Segunda Leitura

Solidariedade vai além da ética e se aplica ao Direito

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de agosto de 2013, 8h00

Spacca
Assiste-se no Direito Positivo brasileiro um constante e necessário reconhecimento da solidariedade, que não é propriamente uma novidade. No distante ano de 1944, a Lei 7.046, ao reconhecer a responsabilidade objetiva a favor das vítimas de acidente do trabalho, exteriorizou solidariedade com os hipossuficientes, que nunca venciam as ações judiciais por dificuldades em demonstrar a culpa do empregador.

Em 1988 a solidariedade passou a ser um princípio constitucional. Assim dispôs a nossa Carta Magna:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária

Portanto, desde então, devemos todos pautar nossas ações com os olhos postos na solidariedade. Trata-se, acima de tudo, de um dever ético, um valor que no nosso estágio de evolução se espera de todos os membros de nossa sociedade. Por exemplo, não é preciso que a lei nos obrigue a auxiliar um cadeirante que tenta atravessar a rua, pois isto é um claro dever ético.

Mas, quais as consequências de violarmos uma norma ética? Nas palavras de Miguel Reale: “Toda norma ética expressa um juízo de valor, ao qual se liga uma sanção, isto é, uma forma de garantir-se a conduta que, em função daquele juízo, é declarada permitida, determinada ou proibida” (Lições Preliminares de Direito, 10ª edição, Saraiva, página 35). Portanto, há sanção na simples desaprovação das pessoas, em diferentes graus e formas de exteriorização.

Mas as situações da vida são infinitas a realidade supera a ficção. Por necessidade, do aspecto ético se foi ao jurídico, como que a reconhecer que no tema solidariedade precisamos do dever ser impositivo e de reprimendas mais graves por seu descumprimento.

Alguns casos não despertam dificuldades, porque vêm sendo discutidos há um bom tempo e, além de previstos em lei, já foram objeto de muitas decisões judiciais. Por exemplo, o dever de alimentos que se estende aos avós, já prevista no Código Civil de 1916 (artigo 397) não é reconhecida como solidária, mas como subsidiária (STJ, REsp 1.211.114/SP, rel. Nanci Andrighi, DJ 29/9/2011).

Outros, mais recentes, vem tendo suas premissas fixadas na jurisprudência. Assim, por exemplo, o dano ambiental, cuja responsabilidade civil é objetiva (Lei 6.938/81, art. 14, § 1º, e Código Civil, art. 927, parágrafo único), teve o nexo causal e a consequente solidariedade estabelecida de forma ampla pelo STJ que assim decidiu: “Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem” (REsp 650.728/SC, rel. Herman Benjamin, j. 23/7/2007).

A solidariedade permeia os diversos ramos do Direito. Ela é flagrante no Direito do Trabalho, onde o empregado frequentemente é a parte mais fraca. Por isso, por exemplo, é reconhecida a responsabilidade do sucessor e a do grupo econômico, ou seja, o constituído por empresas de um mesmo grupo que, mesmo possuindo personalidade jurídica própria, estão sob o controle de outra.

No Direito Previdenciário a solidariedade social é a regra, porque se trata de incluir o maior número de pessoas no sistema de saúde e na sobrevivência na velhice (aposentadoria ou pensão). O exemplo clássico é o do julgamento do STF que decidiu ser dever dos aposentados continuar pagando a Previdência Social, mesmo sem nada receber em troca (ADI 3.105 e 3.128, rel. Cezar Peluso, j.18/8/2004).

O Direito Tributário não está alheio à solidariedade. Regina Helena Costa lembra a capacidade contributiva, “princípio fundamental da justiça distributiva, ora expresso no art. 145, §, da CF, traduzindo a solidariedade entre os cidadãos, de modo que maior carga tributária recaia sobre os mais ricos, aliviando-se aquela incidente sobre os mais pobres e dela dispensando os que estão abaixo do mínimo vital” (Praticabilidade e Justiça Tributária, Malheiros, página 378). É o caso, por exemplo, da progressividade fiscal no IPTU, em razão do valor do imóvel.

O Direito Processual Penal é solidário com o réu que não apelou, mas que pode ser beneficiado com a decisão favorável concedida ao corréu que recorreu e viu acolhida sua pretensão (CPP, artigo 580).

O Código do Consumidor em vários dispositivos revela-se solidário com os que se servem dos serviços. Por exemplo, ao atribuir ao fornecedor responsabilidade solidária pelos vícios de quantidade do produto quando diferentes do que consta na embalagem rotulagem ou propaganda (artigo 19). Ou quando permite ao juiz desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade (artigo 28), em caso de falência ou ação prejudicial ao credor (por exemplo, ato ilícito), permitindo penhora dos bens dos sócios.

Do Direito Ambiental vem-nos uma das mais explícitas regras de observância da solidariedade, qual seja, a prevista no artigo 225, caput, da Constituição, que a todos impõe a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

No trato dos idosos, também. A velhice, que os romanos consideravam a pior das doenças, exige de todos solidariedade. Ela, às vezes, é voluntária. Mas quando não é, o Estatuto do Idoso a impõe coercitivamente. Por exemplo, atribuindo a condição de crime, punido com detenção de três meses a três anos (artigo 98), a quem abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres.

Nos conflitos postos em juízo, ainda que sem previsão legal expressa, poderá o juiz valer-se do princípio da solidariedade para decidir. A audiência preliminar de conciliação a que se refere o artigo 331 do CPC é uma boa oportunidade para por o princípio em prática, estimulando as partes a uma solução que se revele solidária do ponto de vista social e humano. E na sentença, da mesma forma, poderá o juiz aplicar a regra do artigo 3º, inciso I, da Constituição, utilizando-o como motivação da conclusão final.

Mas, algumas observações devem ser feitas. O juiz não deve confundir solidariedade com sentimentalismo. São coisas diferentes. Compadecer-se dos menos afortunados é importante, mas dar-lhes todos os direitos, indistintamente, pode significar a quebra do empregador, a desestabilização do sistema de previdência pública (INSS) ou das sociedades que se dedicam a planos de saúde. O juiz que pende para um lado sistematicamente perde a imparcialidade, sua maior virtude.

Lembre-se, ainda, que, mesmo soando estanho, a solidariedade pode ser egoísta e criminosa. A primeira pode dar-se quando um grupo de pessoas se une para auxílio recíproco. Ao limitar a sua ação aos membros do grupo, mesmo ajudando, pensam os partícipes em si próprios. A segunda ocorre nas sociedades criminosas, onde, sabidamente, há auxílio recíproco. Por exemplo, mantendo a família de um dos membros que se acha preso. Óbvio que são formas de solidariedade que extrapolam a previsão constitucional.

Aí estão algumas hipóteses em que a solidariedade sai do campo ético para adentrar no Direito, gerando obrigações e podendo ser reivindicada em juízo. O ideal seria não precisarmos de regras e sanções, conscientes de que devemos ser solidários, assim agindo voluntariamente. Quem sabe um dia alcancemos esse estado ideal.

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