Abusos e arbitrariedades

Judiciário deve fazer controle judicial de concursos

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14 de agosto de 2013, 7h49

O desejo de passar a integrar o quadro funcional da administração pública se tornou, há algum tempo, o principal sonho, no campo profissional, da imensa maioria dos jovens brasileiros. Tal constatação acha-se revelada no aumento da concorrência nos certames públicos, com índices que se superam ano após ano.

Como consequência direta dessa procura, muitas questões relacionadas ao tema passaram a desaguar, de forma recorrente, nas nossas cortes de Justiça. Os debates gravitam em torno de diversos pontos (v.g. cadastro de reserva, direito subjetivo à nomeação, terceirizados em detrimento de concursados etc.), destacando-se, dentre tantos outros desdobramentos, os critérios utilizados para correção de provas pelas bancas examinadoras e a possibilidade do seu controle judicial.

Viceja de forma tranquila nos tribunais superiores o entendimento de que as comissões examinadoras gozam de uma certa margem de discricionariedade na condução dos concursos públicos, no que tange à eleição de critérios de correção de provas e respectiva atribuição de notas.

Para se ter uma ideia de quão antigo é o tema em pauta (malgrado continuem candentes os debates travados em torno dele), basta observar que o STF, por exemplo, possui precedente específico sobre o assunto que data do ano de 1966, estabelecendo o ministro Evandro Lins que “não cabe ao Poder Judiciário sobrepor-se aos critérios da comissão julgadora, para rever as notas atribuídas aos candidatos” (RM 15543/DF, DJ 13/04/66).

De lá para cá essa compreensão se manteve íntegra, sendo comodamente reproduzida nos julgados da excelsa corte e demais tribunais pátrios.

Ocorre que a prevalência desse entendimento — notadamente se aplicado de forma acrítica e automática — traz consigo o risco de chancelar comportamentos arbitrários e abusivos, divorciados da lei, do direito e da justiça.

Nesse panorama, vale colacionar os principais fundamentos jurisprudenciais que servem de supedâneo para o não enfrentamento, pelo STJ, das decisões tomadas pelas comissões julgadoras de concursos públicos:

– “é inviável a incursão pelo mérito administrativo” (AgRg no RMS 19934/RS, DJe 13/04/2009);

– “em respeito ao princípio da separação de poderes consagrado na Constituição Federal, é da banca examinadora dos certames a responsabilidade pelo seu exame” (REsp 731257/RJ, DJe 05/11/2008);

– “não pode o Poder Judiciário imiscuir-se na valoração dos critérios adotados pela Administração para a realização de concursos públicos, salvo quanto ao exame da legalidade das normas instituídas no edital e o seu cumprimento durante a realização de certame” (AgRg no Ag 1085824/RJ, DJe 23/03/2009);

– “as comissões examinadoras organizam e avaliam as provas com discricionariedade técnica” (REsp 11211, DJU 26/09/94).

Esse enfoque restritivo encontra eco, também, em precedentes do STF, nos quais se consagra o entendimento de que o Judiciário, nessa matéria, apenas estaria legitimado a aferir se as questões formuladas se contêm, ou não, no programa do certame, “dado que o edital – nele incluído o programa – é a lei do concurso” (RE 440335 AgR, DJe 31/07/2008).

O STJ, todavia, abrandando o rigor da exegese limitativa que predomina nos seus arestos, firmou precedente segundo o qual, na hipótese de erro material, “considerado aquele perceptível primo ictu oculi, de plano, sem maiores indagações, pode o Poder Judiciário, excepcionalmente, declarar nula questão de prova objetiva de concurso público” (REsp 722586/MG, DJ de 3/10/2005).

Eis, em síntese, a compreensão trivial que o tema tem merecido dos nossos tribunais, nas últimas décadas.

Sucede que a discussão do tema em questão recomenda análise um tanto mais aprofundada, tudo com vistas a imprimir maior alcance ao mandamento que resulta do artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Republicana, sem descurar dos precisos contornos que emanam do artigo 2º, da Constituição Federal de 1988, consoante se evidenciará adiante.

Felizmente, já é possível entrever algumas sutis, mas importantes, mudanças em recentes acórdãos dos referidos pretórios.

No precedente infra, a excelsa corte, em que pese tenha reafirmado que “O Poder Judiciário é incompetente para, substituindo-se à banca examinadora de concurso público, reexaminar o conteúdo das questões formuladas e os critérios de correção das provas”, ressalvou, acertadamente, que a hipótese de erro grosseiro pode ser alvo de correção judicial:

(…) 1. A anulação, por via judicial, de questões de prova objetiva de concurso público, com vistas à habilitação para participação em fase posterior do certame, pressupõe a demonstração de que o Impetrante estaria habilitado à etapa seguinte caso essa anulação fosse estendida à totalidade dos candidatos, mercê dos princípios constitucionais da isonomia, da impessoalidade e da eficiência. 2. O Poder Judiciário é incompetente para, substituindo-se à banca examinadora de concurso público, reexaminar o conteúdo das questões formuladas e os critérios de correção das provas, consoante pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Precedentes (v.g., MS 30433 AgR/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES; AI 827001 AgR/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA; MS 27260/DF, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Red. para o acórdão Min. CÁRMEN LÚCIA), ressalvadas as hipóteses em que restar configurado, tal como in casu, o erro grosseiro no gabarito apresentado, porquanto caracterizada a ilegalidade do ato praticado pela Administração Pública. 3. Sucede que o Impetrante comprovou que, na hipótese de anulação das questões impugnadas para todos os candidatos, alcançaria classificação, nos termos do edital, habilitando-o a prestar a fase seguinte do concurso, mediante a apresentação de prova documental obtida junto à Comissão Organizadora no exercício do direito de requerer certidões previsto no art. 5º, XXXIV, “b”, da Constituição Federal, prova que foi juntada em razão de certidão fornecida pela instituição realizadora do concurso público. 4. Segurança concedida, em parte, tornando-se definitivos os efeitos das liminares deferidas.

(MS 30859, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 23/10/2012).

Como se percebe, o acórdão em vitrine enuncia um considerável avanço, na medida em que se afasta da indesejada compreensão de que a intervenção judicial, nessa seara, cinge-se apenas à análise de eventual descompasso entre as questões da prova e o programa do concurso descrito no edital, evoluindo no sentido de autorizar a sua interferência em caso de “erro grosseiro”, locução esta apta a abarcar uma série de irregularidades possíveis.

Neste julgado, o STF entendeu, ainda que sob a nota da excepcionalidade, que era possível adentrar no mérito dos quesitos da prova de Direito Civil – sobre os assuntos domicílio[1] e mútuo[2] – para retificar o gabarito inquinado de erros gritantes.

Impressionado com a “magnitude dos equívocos perpetrados em prejuízo do impetrante”, o ministro Dias Toffoli fez ver que, “confrontada com tal situação, a banca examinadora preferiu omitir-se, deixando de reconhecer a falha que – repita-se – salta aos olhos”, concluindo que a desconsideração de tais erros crassos implicaria em consagrar “remetada injustiça” (correção da prova em afronta total ao que estatui o Código Civil).

Assim, sem se comprometer com a tese de que “sempre seria possível a ingerência judicial na análise dos gabaritos produzidos por bancas examinadoras de concursos públicos, mas entendendo que cada caso submetido à apreciação do Judiciário deve ser enfrentado segundo suas peculiaridades”, o ministro Dias Toffoli acompanhou o voto do ministro Marco Aurélio, para conceder a segurança, convalidando, desta feita, a liminar anteriormente deferida.

O ministro Luiz Fux, relator do writ, que, inicialmente, denegava a segurança, após os debates, houve por bem reajustar o seu voto, para concedê-la, “por uma questão de justiça”, ficando vencidas as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia.

O acórdão em destaque é digno de aplausos.

Com efeito, não se pode, em detrimento da justiça, fazer prevalecer a fórmula, nem sempre aplicável, de que “o Judiciário não pode se substituir às bancas examinadoras”. Ao intervir em casos em que se acham presentes erros teratológicos praticados pelas referidas comissões, se está, na verdade, pondo em prática o sistema do check and balance, estando o Judiciário, tão somente, cumprindo o seu mister de dizer o direito. Se associam a esse fundamento, também, os princípios interpretativos da máxima efetividade e da conformidade funcional.

Em sentido convergente, obtempere-se que não existe poder ilimitado, nem mesmo sob a vertente da sua dimensão discricionária. Havendo abuso, capricho ou arbitrariedade, o Judiciário pode e deve interferir, sob pena de se admitir a degeneração do regular exercício do poder em arbítrio, ficando o titular do direito lesado ou ameaçado integralmente desamparado.

É muito louvável que o combate ao arbítrio venha granjeando, cada vez mais, espaço na jurisprudência dos tribunais. Nessa perspectiva, vale conferir recente decisão do STJ (RMS 39.102/RO, DJe 25/03/2013), através da qual se repudiou abusos perpetrados pela comissão julgadora do certame.

Neste precedente, operou-se conclusão curiosa e inédita na jurisprudência da Corte Superior, a saber: o Tribunal se substituiu à banca examinadora e alterou a nota da concursanda.

A questão central do acórdão repousa sobre a ofensa ao princípio da isonomia, mercê da constatação de desigualdade no tratamento conferido a candidatos inscritos no concurso público para provimento de cargos de juiz substituto da carreira da magistratura do Estado de Rondônia.

O relator do recurso no STJ, ministro Ari Pargendler, concedeu o mandado de segurança com apoio nas seguintes premissas:

A desigualdade do tratamento está documentada nos autos, e já foi relatada, a saber:

* revisão da nota a portas fechadas (as notas dos demais candidatos foram alteradas em sessão pública);

* mediante a identificação prévia da candidata (os demais candidatos tiveram a garantia do anonimato);

* realizada pela Comissão de Concurso (as provas dos demais candidatos foram corrigidas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

Desta feita, a Corte conferiu à impetrante a nota mínima 6,0 (seis), em vez de 5,8 (cinco vírgula oito) atribuída pela comissão organizadora, culminando, pois, na sua aprovação, no que tange à prova de sentença criminal, entendimento este que se manteve incólume no STJ, a despeito da oposição de embargos declaratórios sucessivos.

Enfatize-se, a propósito, que a tolerância, pelo Judiciário, de atos que, de tão absurdos, geram perplexidade, milita contra o objetivo maior do certame, que é, exatamente, selecionar o(s) melhor(es) canditado(s), em respeito aos princípios da isonomia, da moralidade, da eficiência e do próprio concurso público, que, para serem inteiramente acatados, por óbvio, pressupõem processo de seleção absolutamente hígido e justo, sem espaço para práticas/preferências desarrazoadas das bancas organizadoras.

Insista-se: nada justifica a prevalência de um gabarito absurdo, que contraria a lógica do razoável e que ofende a mais elementar ideia de bom senso. O Judiciário, em casos que tais, pode e deve adotar postura garantista, arrojada e destemida, a exemplo das que foram externadas nos precedentes acima destacados.

Esse pensamento encontra ressonância na abalizada doutrina de Hely Lopes Meirelles:

Não se pode perder de vista, contudo, que embora o Poder Judiciário não possa substituir o ato discricionário do administrador, deve proclamar as nulidades e coibir os abusos praticados. Impedir o Juiz de incursionar pela matéria de fato, quando influente na formação do ato administrativo, será convertê-lo em mero endossante dos atos da autoridade administrativa, substituindo o controle da legalidade por um processo de referenda extrínseco, em flagrante afronta ao disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição (Meirelles, 2005, p. 120-121).

Gize-se que entendimento diverso representa a desconstrução do princípio do amplo acesso à justiça, bem assim ofensa ao Estado Democrático de Direito e ao princípio da separação dos poderes, por privar o Judiciário do exercício de sua função precípua, que é pronunciar o direito nos casos submetidos à sua apreciação.

Demais disso, não se olvide a incidência, na espécie, do princípio da juridicidade, que tornou superada a ideia de vinculação do Estado à mera legalidade em sentido estrito (simples reverência à lei), passando a impor àquele a conformidade dos seus atos com o direito (leia-se: com todo o sistema jurídico, abarcando, assim, regulamentos, princípios gerais implícitos ou explícitos, costumes etc.).

Ora, conformar a administração pública à lei e ao direito, concomitantemente, é perseguir o ideal de justiça, sem permitir que o fetichismo por filigranas jurídicas impeça o alcance deste desiderato.

Noutro quadrante, não merecem prestígio as orientações jurisprudenciais guiadas exclusivamente pelo propósito de desafogar os tribunais da gama de processos que abarrotam as suas prateleiras, posto não poderem ser encarados apenas como números. As demandas reclamam pronta e célere intervenção do Judiciário, via due process of law, em busca da harmonia e da pacificação social. E nesse contexto, “restringir” deve ceder espaço a “ampliar”, no tocante ao acesso à justiça.

A propósito, Mauro Capelletti, na obra “Acesso à Justiça”, já advertia, com argúcia, que “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPELLETTI, 1988, p. 9).

Por isso é que, entre o comodismo das fórmulas (à exemplo do mantra que se consolidou no sentido de estabelecer que “o Judiciário não pode se substituir às comissões examinadoras de concursos públicos”) e a aplicação do direito ao caso concreto, com a predominância da justiça, não deve haver hesitação na escolha deste último, ainda que, para tanto, seja necessário trilhar um caminho menos “prático”.

Ressalte-se que este tema (controle judicial sobre o mérito dos quesitos de provas em concursos públicos) encontra-se pendente de julgamento, em sede de repercussão geral, no STF (RE 632853/CE), sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Oxalá que o Supremo, na fixação da diretriz, alargue a compreensão do tema, no sentido de admitir, por decisão do seu Pleno, que o Poder Judiciário pode, presentes determinados vícios (v.g. arbitrariedade, capricho, abuso ou injustiça), realizar o controle judicial das questões de concursos públicos.

Não há porque temer a criteriosa intervenção do Judiciário. Temível, mesmo, é não poder contar com ele, ficando-se à mercê de erros, abusos e arbitrariedades incontrastáveis.


[1] Considerado, erroneamente, sinônimo de residência.

[2] O outro quesito da prova, também alvo de impugnação, enuncia que o mútuo implica obrigação de restituir coisa certa, em indiscutível confronto a definição legal do instituto (art. 586, Código Civil).

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