, as funções estatais constitucionalmente reconhecidas só se justificam, numa República, se atuam em prol da sociedade, e não de interesses personalíssimos e sectários. Legislativo, o Executivo, o Judiciário, o Ministério Público, a advocacia pública e a Defensoria Pública, todas essas funções estatais, coordenam-se tendo em vista a realização do interesse público, pois o republicanismo a todas vincula.

No âmbito de um processo judicial, por exemplo, o Ministério Público e advocacia pública podem ter, cada um, uma visão específica sobre o que vem a ser o interesse público numa determinada situação concreta, e devem, cada um lutar à base do contraditório por suas convicções. Ao final do processo, com a decisão judicial, ambos, Ministério Público e advocacia pública, independentemente do resultado, contribuíram para uma decisão mais ponderada e idealmente mais próxima do que deve ser considerado o interesse público. Vitorioso ou sucumbente o Ministério Público ou a advocacia pública, ainda assim, nenhuma dessas instituições pode se apropriar da situação intérpretes exclusivos dos interesses da sociedade. Há, apenas, uma diferença de ponto de vista ou de método pelo qual todas essas instituições estatais buscam a justiça e a satisfação dos interesses públicos, os quais, é certo, permanecem numa eterna zona de imprecisão.

No entanto, em razão de preconceitos patrimonialistas que tardam demais a ser superados, não há ainda uma ampla aceitação à ideia de uma advocacia pública de Estado, ou seja, que esteja preordenada a defender os interesses da sociedade. Há uma certa opinião generalizada que vê como muito normal que os advogados públicos na consultoria administrativa e no contencioso judicial sejam obrigados a seguir as orientações dos gestores e administradores públicos, em consagração à ideia de advocacia pública de governo. O advogado-geral da União, por exemplo, em entrevista dada à Revista Eletrônica Consultor Jurídico, disse que se a presidente da República achar seu parecer um absurdo, seu dever seria alterá-lo (clique aqui para ler a entrevista e aqui para uma crítica). E até mesmo no âmbito do mais elevado tribunal brasileiro é possível divisar um discurso legitimador de uma advocacia pública de governo, ou seja, submetida à vontade dos administradores públicos, conforme tive oportunidade de demonstrar amiudadamente em artigo publicado recentemente (clique aqui para ler).

Todavia, essa visão de mundo equivoca-se desde o princípio, pois submissão e advocacia são ideias mutuamente excludentes. Conquanto num contrato de mandato convencional, regido estritamente pelas leis civis, esteja o mandatário obrigado a seguir as instruções do mandante (art. 679 do Código Civil), não se costuma notar que no mandado judicial outorgado a advogados não se admite esse tipo de interferência. Aliás, não se percebe que, nos termos do art. 692 do Diploma Civil, “o mandato judicial fica subordinado às normas que lhe dizem respeito, constantes da legislação processual, e, supletivamente, às estabelecidas neste Código”, de modo que comete grande erro aquele que medita sobre o contrato de mandato judicial como se fosse meramente um contrato de mandato convencional cujo mandatário é um advogado.

Com efeito, a independência de manifestação é o estatuto básico da advocacia, gravada ostensivamente no parágrafo 1o do art. 31 da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da OAB): “§ 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância”. No mesmo sentido, estipula o Código de Ética e Disciplina da OAB que é dever do advogado “atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé” (art. 2o, parágrafo único, II). E, mesmo quando vinculado ao cliente ou constituinte, por uma relação empregatícia ou de prestação permanente de serviços, deve o advogado “zelar pela sua liberdade e independência” (art. 4o do Código de Ética e Disciplina). Em poucas palavras: o cliente não é senhor da estratégia nem abordagem jurídica que seu advogado deve imprimir para lhe defender os direitos.

Nenhum advogado, público ou privado, submete-se no seu mister jurídico ao arbítrio de seu cliente. Bem ao contrário, quando procurado para promover demandas aventureiras, deve o advogado demover seu cliente desse intento (art. 2o, parágrafo único, VII, do Código de Ética e Disciplina). Além disso, é importante destacar que se considera “legítima a recusa, pelo advogado, do patrocínio de pretensão concernente a lei ou direito que também lhe seja aplicável, ou contrarie orientação sua, manifestada anteriormente” (art. 4o do Código de Ética e Disciplina).

Tais dispositivos revelam que, no desempenho de sua atividade, todo o causídico deve se abster de negociar seu próprio entendimento, sob pena de não merecer a qualificação de advogado. Sua liberdade de manifestação nem mesmo seu cliente pode cercear ou dirigir. O que o advogado pode negociar, e ainda assim de forma bem acicatada por estreitos limites éticos é o seu trabalho[1], e não o seu entendimento.

O que vale para as relações essencialmente privadas entre clientes e advogados também vale, com razões ainda mais pronunciadas, para as relações entre advogado público e governantes. Aliás, bem vistas as coisas, notar-se-á que não existe qualquer relação jurídica entre o gestor público e o advogado público. Não há mandato convencional nem mandato judicial. Há, apenas, uma desejável coordenação, sem qualquer relação hierárquica.

Explica-se: tanto a atividade do gestor como a atividade do advogado público são determinadas diretamente pela lei e pela Constituição, e não por um acordo de vontades. Não existe contrato de mandato entre gestor e o advogado público. O advogado público exerce seu múnus de defender as políticas públicas a partir de autorização e dever legais, e não a partir de um acordo com o gestor. Não se trata de atividade negociada, nos moldes do que se pratica na advocatícia privada. O gestor não tem a liberdade de escolher o advogado público que mais lhe agrade. A vontade e o arbítrio do administrador público, de modo algum, interferem na atividade que o advogado público cumpre desempenhar.

O advogado público e o gestor desempenham atividades autônomas autorizadas diretamente do ordenamento jurídico, e não de uma relação jurídica entre si, não obstante seja muito desejável que ambos, no dia a dia, coordenem-se em suas atividades.

Não deixa de ser curioso que se diga que, nos termos da lei, o advogado público esteja dispensado da apresentação de procuração (o instrumento do mandato), como se o desempenho de sua atividade fosse derivado de um contrato de mandato[2]! Ora, como não existe acordo de vontades entre o gestor e o advogado público, não há e não pode haver qualquer relação contratual entre eles… Como, então, pode-se falar e pensar em advocacia pública “de governo” se o advogado público não assina qualquer contrato de mandato com o governante?

Diz-se, amiúde, em uma linguagem que não nega sua origem civilista, e um hábito reprovável de pensar institutos de direito público com os olhos no direito privado, que o advogado público tem um mandato “ex vi legis”, ou seja, derivado diretamente da lei. Porém, tratando-se de uma atividade regida sobretudo por normas de caráter público, de fundo nitidamente estatutário, não convém, nem mesmo a título de metáfora ou metonímia referir-se à atividade do advogado público como derivada de um mandato, uma figura de matiz essencialmente civilista, na qual desponta em importância a ideia de vontade privada e não de função pública.

Não faz sentido então inferir que, dentro do quadro geral das funções estatais, todas as instituições constitucionais estariam diretamente preordenadas à satisfação dos interesses públicos, com exceção da advocacia pública, que representaria os governos, a partir de relações de subordinação assemelhadas ao mandato convencional previsto nas leis civis. A ideia de advocacia pública “de governo” por violar o núcleo essencial da advocacia, não passa de um paradoxismo, verdadeira “contradictio in terminis” e uma impossibilidade lógica. Trata-se de um inaceitável atavismo civilista bastante revelador nossas raízes patrimonialistas e de nosso crítico déficit de republicanismo.


[1] Nos termos do art. 5º do Código de Ética e Disciplina da OAB, “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização.”

[2] Nesse sentido, dispõe o art. 9º da Lei nº 9.494/1997 que “a representação judicial das autarquias e fundações públicas por seus procuradores ou advogados, ocupantes de cargos efetivos dos respectivos quadros, independe da apresentação do instrumento de mandato”.

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