Interesse público

Banco pode ser sociedade de economia mista anômala

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5 de agosto de 2013, 8h12

O Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, reconhece a aplicabilidade da imunidade tributária recíproca, prevista no art. 150, VI, “a” da Constituição, ao patrimônio, renda e serviços de empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público.

Embora não haja previsão expressa da imunidade para tais companhias, o STF tem estendido o benefício para essas instituições em razão da natureza das atividades por elas desenvolvidas. Trata-se de atividades tipicamente desenvolvidas pelo Estado, com alto grau de interesse público.

O primeiro ponto a se observar é a distinção feita entre as empresas prestadoras de serviço público e as exploradoras de atividade econômica. Quanto a estas, não se vislumbra a existência de imunidade tributária recíproca principalmente em razão do princípio da livre concorrência, uma vez que, nesses casos, existe concorrência direta com a iniciativa privada. O principal objetivo das empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica é aumentar o patrimônio do Estado.

Com relação às prestadoras de serviço público, o STF já proferiu decisão no sentido de que não há necessidade de que as mesmas exerçam suas atividades sob o regime de monopólio para que seja cabível a imunidade tributária. Vejamos o seguinte trecho do julgado[1]:

(…) “É irrelevante para definição da aplicabilidade da imunidade tributária recíproca a circunstância de a atividade desempenhada estar ou não sujeita a monopólio estatal. O alcance da salvaguarda constitucional pressupõe o exame (i) da caracterização econômica da atividade (lucrativa ou não), (ii) do risco à concorrência e à livre-iniciativa e (iii) de riscos ao pacto federativo pela pressão política ou econômica.”

Observe-se que o acórdão, ao destacar a desnecessidade da existência de monopólio, trouxe à baila pré-requisitos que devem ser analisados para o cabimento da “salvaguarda constitucional”.

Não pode haver benefício para a empresa estatal em detrimento de concorrentes, para que não haja afronta à previsão constitucional da livre concorrência.

Com relação aos “riscos ao pacto federativo pela pressão política ou econômica”, trata-se da possibilidade de que um ente federado se utilize da cobrança de impostos para pressionar outro ente (ou empresa por ele controlada) no intuito de barganhar benefícios políticos ou econômicos. Nesse sentido, a imunidade tributária recíproca tem a finalidade de evitar atritos (entre os entes da Federação) que tenham como “pano de fundo” a cobrança de impostos.

Deste trabalho consta a defesa da aplicação da imunidade tributária recíproca ao patrimônio, renda e serviços do Banco do Nordeste do Brasil S/A, por conta do entendimento de que a instituição exerce atividades típicas de Estado (fomento ao desenvolvimento regional e finalidade assistencial) e se enquadra em todos os pré-requisitos estabelecidos pela jurisprudência mais recente do STF para a concessão da “salvaguarda constitucional”, pois se trata de uma sociedade de economia mista “anômala”, legalmente destinada à “finalidade assistencial”.

Vale destacar que as ideias aqui defendidas também se aplicam ao Banco da Amazônia S/A (sociedade de economia mista) e ao BNDES (empresa pública federal), no que forem compatíveis.

A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA PARA AS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA

O enunciado da antiga Súmula 76 do STF dizia que “As sociedades de economia mista não estão protegidas pela imunidade fiscal do Art. 31, V, “a”, Constituição Federal”. A aludida orientação do STF referia-se à Constituição de 1946 que, assim como a CF/88, também previa a imunidade tributária recíproca.

Durante muito tempo, prevaleceu a ideia de que era inadmissível a existência de imunidade tributária recíproca para sociedades de economia mista, principalmente pela existência de capital privado nessas entidades.

No entanto, a jurisprudência mais recente do STF tem admitido pacificamente a aplicação da imunidade recíproca a algumas empresas públicas e sociedades de economia mista (enquadradas como “anômalas” pela Corte Suprema).

Entre as decisões do STF nesse sentido, destacamos o seguinte julgado[2]:

“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS E CUSTAS JUDICIAIS (SUCUMBÊNCIA). PARTILHA PROPORCIONAL. No julgamento do RE 253.472 (rel. min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão min. Joaquim Barbosa, Pleno, j. 25.08.2010), esta Corte reconheceu que a imunidade tributária recíproca aplica-se às sociedades de economia mista que caracterizem-se inequivocamente como instrumentalidades estatais (sociedades de economia mista “anômalas”) (…)”

A decisão supracitada remete a outro julgamento do STF[3], que reconheceu a aplicabilidade da imunidade tributária recíproca à Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), sociedade de economia mista que explora a administração portuária em São Paulo, in litteris:

SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. EXPLORAÇÃO DE SERVIÇOS DE ADMINISTRAÇÃO PORTUÁRIA. CONTROLE ACIONÁRIO MAJORITÁRIO DA UNIÃO. AUSÊNCIA DE INTUITO LUCRATIVO. FALTA DE RISCO AO EQUILÍBRIO CONCORRENCIAL E À LIVRE-INICIATIVA. Segundo se depreende dos autos, a Codesp é instrumentalidade estatal, pois: 2.1. Em uma série de precedentes, esta Corte reconheceu que a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres caracteriza-se como serviço público. 2.2. O controle acionário da Codesp pertence em sua quase totalidade à União (99,97%). Falta da indicação de que a atividade da pessoa jurídica satisfaça primordialmente interesse de acúmulo patrimonial público ou privado. (…)”

Além da Codesp, o STF também reconheceu o cabimento da imunidade tributária recíproca para a Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia (CAERD)[4] e para o Hospital Nossa Senhora da Conceição S/A[5] (ambas sociedades de economia mista prestadoras de serviço público).

A SINGULARIDADE DA ATIVIDADE DESENVOLVIDA PELO BNB

O Banco do Nordeste do Brasil S/A (BNB) é uma sociedade de economia mista de capital aberto (com a União detendo mais de 90% do seu capital social) que foi criada pela Lei nº 1.649, de 19 de julho de 1952, com o objetivo de promover o desenvolvimento de toda a área abrangida pelo chamado “Polígono das Secas” (região do semiárido). Hoje, o BNB atua em todos os estados do Nordeste, além do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo.

A singularidade do Banco do Nordeste decorre principalmente do fato de ser uma instituição voltada para a execução de políticas governamentais. Trata-se da “maior instituição da América Latina voltada para o desenvolvimento regional” [6].

O BNB (assim como o BASA) se diferencia por completo de todas as outras instituições financeiras existentes no Brasil, notadamente pelos seguintes motivos: A) A Lei nº 1.649/52, em seu art. 11, determina expressamente que o Banco do Nordeste tem “finalidade assistencial”; B) Compete ao BNB a operacionalização do Fundo Constitucional de Desenvolvimento do Nordeste-FNE (previsto no art.159, I, “c” da CF), do Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor, criado pelo Decreto-Lei nº 1.376/74) e de outros fundos legais; C) O BNB destina-se ao fomento do desenvolvimento regional e atua na execução de políticas públicas estabelecidas pelo governo federal para a sua área de atuação, através de diversos programas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (Prodetur/NE); D) Diferentemente das instituições financeiras que têm como objetivo principal a perseguição do lucro, o BNB tem como uma de suas grandes metas a concessão em larga escala do “microcrédito”, destinado a pessoas de baixa renda, sendo responsável pelo maior programa de microcrédito da América do Sul e o segundo da América Latina (CrediAmigo); E) A instituição mantém, desde 1954, um escritório técnico de estudos econômicos (Etene) que orienta a “proposição de diretrizes macroeconômicas e realiza pesquisas e estudos globais, setoriais, conjunturais, de cenários e de oportunidades de investimento”[7] para o Nordeste; F) Em razão do BNB ser uma instituição inteiramente voltada para o desenvolvimento regional, as taxas de juros por ele aplicadas estão bem abaixo dos percentuais cobrados normalmente no mercado, inclusive nos grandes financiamentos.

Por essas razões, entendemos que o Banco do Nordeste (assim como o BASA) se enquadra no conceito de sociedade de economia mista “anômala” estabelecido pelo STF por ocasião do julgamento do Agravo de Instrumento 558652 AgR/SP[8], sendo perfeitamente aplicável a imunidade tributária recíproca à instituição em tela, uma vez que a mesma atua como longa manus do Estado na execução de políticas governamentais, quando, por exemplo, administra um fundo constitucional (FNE), realiza estudos sobre a economia da região (através do Etene) ou atua na concretização de políticas governamentais (aplicando programas de microcrédito para pessoas de baixa renda ou concedendo grandes financiamentos para empresas que geram empregos no Nordeste).

Oportuno se torna lembrar o disposto no art. 11 da Lei nº 1.649/52 (que criou o BNB): “Art. 11. Os prazos, juros e outras condições dos empréstimos serão fixados, atendendo aos aspectos econômicos dos empreendimentos e projetos, à existência dos recursos e à finalidade assistencial do banco”.

Assim, não há que se falar em concorrência com as demais instituições financeiras, uma vez que se trata de entidade legalmente enquadrada como sendo de “finalidade assistencial”.

As taxas de juros oferecidas são totalmente diferenciadas em relação aos valores médios do mercado, exatamente pela singularidade da atividade desempenhada pelo banco em tela. Assim, o reconhecimento da imunidade tributária para a instituição não implicaria em afronta ao princípio constitucional da livre concorrência.

Por outro lado, nada mais justo que compensar a entidade, pela cobrança de juros inferiores aos valores de mercado, com o reconhecimento do cabimento da imunidade recíproca.

Ademais, as instituições financeiras comuns não estão sujeitas ao mesmo conjunto de leis e normas às quais o Banco do Nordeste está submetido. É comum a edição de leis que concedam novos prazos e condições para os débitos oriundos de operações do banco em tela, principalmente nos períodos de seca no Nordeste.

O BNB é nitidamente um prestador de serviço público, ao contrário das demais instituições financeiras, que estão voltadas para a exploração de atividade econômica, perseguindo o aumento patrimonial (lucro) do Estado ou de particulares.

Vale destacar que o Banco do Nordeste tem uma forte atuação na concessão de financiamentos de obras e programas executados pelos municípios e estados da sua área de atuação, o que por vezes pode fazer com que o banco seja alvo de “pressão política ou econômica” na condição de contribuinte de impostos cobrados por esses entes, exatamente como previsto no acórdão do Recurso Especial 290956 SP[9], relatado pelo ministro Joaquim Barbosa, no qual o STF estabeleceu condições para o reconhecimento da imunidade tributária recíproca.

É um grande contrassenso, por exemplo, o fato de o BNB estar contribuindo para o desenvolvimento de uma determinada cidade, através de financiamentos com taxas extremamente vantajosas para os cidadãos e muitas vezes para o próprio município (com grandes empréstimos para obras públicas fundamentais), e ao mesmo tempo ter que pagar o IPTU referente ao prédio de sua agência ou ISS em relação aos próprios financiamentos concedidos.

OPINIÃO CONTRÁRIA

Os tributaristas Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo[10], ao tratarem especificamente do serviço de administração do FNE e Finor, em parecer jurídico (que teve como consulente o município de Fortaleza) publicado na revista Fórum de Direito Tributário, em 2011, afirmaram que:

“A administração do FNE e do Finor é típico serviço relacionado com exploração de atividades econômicas. Além disso, o Banco do Nordeste do Brasil S/A cobra contraprestação por eles, denominada comissão. Assim, é inteiramente fora de propósito a invocação da imunidade recíproca.”

Com a devida vênia, o fato de a instituição cobrar comissão para administrar o FNE e o Finor não tem o condão de transformar o serviço por ela prestado em atividade econômica. Obviamente o BNB precisa arcar com os custos de sua manutenção (despesas com pessoal, material de expediente, etc.), assim como a Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia (CAERD), por exemplo, precisa cobrar uma tarifa dos usuários para que possa manter os seus serviços em funcionamento, o que não desvirtua a natureza de serviço público das suas atividades.

O fomento ao desenvolvimento regional com finalidade assistencial, como já afirmamos, é tipicamente uma atividade de Estado. Assim, a administração de um fundo constitucional como o FNE, por exemplo, é mais uma demonstração (entre várias outras) de que o BNB funciona como um operador de políticas governamentais. Aliás, vale destacar novamente que a Lei nº 1.649/52, em seu art. 11, já definiu expressamente o banco em tela como um ente de “finalidade assistencial”.

Os aludidos tributaristas também defenderam a tese de que deve haver, necessariamente, monopólio na exploração da atividade para que a entidade faça jus à imunidade recíproca. No entanto, o STF[11] já firmou entendimento no sentido de que é “irrelevante para definição da aplicabilidade da imunidade tributária recíproca a circunstância de a atividade desempenhada estar ou não sujeita a monopólio estatal”.

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 3ª. Ed. Editora Método, 2009.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MACHADO, Hugo de Brito; MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. BNB como administrador do FNE e do FINOR: inocorrência de imunidade; incidência do ISS pelo município em cujo território esteja sediado o prestador dos serviços. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, v. 9, n. 52, jul./ago. 2011.


[1] STF. Segunda Turma. RE 290956 SP. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA.Publicação:07/05/2010.

[2] STF. AI 558682 AgR / SP – SÃO PAULO. AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: Min. Joaquim Barbosa. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: 19/06/2012.

[3] STF. Recurso Extraordinário 253.472/ SP. Relator originário: Min. Marco Aurélio. Relator para o acórdão: Min. Joaquim Barbosa. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: 01/02/2011.

[4] STF. AC 1.550-2 Rondônia. Relator: Min. Gilmar Mendes. Órgão julgador: Segunda Turma. Publicação: 18/05/2007.

[5] STF. RE 580264 RS. Relator: Min. Joaquim Barbosa. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: 06/10/2011.

[6] http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/O_Banco/Historico/gerados/hist_principal.asp

[7] http://www.banconordeste.gov.br/content/aplicacao/ETENE/Etene/gerados/etene_estrutura.asp

[8] STF. AI 558682 AgR / SP – SÃO PAULO. AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator: Min. Joaquim Barbosa. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação: 19/06/2012.

[9] STF. Segunda Turma. RE 290956 SP. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA.Publicação:07/05/2010.

[10] MACHADO, Hugo de Brito; MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. BNB como administrador do FNE e do FINOR: inocorrência de imunidade; incidência do ISS pelo município em cujo território esteja sediado o prestador dos serviços. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, v. 9, n. 52, jul./ago. 2011. p.195

[11] STF. Segunda Turma. RE 290956 SP. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA.Publicação:07/05/2010.

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