Diário de Classe

O livro que provocou reviravolta hermenêutica no Direito

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10 de agosto de 2013, 8h01

Spacca
Desde 1999 temos, no Direito brasileiro, uma obra que operou uma verdadeira reviravolta na hermenêutica jurídica. Trata-se do livro de Lenio Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito[1] que chega, agora, à sua 11ª edição. Passados 14 anos desde seu lançamento, o livro mantém ainda o mesmo efeito impactante que permite ao leitor a composição de novos horizontes para se projetar o conhecimento sobre o Direito.

Não se trata apenas de um texto que agrega novos conteúdos ao campo teórico por ele trabalhado. Trata-se, acima de tudo, de um texto que, bem à moda da ideia platônica da educação como reviravolta, consegue produzir um espaço que permite uma reorientação no modo como, tradicionalmente, os problemas da hermenêutica jurídica são retratados. Mais do que produzir no leitor a capacidade de “ver” os conteúdos da hermenêutica jurídica, o livro possibilita uma forma adequada de se direcionar o “olhar” para a direção das questões capitais da teoria jurídica contemporânea.

É que a hermenêutica jurídica permaneceu, por muito tempo, apegada a velhos dogmas interpretativos que reduzia a sua função a um papel instrumental na lida com o Direito: competia à hermenêutica jurídica a tarefa de subsidiar o jurista na atividade de interpretação dos textos jurídicos na perspectiva de atingir o significado correto segundo uma determinada finalidade que poderia ser ora a vontade da lei (voluntas legis) ora a vontade do legislador (voluntas legislatoris). Ainda hoje há quem faça eco a esse tipo de discurso sobre o papel da hermenêutica no Direito.

Assim, como os habitantes da caverna de Platão, os juristas permaneceram por muito tempo presos à aparente tranquilidade que surge das sombras projetadas pelo teatro de fantoches diante do fogo. A reviravolta operada pelo aparecimento de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise tornou possível uma saída desse jogo de sombras.

A aproximação do acontecimento que foi a publicação deste livro com a metáfora platônica da caverna e da reviravolta representada pela saída desta mesma caverna pode soar arrogante: “mas, então, o articulista está afirmando que foi apenas com o aparecimento de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise que os juristas se deram conta de que as imagens que viam no fundo da caverna eram, na verdade, fantoches articulados na frente de uma tocha em chamas?”. Evidentemente, não é disso que se trata. Na verdade, antes de ser procurador de Justiça, Lenio Streck é professor. Como tal, desempenha um papel preponderante de educador. A educação, no contexto platônico, pode ser considerada uma arte de produzir a reviravolta. O educador tem o papel fundamental de retirar os desorientados do fundo da caverna. Não porque estes não possuem, por si só, a capacidade de enxergar. Antes, porque deve provocar neles a possibilidade de reorientar a sua visão, de compor novos horizontes de sentido. E isto esta obra faz. E como faz!

Por certo, o livro tem também um caráter denunciador. Lenio é hábil em desconstruir os sentidos sedimentados na linguagem cotidiana dos atores jurídicos. Assim, a tese que conduz a tessitura do texto — preservada desde a sua primeira edição — é a de que o campo jurídico sofre de uma crise de dupla face.

Por um lado, temos a reprodução de um modelo de Estado que resiste às transformações que o paradigma do Estado Democrático de Direito operou nas relações entre Estado e sociedade. Mais do que um Estado mínimo e absenteísta, porém menos do que os estados sociais ultra-agigantados do entre-guerras, um tal modelo de Estado representa um verdadeiro paradigma de Direito no interior do qual o caráter condicionante dos direitos fundamentais (não é a lei que condiciona os Direitos Fundamentais, mas os Direitos Fundamentais que condicionam a lei), bem como a concretização da força normativa da Constituição, são as molas mestras que devem impulsionar a ação estatal.

De outra banda, tem-se por identificada uma crise epistemológica em face de um recrudescimento, no âmbito da Teoria do Direito, de posturas teóricas que se mantêm prisioneiras do esquema sujeito-objeto, que advém da teoria do conhecimento forjada na modernidade, de Descartes a Kant.

De algum modo, o conhecimento sobre o Direito não se orienta pelo sentido projetado pelas duas grandes reviravoltas que atingiram a filosofia durante o século XX. Em primeiro lugar, temos a apresentação do chamado linguistic turn que passa a colocar os problemas relativos ao conhecimento nos trilhos da linguagem. Não há acesso direto aos objetos. O conhecimento das coisas do mundo depende, necessariamente, da mediação linguística. Assim, para usar a linguagem kantiana, a linguagem passa a ser “condição de possibilidade” e não apenas um tertium ou um instrumento que o sujeito cognoscente opera para poder comunicar o conhecimento do objeto cognoscível.

Em segundo lugar, temos a reviravolta ontológica operada por Heidegger e que abala, de forma decisiva, as bases da relação sujeito-objeto a partir da descoberta do caráter prévio da compreensão. De fato, Heidegger demonstra que a hermenêutica — tradicionalmente caracterizada como uma disciplina auxiliar para interpretação de textos ou como um apêndice metodológico para as ciências do espírito — representa um existencial do ser humano que é condenado, em sua lida cotidiana, a interpretar o sentido do mundo que o circunda e, ao mesmo tempo, o sentido de seu próprio ser. Na medida em que se autocompreende, o ser humano compreende o mundo. Na medida em que compreende o mundo, o ser humano se autocompreende melhor, numa dinâmica circular altamente virtuosa (que Heidegger nomeará, a partir da tradição, de círculo hermenêutico). Esse ir e vir da compreensão que vai da autocompreensão para o mundo e do mundo para a autocompreensão tem a característica de sempre antecipar o sentido daquilo que se pretende conhecer. Dessa forma, a tentativa de isolar o objeto a ser conhecido é vã na medida em que, por sua constituição existencial, o ser humano já antecipa, desde-já-sempre, um sentido (previamente) compreendido.

Mas, não é só de desconstrução que o livro é feito. Há também uma consistente proposta de reorientação no modo como se olha para o problema da hermenêutica jurídica.

Nesse caso, a proposição está em dar à disciplina sua devida importância. Vale dizer, a hermenêutica não é uma disciplina acessória que auxilia o jurista na interpretação de textos de leis, doutrinas ou jurisprudências. A hermenêutica é disciplina estruturante. Na verdade, o elemento compreensivo-interpretativo é fundamental em toda experiência jurídica. Não existe nenhuma dimensão do Direito que prescinda da interpretação. Toda interpretação, por sua vez, é condicionada pelo mergulho que o próprio intérprete faz em sua autocompreensão. Assim, com Gadamer, têm-se a afirmação de que não existe um ponto arquimediano que possibilite ao intérprete do direito se aproximar das questões jurídicas despido de sua estrutura de pré-conceitos. Todavia, cabe a ele, intérprete, no momento em que realiza um projeto interpretativo, suspender seus pré-conceitos em direção ao sentido projetado “objetivamente” pelo texto. O intérprete que se desprende do texto impondo-lhe a sua pré-concepção — ou a sua consciência, como é moda dizer — realiza um assassinato do texto e da pretensão de toda hermenêutica que é a correta interpretação.

Essa aproximação da universalidade da hermenêutica, no modo como posto por Gadamer, dá ao texto de Lenio a possibilidade de se apresentar como um aporte crítico para teses tradicionais — verdadeiros fósseis jurídicos — e que se apresentam, na contemporaneidade, com ar de novas. Um exemplo pode ser anotado nas posturas que tendem a retratar a hermenêutica de forma setorizada apontando e defendendo a existência de uma hermenêutica constitucional, uma hermenêutica dos direitos fundamentais, uma hermenêutica do direito privado e assim por diante.

Todas essas questões juntas possibilitam um novo olhar sobre a questão da hermenêutica jurídica. Representam uma reviravolta porque permite orientar corretamente a visão para os problemas contemporâneos da hermenêutica jurídica, longe das sombras projetadas pelas concepções tradicionais da hermenêutica jurídica.

Além de tudo isso, há que se considerar que um livro de teoria do direito com o perfil de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise que chegam a uma 11a. Edição (clique aqui para ver) é um caso raro. Leitura obrigatória, portanto, para todos aqueles que pretendem refletir sobre as possibilidades do direito na contemporaneidade.


[1] Cf. Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, passim.

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