Integração racional

Parte da PEC 33 resgata equilíbrio entre os poderes

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29 de abril de 2013, 15h57

O noticiário jurídico foi tomado por notícias ardentes a respeito da PEC 33/2011. Embora a proposta cause calafrios sob certos aspectos, nem tudo nela repugna à consciência democrática e ao equilíbrio que deve haver entre os poderes da República.

Partindo da ideia de que a Constituição Federal é o diploma maior da nação e o local onde são traçadas as competências e os limites dos poderes do Estado, inclusive e, por que não dizer, até principalmente para estabelecer os limites dos poderes que o Estado poder exercer sobre os indivíduos, então, parte da PEC 33/2011 tem o condão de resgatar o equilíbrio que deve haver entre os poderes, abalado que fora por alterações anteriores, as quais provocaram desequilíbrio ao conferirem ao Judiciário poderes que vêm sendo usados de tal modo que esse tão desejado equilíbrio padece deformado e degradado.

Um exame rigoroso, sereno, sem argumentos passionais demonstra não só a aceitabilidade, como a utilidade parcial da PEC 33/2011.

É falso dizer que, aprovada, a PEC 33/2011 esvaziará totalmente os poderes do STF. Apenas numa hipótese, como se verá adiante, ocorre esse gravíssimo esvaziamento. Por isso que, nessa parte, deve ser repelida com toda veemência.

A respeito das súmulas vinculantes — e aqui devo afirmar por compromisso com a honestidade intelectual que nunca simpatizei com elas —, a proposta contida na PEC 33/2011 é assaz louvável. Isso porque a Constituição Federal estabelece, ela sim, em cláusula pétrea, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Então, o comando vinculante é a lei. Não uma súmula editada pelos tribunais. Qualquer súmula vinculante, por irradiar um efeito erga omnes qual a lei, assimilar-se-á a um comando legal. Daí ser razoável a exigência posta na PEC 33/2011 de que a súmula vinculante deve “guardar estrita identidade com as decisões de que se originou”, pois emerge da apreciação de conflitos que versam sobre qual interpretação deve prevalecer a respeito de um preceito legal ou constitucional. Ou seja, a súmula aclara o conteúdo semântico de um comando contido numa norma jurídica. É como se o texto ganhasse nova redação para exprimir-se com maior clareza àqueles que são seus destinatários, e exatamente por causa disso justifica-se a exigência de que seja chancelada pelo Congresso Nacional, que é o poder legiferante por excelência, o único autorizado expressamente para modificar a redação das leis e da Constituição Federal com efeito vinculante em razão do princípio da legalidade e da distribuição de competências estatuída pela Constituição Federal.

Diversamente do que se tem propalado, não há aí violação do equilíbrio entre os poderes, mas maior integração racional, maior harmonia, maior coerência democrática e participação plural das instituições a respeito dos conteúdos vinculantes das condutas das pessoas.

Os poderes do STF a esse respeito não são esvaziados como se tem apregoado falsamente. A uma, porque a experiência com as súmulas vinculantes começou somente em 2005, após a promulgação da EC 45 em 31 de dezembro de 2004. Antes delas, o STF funcionava sem poder editar súmulas vinculantes. Nem por isso ousava-se dizer haver desequilíbrio entre os poderes da República. Por outro lado, e aqui ninguém terá a ousadia de contestar, as súmulas vinculantes foram introduzidas no texto constitucional mais para atender a uma política forense do que propriamente uma política constitucional. Pretendia-se com elas, entre outros instrumentos desastrosos para o bom comércio jurídico e para azar da segurança jurídica, reduzir o caudaloso afluxo de Recursos Extraordinários que afogavam os 11 ministros do STF. A duas, e isso também ninguém terá a coragem ou a desfaçatez de negar, ao permitir a edição de súmulas vinculantes, a EC 45/2004 concedeu ao STF poderes que antes não possuía. Mas ninguém se levantou para dizer que tal acréscimo de poder nas mãos do STF violava o equilíbrio entre os poderes do Estado. Agora que a PEC 33/2011 propõe uma reformulação desse instrumento para conformá-lo aos fins a que se destina levando em conta sua utilidade prática e seus efeitos políticos, levanta-se esse falso alarido de que esvaziará os poderes do STF. A três, supondo que a sistemática proposta na PEC 33/2011 seja aprovada, se o Congresso Nacional eventualmente rejeitar a edição de alguma súmula vinculante proposta pelo STF, esta continuará a ser uma simples súmula, exprimindo o entendimento do STF, porém, sem aquele tegumento que a torna obrigatória erga omnes. Francamente, o argumento de esvaziamento dos poderes do STF é aqui insubsistente, pura hipocrisia.

A Constituição tem sido constantemente vilipendiada, principalmente no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, cuja aplicabilidade imediata prometida no texto constitucional não tem nenhuma ressonância prática, não produz nenhum efeito jurídico relevante, à medida que o STF recusa-se sistematicamente a tutelar tais garantias sob o argumento de que para fazer isso teria de examinar norma infraconstitucional. Destarte, sob esse refrão, e basta uma pesquisa no site do STF a esse respeito para confirmar tais afirmações, o princípio da legalidade, que deveria assegurar às pessoas que jamais seriam obrigadas a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; o princípio do devido processo legal, segundo o qual ninguém jamais poderia ser privado de sua liberdade ou bens sem o processo necessário e que observe estritamente as normas que o disciplinam; o princípio da ampla defesa e do contraditório não passam de falsas promessas constitucionais, pois os tribunais do país, inclusive o STJ e o STF, os ignoram solenemente.

Aliás, aqui cabe uma digressão. Recentemente, a respeito de uma demanda indenizatória cujo pedido é ilíquido, suscitado a indicar o dispositivo de lei que obrigasse a parte a atribuir à causa um valor proporcional ao número de litisconsortes, já que a iliquidez do pedido atrai a incidência do artigo 258 do CPC, de modo que os autores são livres para atribuir à causa um valor simbólico qualquer, fundados exatamente em que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, o STJ proferiu acórdão (EDcl no RMS 37524-RJ) utilizando a proposição segundo a qual “os fundamentos do direito moderno, bem é sabido, não residem somente em ditames jurídicos completos” como justificativa para a exigência ex officio pelo tribunal de origem (TRF-2R) de alteração do valor da causa e recolhimento das custas correspondentes. Com tal decisão, o STJ violou a lei (CPC, artigos 258, 259, e 261, este último combinado com o artigo 128), modificou a lei, pois introduz novo critério de atribuição do valor da causa, diverso dos que estão expressamente previstos, usurpou a competência da União (CF, artigo 22, I) — a esse tipo de conduta é que se chama ativismo judicial, e isso sim causa desequilíbrio entre os poderes da República —, e lança uma mácula de descrédito e hipocrisia sobre toda a Justiça, pois, além da lei, é do Conselho da Justiça Federal, cuja cúpula é composta por ministros do STJ, inclusive o relator do indigitado processo, o Manual de Orientação de Procedimentos para Cálculos na Justiça Federal que, no item 1.1.3.2, dispõe que “nas ações em geral, o valor da causa é aquele indicado na petição inicial ou a decorrente de julgamento de impugnação” (sic). De acordo com essa orientação, o valor da causa somente pode ser modificado por meio de decisão em impugnação, ou seja, é matéria para a qual a lei exige manifestação da parte contrária, sem a qual o valor atribuído estabiliza-se, conforme expressamente preordenado no parágrafo único do artigo 261 do CPC, de modo que ao órgão jurisdicional é defeso conhecer dessa questão de ofício (artigo 128). Decisões como esta demonstram o desequilíbrio que reina hoje no país. Lei para quê? Qual o valor vinculante da lei, se os órgãos do Judiciário acham que podem simplesmente decidir como quiserem, mesmo quando a lei dispõe de outro modo? Nem mesmo a mais alta Corte de controle da legalidade respeita e aplica a lei. Ao contrário, decide como se a lei fosse qualquer coisa objeto de uma ciência obscura que ninguém, a não ser os órgãos jurisdicionais, conhece e tem acesso.

A modificação do quorum para declarar a inconstitucionalidade de um ato normativo é uma questão de natureza eminentemente política. Visa o resguardo da matéria tratada pela norma que nasce revestida de presunção de constitucionalidade. Pior do que um quorum qualificado é a modalização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pois rompe com a lógica contida na essência ontológica da declaração. Se um ato normativo é inconstitucional, o é desde seu nascimento. Então, não poderia produzir nenhum efeito. E os efeitos que tivesse produzido durante a vigência em razão da presunção de constitucionalidade deveriam ser reparados e tornados írritos. A modalização é um acinte à razão, mas foi introduzida para atender a um fim prático que favorece apenas ao Estado, que não sofre mais os efeitos da responsabilidade que decorreria da inconstitucionalidade de ato normativo desde o nascedouro. Ao favorecer o Estado, quem perde é a sociedade em geral e os indivíduos em particular. O Estado é tornado impune (haja vista o privilégio dos precatórios, os prazos outorgados em seu favor, etc.), ou, pelo menos, mais imune. Por outro lado, a modalização constitui também um elemento de conforto para o STF, pois permite que uma Ação Direta de Inconstitucionalidade seja julgada anos ou até décadas depois de sua propositura, já que a modalização implica a possibilidade de não permitir a retroação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, eximindo responsabilidades.

O quorum qualificado exige maior convergência de entendimento entre os ministros do STF. Isso não é ruim. Ao contrário, a diferença por um voto apenas, o voto de minerva é que se afigura difícil de aceitar, pois caracteriza maior grau de polaridade dos entendimentos, o que, em matéria de segurança jurídica, convenha-se, constitui elemento que promove mais a insatisfação do que a certeza do direito. A questão do maior ou menor quorum é também uma escolha eminentemente política, que não pode ser extirpada da competência do Poder Legislativo. Quanto maior o quorum exigido, mais estável será a norma. A função de guarda da Constituição não é esvaziada, mas, ao contrário, tornada mais vigorosa e firme, pois quanto mais qualificada for a maioria, maior será a certeza de que a inconstitucionalidade era mesmo de ser pronunciada.

Relativamente às Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tenham por objeto emenda à Constituição, aí sim, a PEC 33/2011 comete vários pecados ignominiosos. É geral demais, o que a torna portadora de uma grande armadilha: um atalho para desclassificar as cláusulas pétreas expressas, com manifesto prejuízo aos avanços que estas representam e do grau de civilidade que inspiram à sociedade brasileira. Numa palavra, tal como proposta, permite a alteração de cláusula pétrea, o que se me afigura um atentado de lesa-democracia. Tal permissividade esvazia os poderes do STF e, aí sim, força convir, é causa de desequilíbrio e da harmonia que deve haver entre os poderes da República.

A submissão da decisão do STF que declarar a inconstitucionalidade material de emenda à Constituição ao Congresso Nacional ou à consulta popular constitui o mecanismo de esvaziamento utilizado pela PEC 33/2011 e coloca sob ameaça toda a Constituição, pois mesmo a decisão do STF proferida pelo quorum qualificado politicamente escolhido pelo legislador constituinte (originário ou derivado, isso é indiferente, porque a questão não suprime a essência da separação dos poderes), poderá ser cassada, fazendo desaparecer a função precípua do STF.

Essa parte da PEC 33/2011 deve ser suprimida porque não faz nenhum sentido. É incoerente com a democracia representativa instituída pela própria Constituição Federal. Dentro da estrutura dos poderes, o Congresso Nacional não é e nem deve ser o último a se manifestar sobre a inconstitucionalidade das leis. Ao contrário, como poder legiferante, é apenas o primeiro a se manifestar, cabendo ao STF a última palavra, observado o quorum estabelecido pelo legislador constituinte. Se, mesmo atendido o quorum qualificado, ainda assim a declaração de inconstitucionalidade de ato normativo tiver de ser aprovada pelo Congresso Nacional ou por consulta popular, então o STF já não terá mais razão de ser como guardião da Constituição, porque o controle concentrado, o mais importante mecanismo de guarda da Constituição, terá perdido seu valor. O próprio Congresso torna-se desnecessário para tal função. Será mais fácil e menos oneroso para o erário atalhar diretamente para a manifestação do povo, e seremos todos reféns da ignorância característica das massas, sujeitos às manipulações daqueles que se arvoram em arautos da opinião pública.

Em conclusão, a proposta de alteração dos artigos 97 e 103-A da Constituição Federal pela PEC 33/2011 não pode ser considerada como retrocesso total e violador do equilíbrio entre os poderes. Ao contrário, aperfeiçoa afirmação da democracia brasileira e o equilíbrio que deve permear os três poderes da República, pois implica maior estabilidade dos preceitos jurídicos e interatividade dos poderes na conclusão dos conteúdos normativos vinculantes gerais. Já a proposta de introdução dos parágrafos 2º-A a 2º-C no artigo 102 traz duas armadilhas perigosíssimas: 1) a possibilidade de alteração de cláusulas pétreas, assim expressamente declaradas na Constituição Federal; 2) a perda da função precípua do STF e que justifica sua existência como guardião da Constituição Federal.

Inadmissível é a introdução dos parágrafos 2º-A a 2º-C no artigo 102. Melhor seria se introduzisse um mecanismo de trancamento da pauta do STF ou de delimitação de prazo para julgamento toda vez que este proferir medida cautelar suspendendo os efeitos de Emenda Constitucional, pois tal suspensão acarreta o afastamento da presunção de constitucionalidade que nasce com o preceito, e interessa a todos o julgamento expedito da questão, seja para eliminar o ato do ordenamento, seja para restabelecer os efeitos que foram sustados pela Medida Cautelar, evitando, assim, que a expectativa sobre a solução da questão se prolongue indefinidamente no tempo fustigando com a angústia aqueles que têm seu destino atrelado ao julgamento da matéria, e prevenindo os famigerados estratagemas de engavetamento de processos, que tantos malefícios traz para a sociedade.

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