PEC 33

Controle de constitucionalidade é judicial, não político

Autores

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

  • Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

    é advogado em Minas Gerais e mestre e doutor em Direito Constitucional (UFMG) e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

30 de abril de 2013, 16h40

Há bons anos vimos constatando, no Brasil, um fenômeno de fortalecimento do papel institucional do Poder Judiciário, similar ao ocorrido no segundo pós-guerra em outros países.

Tal fenômeno induz enorme preocupação quanto ao exercício da jurisdição, especialmente quando se percebe que inúmeros assuntos, que tradicionalmente eram dimensionados por outros poderes, passam a entrar na pauta dos juízes, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, que vão desde o legítimo exercício de um papel contramajoritário na garantia de direitos às minorias que não conseguiriam espaço nas arenas majoritárias (Parlamento e Executivo), à adoção de um ativismo seletivo sobre questões com forte apelo político; e, em tantos outros casos, decisões conservadoras (quase exegetas) em certas temáticas envolvendo questões (como v.g. a de defesa de direitos para movimentos sociais, como o de propriedade para sem tetos).

Especialmente pelos abusos perpetrados no exercício do poder decisório (decisionismo), inclusive atribuindo conteúdos normativos voluntarísticos para a criação e preenchimento do conteúdo de princípios (‘panpricipiologismo’, Streck, 2012), ou através do uso inadequado da mutação constitucional (Pedron, 2013), cria-se toda uma tendência de busca de controle para estes potenciais desmandos do poder decisório dos juízes.

Dentro desta tônica, são propostas Emendas à Constituição (PEC) pelo deputado Nazareno Fonteles e outros, visando a preservação das competências legislativas em face de atribuição normativa do Poder Judiciário, a PEC 3/11, com a alteração do inciso V do artigo 49, da Constituição e da PEC no 33/11, que “altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis; condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo STF à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição” que foi aprovada em 24 de abril na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas que, em face da polêmica que suscita, teve sua tramitação suspensa pelo presidente da Câmara no dia seguinte.

O objeto do presente é tratar desta última PEC (33) e da discussão que perpassa a chamada judicialização da política, subjacente à mesma. Nossa tese é que a PEC 33 compartilha dos mesmos supostos paradigmáticos daqueles julgados tachados de “ativistas” do STF a que pretende se contrapor. A PEC trata a questão do controle de constitucionalidade como disputa pela soberania legislativa e não como questão jurisdicional de garantia da Constituição, sendo, então, nesse sentido, a “solução” tão ruim quanto o problema.

De imediato já nos posicionamos que o artigo 3º da PEC é de todo inconstitucional, não se podendo restringir por meio de controle político, majoritário, decisões em matéria constitucional do Supremo Tribunal Federal — e do Judiciário em geral — por violação do artigo 60, parágrafo 4º, IV, da Constituição. A PEC também propõe ampliar de seis para nove o número mínimo de ministros do STF necessários para declarar a inconstitucionalidade de normas. Não é novidade no Direito brasileiro a tentativa de controle político de decisões do STF em sede de controle de constitucionalidade. Ainda que a intenção no presente possa ser diferente das do passado, cabe não apenas lembrar da doutrina das questões políticas durante a República Velha, da Carta de 1937 que expressamente previa a possibilidade de o Congresso derrubar decisões do STF a pedido do presidente da República e mesmo da tentativa proibição de questionamento judicial de tornar judicialmente imunes dos atos institucionais, e bem como suas as medidas de execução deles, em face do controle judicial durante a Autocracia de 1964.

Há mais de dez anos criticamos os desvios decisionistas do STF. No entanto, ser crítico desta postura, não nos autoriza a defender o esvaziamento do papel constitucional e institucional dos decisores, sob pena de impor um retrocesso epistemológico às concepções típicas de modelos autocráticos ou mesmo liberais.

Ademais não podemos nos olvidar que a judicialização da política, como fenômeno típico dos Estados sociais em função da profunda redefinição paradigmática do princípio da separação dos poderes, tem impacto sobre o controle judicial de políticas públicas no sentido da garantia dos direitos sociais, econômicos e culturais, bem como sobre o controle judicial de constitucionalidade no pós-guerra.

No Direito Constitucional estrangeiro o pós Segunda Guerra foi marcado pela introdução e pelo desenvolvimento do controle judicial de constitucionalidade das chamadas omissões legislativas e administrativas (como é o caso da Constituição da República Portuguesa de 1976, por inspiração da Constituição Socialista da ex-Iugoslávia) (Canotilho, 1982), das novas técnicas de controle, tais como as sentenças interpretativas e sentenças intermediárias (como no caso do Direito Constitucional alemão sob a Lei Fundamental de 1949 ou do Direito Constitucional italiano sob a Constituição de 1948, especialmente pela atuação das suas respectivas cortes constitucionais) (Meyer, 2008). Tudo isso sob o pano de fundo da chamada jurisprudência dos valores, do desenvolvimento do raciocínio jurídico da ponderação ou balanceamento de interesses e de direitos, tomando-se o princípio da proporcionalidade como critério de aplicação de normas constitucionais supostamente em conflito (Coura, 2009).

Se, por um lado, essas mudanças paradigmáticas pressupõem o caráter de prestações positivas dos direitos fundamentais frente ao Estado e a horizontalização desses direitos mediante a sua aplicação às relações jurídico-privadas, por outro lado colocam em questão não apenas a extensão, em face do Legislativo e da administração pública, dos poderes judiciais/jurisdicionais, mas também o sentido deles, especialmente no caso das cortes constitucionais, em que essas questões passam a ser explicitamente discutidas (Habermas, 1998).

Assim, se o ativismo judicial na defesa de direitos fundamentais seria inclusive justificável em função do reconhecimento de uma vinculação não somente negativa mas positiva de todos os poderes do Estado à Constituição e a direitos que não estão à disposição de maiorias parlamentares ou da conveniência e oportunidade administrativas, por outro a chamada judicialização da política poderia revelar um profundo déficit democrático dessa atuação judicial (Streck, 2010), havendo mesmo quem falasse em um poder constituinte permanente e em reinvenção da constituição pela jurisdição constitucional (Sampaio, 2002).

E tudo isso considerando-se também que mesmo no plano da jurisdição comum ou ordinária novas técnicas processuais passam a centralizar no juiz a direção e o andamento dos processos (protagonismo judicial), sob o argumento da celeridade processual e da eficácia das decisões, ainda que em detrimento da participação dos diretamente interessados. Algo que se potencializa com as demandas e ações coletivas, de massa ou metaindividuais. As reformas processuais ao longo de todo o século XX assim vão apostar nos poderes dos juízes e dos relatores nos tribunais como forma de efetivação do chamado acesso à justiça (Bahia, 2009, Barros, 2009, Nunes, 2008, Carvalho Dias, 2010, Nunes, Bahia, Câmara e Soares, 2011).

Já se disse que cabe à jurisdição constitucional a garantia do devido processo legislativo, compreendendo, para isso, os direitos fundamentais como condições de institucionalização de um processo legislativo democrático, os direitos fundamentais como condição de possibilidade democrática (Cattoni, 2000 e 2006). O controle deveria, portanto, reforçar a dinâmica democrática, reconhecendo, inclusive, novos sujeitos e novos direitos, por meio de uma interpretação inclusiva da Constituição (já que o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição mostra que a Constituição é um projeto aberto para novas inclusões de sujeitos e de direitos).

Quanto ao motivo imediato, a PEC 33/11, e ao modo com que nos posicionamos em relação a ela — destacando, inclusive, a relevância quanto ao tema que suscita —, cabe dizer de início que numa democracia é fundamental o debate público permanente sobre o papel dos tribunais em face do legislativo.

Numa democracia, é o Parlamento o centro do regime político, sendo que ele também deve zelar pela sua legitimidade, representatividade e abertura ao debate público, assim como zelar por suas competências constitucionais (v.g., art. 49, XI, CR/88). Nesse sentido, compartilhamos das preocupações subjacentes às PECs suscitadas, embora discordemos do modo com que por meio dela se pretenda lidar com o problema da chamada judicialização da política mediante a PEC em comento.

Como, então, controlar legislativamente o Poder Judiciário? Quais seriam as vias restantes do ponto de vista constitucional?

Primeiramente, legislar, enfrentando temas polêmicos e de relevância política e social. Não deveria faltar ao Legislativo coragem política para tratar de temas fraturantes tais como o do tratamento diferenciado para a interrupção da gravidez no caso de anencefalia em face do crime de aborto, para a extensão e sentido da Lei da Anistia de 1979 hoje, para a questão do reconhecimento pleno das uniões homoafetivas, para a questão acerca de casos de descriminalização e regulamentação do uso — inclusive medicamentoso — de drogas, bem como para as diversas questões, enfim, envolvendo políticas sociais, econômicas e culturais exigidas política e socialmente para a garantia efetiva do exercício em igualdade dos direitos fundamentais (igualdade como isonomia e como diversidade), afetas ao desenvolvimento, à redistribuição e à sustentabilidade.

Não pode faltar ao Legislativo coragem política para rever a legislação e abolir os resquícios de autoritarismo ainda nela presentes, seja em matéria de segurança, de sistema penal, de estrutura sindical, de sistema eleitoral e partidário ou mesmo de organização da administração pública brasileira. E para cuidar com atenção das reformas judiciais e processuais.

Sobre as reformas judiciais e processuais, tramita no Congresso Nacional o projeto de Novo Código de Processo Civil, no qual a Câmara dos Deputados está com a faca e o queijo na mão para rever as decisões do Senado que pretendiam atribuir mais e mais poderes aos juízes.

E, por fim, o controle legislativo pode advir por meio de emendas constitucionais, no sentido de se buscar decidir em última instância sobre questões controversas, respeitados condições e limites do artigo 60 da Constituição da República. É dizer, o efeito vinculante das decisões do STF nunca impediu que o Legislativo decida de forma diversa. Não é preciso uma PEC para permitir que o Legislativo assuma o ônus político de dar uma decisão contrária à daquele tribunal.

Todavia, cabe dizer que no Direito Constitucional brasileiro sempre haverá a possibilidade de controle judicial de qualquer decisão legislativa do ponto de vista da sua constitucionalidade, como um correlato da forma constitucional tipicamente moderna de nossa Constituição, assim como da tradição do nosso sistema de controle de constitucionalidade, compreendidos como garantia de direitos fundamentais em face de deliberações legislativas majoritárias. O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro é judicial e não político. E, todavia, não apenas porque esses direitos representam limites para o que possa ser decidido legislativamente, mas porque, como dito, esses direitos se apresentam, após duzentos anos de aprendizado social na tradição do constitucionalismo, como condições de institucionalização do próprio processo democrático. Direitos fundamentais não são limites externos à formação legítima do poder político, mas são constitutivos da geração legítima da opinião e da vontade — são criados pelo processo político, mas são também, co-originariamente, condições de possibilidade deste.

Toda essa discussão nos remete, enfim, à necessidade de construção permanente de uma cultura política e jurídica democrática, no sentido da consolidação entre nós, como conquista nossa, na nossa própria história, do Estado Democrático de Direito. Seja a mobilização público-política de uma sociedade que se constitui historicamente como sociedade aberta de interpretes da Constituição (Häberle) a base de legitimidade de todo regime constitucional. Que o sistema de direitos fundamentais e o regime democrático como co-implicados e interdependentes possam constituir o núcleo de integração política da sociedade nos termos do desenvolvimento de um patriotismo constitucional (Habermas) é o grande e permanente desafio para a legitimidade e para a estabilidade, ao longo do tempo, de uma comunidade de princípios (Dworkin), neste século.

Além disso, cabe dizer que o Congresso, assim como as últimas presidências da República, são corresponsáveis por um processo de ampliação das prerrogativas do STF e dos juízes em geral, sem falar na velha defesa doutrinária de um certo “constitucionalismo da efetividade”, a apostar tudo na jurisdição constitucional, que hoje cobra o seu preço.

Ademais e infelizmente, no Brasil não se leva a sério o processo de indicação e nomeação de ministros para o STF. A Presidência da República não discute (disse discussão, que não é negociação de bastidores) com ninguém, o Senado reprova ninguém. A própria opinião pública especializada, faculdades de direito, associações de magistrados, OAB, MP, etc., não se mobilizam em torno de um debate mais amplo acerca das indicações presidenciais, nem acompanha devidamente as sabatinas, cada vez mais “pro forma”, dos indicados, no Senado.

A Presidência acaba nomeando quem quer, e, ironia do destino, quando os ministros não se comportam como "deveriam" (sic), a culpa é da instituição, é do STF. E, afinal, a Emenda 3/93 (ADC), as Leis 9.868 e 9+882/99 e a pior delas a EC 45, todas elas vieram de iniciativas cruzadas entre Executivo e Legislativo (e Judiciário). Enfim, legislam mal e o sistema, como sempre diz Lenio Streck, reage "darwinianamente". Além disso, cabe perguntar, do que vive o Legislativo? Quais são as grandes pautas legislativas? Será que o legislativo vem enfrentando as grandes pautas nacionais? E de que forma? Temos de estudar mesmo e acompanhar o processo legislativo dada a importância e centralidade dele na democracia.

Somos a favor de uma profunda mudança na forma de indicação/nomeação dos ministros do STF: que esse processo seja mais aberto e plural. Somos a favor de mandatos e não da vitaliciedade, inclusive. Mas do que adianta tudo isso se só se discute "seriamente" (sic) o papel institucional do STF quando alguém não se sente beneficiado ou está em desacordo com alguma decisão do STF? Temos aqui um sério e grave problema de cultura institucional.

Direito não é instrumento! O Direito não se deixa funcionalizar assim tão facilmente, porque tem uma lógica própria de funcionamento que feliz ou infelizmente reproduz decisões "boas" (sic) e "ruins" (sic) sistemicamente. O que estamos a dizer não é nenhuma novidade. Maior exemplo disso é a EC 32 sobre as medidas provisórias e a tal comissão conjunta inventada pelo Congresso que nunca se reuniu para apreciar relevância e urgência.

Essa PEC 33 é, além de inconstitucional, de uma ingenuidade tremenda, mesmo que alimentemos respeito pelo pressuposto de busca do controle do decisionismo e da judicialização da política. Uma coisa é criticar decisões, a falta de discussão sobre o perfil dos Ministros e mesmo posições deles, a forma e o processo de nomeação dos Ministros e, especial e tremendamente, a extensão dos poderes do STF. Mas não é possível criticar jamais a instituição do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, per se.

Enfim, somos a favor dos direitos fundamentais e eles conspiram pelo controle do poder do STF pelas vias institucionais legítimas e não pela odiosa utilização instrumental do controle projetado pela PEC 33.

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