Problemas e soluções

A falácia do processo eletrônico como avanço

Autor

30 de agosto de 2013, 14h02

O processo eletrônico tem sido implantado e defendido pelos tribunais do país afora sob o argumento de que representa a modernização da Justiça, a qual trará ganhos de produtividade para todos. Esse argumento, contudo, não é verdadeiro.

Antes de mais nada, é preciso entender que o uso da tecnologia cibernética só representa um ganho real se for capaz de ampliar os graus de liberdade de TODOS os que participam do processo. Se houve perda ou diminuição do grau de liberdade de algum dos participantes, ou transferência de responsabilidades entre eles, com ganho para uns (que deixam de ter certas responsabilidades) e perda para outros (que passam a ter certas responsabilidades que antes não tinham), então, não se poderá falar em aumento dos graus de liberdade com a incorporação e implementação das novas tecnologias.

O processo eletrônico, nos moldes em que está sendo implementado, definitivamente representa grande perda de grau de liberdade para os que dele participam, principalmente para a sociedade e para aqueles que soem representar os indivíduos, os advogados, os quais participam do processo. Logo, o argumento de que o processo eletrônico representa um bem, um avanço, é absolutamente falso.

Analisemos. No processo convencional, com suporte em papel, a parte constitui advogado, assinando uma procuração, e a ele entrega os documentos que devem instruir a causa. O advogado elabora a petição, anexa os documentos, e, assim, forma um só “arquivo” (a palavra vai entre aspas para veicular o conceito de arquivo utilizado na informática, como reunião de informações concentradas num único meio), e leva esse único arquivo ao protocolo do tribunal. Em menos de um segundo, o funcionário do tribunal apõe a chancela ou carimbo de protocolo e pronto: aquela petição com todos os documentos que a instruem, formando um só “arquivo” em mídia de papel, está protocolizada e devidamente entregue ao Poder Judiciário.

Se se tratar de petição inicial, o advogado qualifica as partes ao elaborar a petição, logo no preâmbulo. Se se tratar de contestação, não precisa qualificar. Tampouco o advogado necessita cadastrar-se como patrono da causa. O cadastro do processo, das partes que nele intervêm e dos respectivos advogados é tarefa que incumbe ao Poder Judiciário.

Já no processo eletrônico, as coisas mudam totalmente, sem nenhum ganho de produtividade para as partes e seus advogados. Com efeito, o advogado, além de prestar os serviços jurídicos que lhe são próprios e constituem o objeto da sua contratação, também precisa ser um expert em informática. Isso porque depois de elaborar a petição (que não precisará mais ser impressa), deverá salvá-la no formato específico para que possa ser enviada e recebida pelo juízo a que se destina.

Os documentos que o cliente entrega ao advogado deverão ser digitalizados, e os originais terão de ser mantidos até o fim do processo. Eis aí a primeira transferência de responsabilidade. Antes, quem estava obrigado a manter os documentos do processo era o tribunal. Agora, é a parte ou seu advogado.

Além disso, os arquivos imagens obtidos com a digitalização dos documentos não podem ter um tamanho (em bytes) além daquele estabelecido pelo tribunal. E cada tribunal adota um procedimento específico, um tamanho máximo de arquivo imagem, o que dificulta tremendamente o trabalho do advogado, que, se não for ele próprio um perito em informática, terá de contratar alguém para fazer os ajustes necessários a fim de que os arquivos estejam adequados às exigências dos tribunais, cujo desatendimento ou impede a transmissão dos arquivos, ou acarreta sua não recepção. 

Há tribunais, a exemplo do de São Paulo, para os quais o arquivo a ser transmitido não pode ser maior do que 10 MB, a soma de todos os arquivos a serem transmitidos não pode ultrapassar 80 MB e cada página de cada arquivo não pode ter tamanho superior a 300 KB. Então, o que seria um único arquivo em mídia de papel sem nenhuma exigência de formatação ou conformação, passa, com o processo eletrônico, a ser dividido em muitos arquivos, os quais devem ainda observar todas as restrições impostas pelo tribunal para que sejam aceitos como peças do processo. Conclusão: ponto negativo para o processo eletrônico, pois com tais exigências restringem enormemente o acesso à Justiça.

Mas não para aí. Ao entrar com uma petição, dependendo do tribunal, o advogado deve cadastrar todas as partes e todos os advogados que nela intervêm. Eis mais um ponto negativo, pois transfere para o advogado o que antes era tarefa do Poder Judiciário. Só que o Poder Judiciário não está obrigado a cumprir prazos exíguos, enquanto as partes e seus advogados estão. Isso significa que no processo convencional em suporte de papel, os prazos não são encurtados pela perda de tempo com a “transmissão” de dados ou “arquivos” para o Judiciário.

Afora isso, a transmissão em si mesma considerada, no processo eletrônico, só tem um ponto positivo: pode ser feita 24 horas por dia, enquanto no processo convencional, apenas no horário de expediente forense. 

Mas para aí. No processo convencional, é possível “transmitir” (leia-se entregar e protocolizar), por exemplo, 50 petições com dez laudas cada uma, instruídas com documentos perfazendo o total de 200 laudas cada petição completa, num mesmo dia e em pouco mais de cinco minutos, tempo necessário para o serventuário da Justiça apor a chancela ou carimbo de protocolo em cada petição e na respectiva cópia. 

Já a transmissão eletrônica dessas mesmas 50 petições, depende de uma conexão com a internet, do volume de tráfego na rede e do congestionamento dos servidores do tribunal para onde são transmitidas, da velocidade da transmissão. E mesmo que tudo esteja funcionando às mil maravilhas, consumirá, no caso do exemplo dado, pelo menos um dia inteiro, se não mais. Se se comparar o tráfego na rede (congestionamento de acesso) com as filas nos guichês de protocolo (podendo-se até mesmo adicionar o trânsito nas vias de acesso ao fórum), chegar-se-á à conclusão que estas andam muito mais rapidamente do que aquele, pois consegue-se chegar ao fórum e protocolizar as mesmas 50 petições retrorreferidas em menos tempo do que o necessário para transmiti-las pela internet no processo eletrônico.

Adite-se, o cadastro que as partes, e naturalmente seus advogados, devem fazer ao peticionarem. O tempo enorme que se perde para preencher todos os formulários eletrônicos, escolher a classificação da petição numa categoria preestabelecida pelo tribunal num rol tão enorme quanto falho, pois não esgota todas as possibilidades classificatórias.

Não fora isso bastante, a adoção do processo eletrônico tem levado a que muitos juízes não recebam mais os advogados para despachar, pois o envio remoto da petição é usado como “justificativa” para não ouvir o que o advogado tem a dizer, o qual passa a ouvir sempre a mesma ladainha: “Quando a petição chegar, eu a analisarei, portanto, doutor, aguarde”. Os pedidos de liminar ficaram, assim, extremamente álgidos e não raro prejudicados.

A conclusão a que se chega é que o processo eletrônico ainda está longe, muito longe do ideal para ser adotado com exclusividade. Não há, pelo menos ainda, uma tecnologia que permita a ampliação dos graus de liberdade de todos os que participam do processo judicial capaz de assegurar uma real e efetiva melhoria que possa ser qualificada como um avanço verdadeiro na qualidade da prestação do serviço de tutela jurisdicional.

O processo eletrônico tem sido implementado pelos diversos tribunais do país, sem exceção de nenhum, com sacrifício do grau de liberdade que as partes e seus advogados, que são os verdadeiros usuários do serviço de prestação da tutela jurisdicional do estado, aos quais os tribunais têm transferido a responsabilidade pela prática de diversos atos que antes incumbia aos órgãos desses tribunais, e antes de constituir um avanço, constitui um retrocesso, porque tem imposto grandes dificuldades ao acesso pleno e amplo à Justiça.

Desse modo, parece mesmo que o apreço com que os tribunais o veem reside exatamente no fato de que sua implementação, assim com uma tecnologia ainda tão precária, pode ajudá-los a represar o afluxo de processos que a Justiça não tem condições de dar conta. Perde com isso toda a sociedade. Mas como o sacrifício de seus direito é indireto, porquanto quem efetivamente os sente diretamente são os advogados, as pessoas ainda não se deram conta desse grande “assalto” aos seus direitos perpetrado por quem tinha, antes, o dever de assegurar a realização deles.

A uniformização dos procedimentos quanto ao processo eletrônico constitui, portanto, um passo importante e, diria mesmo, essencial. Mas até que venha a lume uma tecnologia capaz de garantir que o processo eletrônico não substitua o processo convencional em papel com sacrifício dos graus de liberdade de qualquer dos seus participantes, é preciso ter consciência de que a forma híbrida deve ser aceita, de modo que a parte possa escolher o modo como peticionar, e a digitalização das peças apresentadas em papel seja responsabilidade do tribunal. Do contrário, haverá encarecimento dos serviços advocatícios, com notáveis reflexos para o amplo acesso à Justiça.

As considerações acima são só um esboço crítico sobre o processo eletrônico e o açodamento com que as autoridades judiciárias o estão implementando. E se vale alguma coisa, minha opinião, como usuário dos procedimentos adotados por alguns tribunais (STF, STJ, CNJ, TJ-SP, TRT-2, JF-RJ, TRF-2, TJ-RJ), onde milito, o melhor sistema ainda é o do STJ. É o mais simples e o que menos sacrifica os graus de liberdade do usuário, que é e deveria ser o destinatário final dos melhoramentos da Justiça: a parte e seus advogados. Por isso, sou favorável a que todos adotem o modelo de processo eletrônico do STJ e sigam a aperfeiçoá-lo de modo uniforme e homogêneo para todo tribunal.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!