Embargos Culturais

O pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira (parte 1)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

18 de agosto de 2013, 8h01

Foi no ambiente festivo do iluminismo racionalista (fim do século XVIII e início do século XIX) que Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro de D. João VI, formulou ideias que podem identificar certo início de um pensamento político e jurídico nacional. Propicia-nos uma ponte entre as ideias portuguesas e brasileiras.

De acordo com traços biográficos indicados por José Maurício de Carvalho[1], Silvestre Pinheiro Ferreira fez oposição em Portugal, o que lhe valeu o exílio 1797. Entabulou amizade com o Conde de Barca que promoveu sua reconciliação com a situação e lhe introduziu na carreira diplomática.

Serviu então Silvestre Pinheiro Ferreira em postos diplomáticos portugueses em Paris, Haia e Berlim. Chegou ao Brasil em 1810, vindo diretamente da Prússia. Seu indisfarçável liberalismo custou-lhe outro exílio para a Ilha da Madeira em 1812, ainda segundo José Maurício de Carvalho[2]. Mas foi reabilitado logo em seguida.

Nos anos de 1814 e 1815, Silvestre Pinheiro Ferreira preparou um estudo para D. João VI, para “alterar o perfil da monarquia absoluta de modo a evitar a radicalização dos movimentos contrários à monarquia”[3]. Ele retornou para Portugal com a corte, e então era ministro do exterior e da guerra.

De acordo com Antonio Paim, Silvestre Pinheiro Ferreira teria apontado à elite intelectual brasileira as lacunas do “empirismo mitigado, espécie de filosofia oficial, desde as reformas pombalinas”[4]. Quando de seu retorno a Portugal, Silvestre Pinheiro Ferreira orquestrou a transição da monarquia absoluta para a monarquia constitucional, no entender de Jorge Jaime, historiador do pensamento filosófico brasileiro[5]. Ainda segundo o mesmo historiador das ideias nacionais,

(…) Silvestre Pinheiro Ferreira elaborou extensa obra de filósofo e publicista político. Comentou e criticou exaustivamente as Constituições brasileira e portuguesa, discutiu nos mínimos detalhes os problemas da doutrina liberal e, em 1834, publicou uma síntese de suas ideias no Manual do cidadão em um governo representativo, em três tomos[6] .

O pensador português concebia que “o mundo moral pode ser organizado como um dicionário”[7] , de modo que se elencasse o mundo dos conceitos em analogias de significados. Valores conservadores, presentes nesse mundo moral, substancializam o liberalismo brasileiro, do qual Silvestre Pinheiro Ferreira tecera sua forma mais elaborada[8].

Desconfiava-se do liberalismo revolucionário, que poderia emergir das reivindicações das camadas mais pobres. Assim, “o Estado liberal nasceria em virtude da vontade do próprio governo e não em virtude de um processo revolucionário apreciando-se negativamente a Revolução Francesa”[9].

Enquanto representante deste liberalismo nacional, que deu o pano de fundo ao liberalismo jurídico que plasmou modelos normativos brasileiros do período joanino e do subsequente período imperial, pode-se admitir que Silvestre Pinheiro Ferreira colabora com a necessidade de ordenação do poder nacional[10]. De tal modo,

A reflexão política luso-brasileira atingirá seu mais alto grau de elaboração na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira. Este escreve diante da pressão dos acontecimentos políticos que exigiam dele, como ministro de D. João VI, sugestões e medidas imediatas. Vamos encontrar no ministro de D. João VI o problema das relações entre Portugal e o Brasil, como sendo o primeiro passo para a reforma das instituições monárquicas(…)[11].

Silvestre Pinheiro Ferreira nutria supostas e ocultas simpatias pela revolução francesa[12], em que pese, no entanto, confecção de projeto político de fundo menos radical. A admitirmos um contrapeso entre o radicalismo em Rousseau (em certa medida um filósofo contra os filósofos) e uma relativa moderação em Montesquieu, percebe-se que Silvestre Pinheiro Ferreira filiar-se-ia entre os admiradores do autor de O Espírito das Leis. O pensador português divulga o jusnaturalismo entre nós, tomando-se o Estado como legitimador de tais direitos naturais. Foi em Paris que Silvestre Pinheiro Ferreira escrevera que

A palavra direito designa, em geral, toda e qualquer vantagem cujo gozo seja compatível com o princípio do justo. O princípio do justo consiste em não fazer senão o que produza o maior bem possível para todos os interessados em geral e para cada um em particular… Chamam-se direitos imperfeitos aqueles para satisfação dos quais o constrangimento, em caso de recusa, determinaria mais malefícios que benefícios… As leis fundamentais definem e sancionam os direitos naturais reconhecidos pelo Estado, como condições imutáveis de todas as outras leis[13].

Silvestre Pinheiro Ferreira mostra-se também como um utilitarista ao invocar categorias como o maior bem possível ou para cada um em particular. Jeremy Bentham, em 1781, publicou obra na qual defendera com muita veemência os aludidos princípios utilitaristas, propondo como dever dos governos a obtenção de um máximo de felicidade para um maior número possível de pessoas[14] e definindo a comunidade como a soma dos membros individuais que compõem o grupo[15].

O relativismo da outorga de direitos, o que consolida um liberalismo muito bem comportado, também é característico no pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira, para quem, “a liberdade de pensamento não poderá ser garantida aos cidadãos senão no pressuposto de uma educação honesta e de uma instrução esclarecida, suscetíveis de os pôr ao abrigo de todas as falsas sugestões e de os libertar de todas e quaisquer tiranias…”[16].

As falsas sugestões vinculam-se ao perigo da demagogia, ou da democracia, como emergentes nos movimentos que colocavam em dúvida os propósitos dos governos monárquicos, a exemplo do que se passou com a revolução portuguesa de 1820 e com movimento que culminou com a independência do Brasil em 1822.

Especialmente neste último caso, simbolizado na efeméride de 7 de setembro, a elite manobrou o jogo político, apenas assistido pelo povo, circunstância muito bem retratada nesse extraordinário documento iconográfico que é o quadro de Pedro Américo, Independência ou Morte, concluído em 1888, que em meio a uma imaginária cena épica pintou transeuntes populares que presenciavam o evento e a espada em riste, sem nada entenderem.


[1] CARVALHO, José Maurício de, Contribuição Contemporânea à História da Filosofia Brasileira- Balanços e Perspectivas, p. 34 e ss.
[2] CARVALHO, José Maurício de, op.cit., p. 34.
[3] CARVALHO, José Maurício de, op.cit., p. 35.
[4] PAIM, Antônio, História das Idéias Filosóficas no Brasil, p. 15.
[5] JAIME, Jorge, História da Filosofia no Brasil, p. 89.
[6] JAIME, Jorge, op.cit., loc.cit.
[7] MARTINS, Wilson, História da Inteligência Brasileira, vol. II, p. 50.
[8] BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio, Evolução do Pensamento Político Brasileiro, p. 67.
[9] BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio, op.cit.,loc.cit.
[10] BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio, op.cit., p. 66.
[11] BARRETO, Vicente e PAIM, Antônio, op.cit., p. 68.
[12] MARTÍNEZ, Soares, Textos de Filosofia do Direito, vol. II, p. 85.
[13] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Précis de Cours de Droit Public, p. 1-4, apud MARTÍNEZ, Soares, op.cit.,loc.cit.
[14] BENTHAM, Jeremy, The Principles of Moral and Legislation, p. 2.
[15] BENTHAM, Jeremy, op.cit.,p. 3.
[16] FERREIRA, Silvestre Pinheiro, op.cit., p. 86.
 

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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