Sonegação de impostos

A sociedade paga a conta dos clubes de futebol

Autor

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

31 de agosto de 2013, 7h25

A escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo e a cidade do Rio de Janeiro para receber as Olimpíadas trouxe um sentimento de orgulho aos brasileiros. Ao mesmo tempo gerou um otimismo com a expectativa de injeção de capital e viabilização de obras estruturais que contribuiriam para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos brasileiros. Todavia, ao que parece, esse anseio não será concretizado.

Durante a realização da Copa das Confederações a insatisfação da população com a má gestão do erário provocou uma onda de manifestações contra o desperdício de dinheiro público empregado na construção de estádios (que em muitos casos se tornarão “elefantes brancos”), contra os benefícios fiscais concedidos à Fifa, contra as viagens feitas às custas dos cofres públicos para que políticos pudessem participar de convescotes e assistissem aos jogos do Brasil, entre outros fatos.

Mais recentemente os clubes de futebol passaram a fazer grande pressão junto ao Governo para que fosse editado um novo parcelamento fiscal objetivando regularizar seus débitos, o que na prática concretizará mais um perdão de dívidas fruto da sonegação.

Importante ressaltar que mesmo tendo sido concedido pelo Governo Federal mais de cinco parcelamentos excepcionais nos últimos dez anos os clubes de futebol, em regra geral, não conseguiram se organizar para regularizar a situação fiscal perante a União. Lembrando que o Timenania (um desses parcelamentos excepcionais) foi comemorado pelos clubes como a salvação para seus débitos fiscais, e apenas parte ínfima deles estão pagando as parcelas regularmente.

Enfim, constata-se que há uma política reiterada das administrações dos clubes, mais conhecida como cartolagem no jargão boleiro, de privilegiarem os investimentos no elenco para poderem ter capital político e permanecerem no poder em detrimento do cumprimento dos deveres previstos em lei, dentre eles o pagamento de tributos.

Independente da paixão que o futebol desperta nos brasileiros devemos lembrar que a atividade financeira do Estado moderno está ligada à necessidade de captar, gerir e executar os recursos públicos para a concretização dos interesses da sociedade. Logo, para o alcance dos objetivos e atividades a serem exercidas pelo Estado será necessária a arrecadação de recursos, a qual não se esgota em si mesma, sendo um instrumento para a concretização do bem comum.

Ocorre que para a construção de um país mais igualitário é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações, como é o caso dos clubes de futebol que, em sua maioria, deixam de pagar deliberadamente os tributos.

Nesse pormenor, recente estudo publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), nominado como “Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação”[1] constatou que, levando em conta a média dos indicadores de sonegação dos tributos que têm maior relevância para a arrecadação (ICMS, Imposto de Renda e Contribuições Previdenciárias), poder-se-ia estimar uma sonegação de 28,4% da arrecadação, a qual equivale a 10% do PIB, representando o valor de R$ 415,1 bilhões caso levado em conta o PIB do ano de 2011. Portanto, tomando esse indicador como base poder-se-ia afirmar que se não houvesse evasão, o peso da carga tributária poderia ser reduzida em quase 30% e ainda manter o mesmo nível de arrecadação, promovendo, assim um benefício para toda a sociedade.

A título comparativo podemos ainda dizer que o desvio provocado pela sonegação é muito maior do que a corrupção, onde estudos da Fiesp constatam que o custo médio anual da corrupção no Brasil pode ser calculado entre 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões, representando aproximadamente de 1,5% a 2,6 % do PIB.[2]

Somado a isso, e diante da regressividade do sistema tributário brasileiro, tendo em vista a prevalência da matriz tributária sobre o consumo, a sonegação é ainda mais nefasta para com os mais pobres, os quais, por consumirem praticamente toda sua renda, não possuem meios para sonegar, pagando ainda, proporcionalmente, maior tributação. Isso se comprova pelo fato de que quem ganha até dois salários mínimos paga quarenta e nove por cento dos seus rendimentos em tributos, mas quem ganha acima de trinta salários paga vinte e seis por cento. Portanto, o contribuinte de baixa renda além de não ter mecanismos para promover a sonegação, uma vez que grande parte da incidência de sua tributação é sobre o consumo, ainda tem de arcar com o peso da sonegação dos outros.

Enfim, para eliminar essa injustiça fiscal é essencial que o Estado seja dotado de órgãos de arrecadação bem estruturados para exercer o combate à sonegação. Por essa razão, o Ordenamento Jurídico Brasileiro incumbiu à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a arrecadação dos tributos e demais receitas, não pagas e inscritas em dívida ativa da União.

A cobrança dos créditos inscritos em dívida ativa da União garantirá a isonomia entre o devedor e o cidadão que paga seus tributos, evitando, também, a concorrência desleal e todas as suas consequências nefastas, como o desemprego.

Um órgão de recuperação bem aparelhado e independente propiciará a diminuição da sonegação, garantindo, consequentemente, maior disponibilidade de caixa para a execução das políticas públicas.

Todavia, a política fiscal do governo passa ao largo dessa realidade. Primeiro porque o órgão responsável pela execução das dívidas tributárias (PGFN) carece de uma carreira efetiva de apoio, estrutura física, técnica e instrumental adequadas para o exercício das atividades dos Procuradores da Fazenda Nacional, carreira esta que sequer tem seus quadros completos (centenas de cargos vagos não foram providos), os seus sistemas informatizados não são integrados, entre outros problemas.

Segundo porque os parcelamentos cíclicos alimentam a sonegação, na medida em que projetam “planejamentos tributários” em que os sonegadores podem de tempos em tempos regularizar sua situação fiscal protraindo o pagamento dos débitos no tempo, o que está em vias de acontecer com os clubes de futebol. Para ilustrar basta tomarmos como referência o último parcelamento excepcional editado pelo Governo Federal, o Refis da Crise. Assim, se um devedor tivesse adotado a prática deliberada de sonegar, aplicando o valor do tributo não pago em renda fixa ou outro investimento similar, e tivesse optado pelo referido parcelamento adotando o pagamento à vista, com desconto de multa, juros e encargos, teria ainda tido lucro com tal operação[3].

Diante desse quadro quando se observa determinado cartola de futebol reclamando na mídia do trabalho realizado pelos Procuradores da Fazenda Nacional, chegando inclusive a pressioná-los no exercício das atribuições, pensa que assim conseguirá um parcelamento de seus débitos. Parece até que sonegar é o correto, ou ainda, uma prática tolerável. Talvez esse cartola fundamente seu raciocínio na idolatria que o futebol desperta, provocando a sensação de que os clubes estariam à margem do Estado Democrático de Direito.

Contraditoriamente ao discurso de crise ou falta de recursos, os clubes estão aumentando cada vez mais sua arrecadação, gastando milhões no pagamento de seus atletas e técnicos e ainda se acham no direito de deixar deliberadamente de pagar tributos para depois pressionar o governo, a cúpula da PGFN e da Advocacia-Geral da União (AGU) para a concessão de parcelamento ou barganhar descontos.

Nesse contexto é importante registrar que, mesmo considerando as precariedades existentes, os Procuradores da Fazenda Nacional estão cumprindo com seu mister, protegendo o dinheiro do povo, pois através do seu trabalho, durante os últimos três anos foram economizados mais de R$ 1 trilhão aos cofres públicos, bem como arrecadado mais de 60 bilhões de reais. Logo, cada R$ 1 investido no órgão traz um retorno de mais de R$ 700 para a sociedade e o estado.

Pode-se somar aos dados aqui apresentados o alto índice de vitórias da PGFN nas causas em que há contestação, aqui tomado em sentido lato, chegando a 88% de vitórias, comprovando a alta especialização e dedicação dos Procuradores da Fazenda Nacional.[4]

Inexorável ressaltar que esses resultados foram atingidos a despeito de uma carga de trabalho e condições impostas aos integrantes da PGFN serem bem inferiores àquelas existentes no Poder Judiciário, paradigma em relação aos órgãos/instituições envolvidas com a prestação jurisdicional, o qual conta com cerca de 19 servidores para auxiliar o trabalho de cada juiz Federal, enquanto os procuradores da Fazenda Nacional têm uma média de menos de um servidor para apoiar as atividades de cada membro. Isso sem registrar que cada procurador da Fazenda Nacional é responsável por uma média de 7 mil processos judiciais, carga 30% maior que a dos magistrados federais, sem contar as inúmeras atividades administrativas atinentes aos Procuradores da Fazenda Nacional.[5]

Esses números demonstram que a realidade existente na PGFN não é condizente com a condição estratégica do órgão, bem como o fato de que a União não tem combatido a sonegação de forma efetiva.

A esse respeito temos que a preservação da função estratégica da atividade de fiscalização e arrecadação da União é garantida desde a criação do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) por meio do Decreto-Lei 1.437/75, o qual tem como escopo financiar o reaparelhamento e reequipamento das atividades de fiscalização e arrecadação da União, conforme preconiza o artigo 6° da legislação citada. Todavia, a União, a despeito do que determina a Lei 7.711/88, a qual vincula as receitas do fundo, na subconta da PGFN, para reestruturação do órgão, tem contingenciado esses valores para os fins mais diversos possíveis, entre eles a realização do superávit primário.[6]

A falta de cumprimento da lei e a possibilidade de intervenção política para favorecer sonegadores contumazes, como é o caso de grande parte dos clubes de futebol, evidenciam que o combate à sonegação não tem papel relevante para o Governo Federal. Ao permitir a eternização dessa realidade a administração federal desdenha de milhões de brasileiros que trabalham quase quatro meses por ano para pagar seus tributos.


[1] Disponível em: <http://www.sonegometro.com/artigos/sonegacao-no-brasil-uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao> Acesso em: 20.08.2013.

[2] Disponível em:

[3] PLUTARCO, Hugo Mendes. Tributação, assimetria de informações e comportamento estratégico do contribuinte: uma abordagem juseconômica. 2012. 125 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2012.

[4] Disponível em:

[5] GADELHA, Marco Antônio. Os Números da PGFN. 2. ed. Sinprofaz. Brasília: 2011. Disponível em: <http://www.sinprofaz.org.br/publicacao.php?id=110927181741-1a3209da4c42460ab1808cb468ad34f6&arquivo=/s/images/stories/pdfs/numeros_pgfn_2011.pdf&titpub=Os%20N%C3%BAmeros%20da%20PGFN%20-%202011&> Acesso em 23.10.2012.

[6] NUNES, Allan Titonelli. NETO, Heráclio Mendes de Camargo. País deve aplicar receita da PGFN no próprio órgão. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. 23 de agosto de 2011. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2011-ago-23/pais-investir-receita-pgfn-proprio-orgao> Acesso em 23.10.2012.


Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!