Embargos Culturais

O Nome da Rosa mostra Igreja dominada por intrigas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

28 de abril de 2013, 8h04

O filme O Nome da Rosa foi lançado em 1986. Dirigido por Jean-Jacques Arnaud (que também conduziu Sete Anos no Tibet), é baseado em romance histórico do escritor italiano Umberto Eco. O roteiro é de Andrew Birkin. Sean Connery interpretou o personagem principal, William de Baskerville. Cristian Slater fez o papel de Adso de Melk (o narrador da história, religioso aprendiz que acompanhava William). No filme também trabalham Elya Baskin (Severino), Ron Perlman (que interpretou o intrigante Salvatore, “que falava todas as línguas e não falava nenhuma”), Valentina Vargas (que interpretou a intrigante garota), Michael Habeck (no papel de Berengar), William Hickey (no papel de Ulbertino de Casale) e F. Murray Abraham (interpretando o terrível inquisidor Bernardo de Guy).

O filme mantém a inteligentíssima intertextualidade do romance de Umberto Eco. O título nos remete à discussão medieval em torno das universais. Isto é, se o que vale mais são as coisas ou os nomes que damos às coisas. Há tradição que nos dá conta de texto canônico no qual se leria que nomes seriam mais importantes do que coisas. Afinal, segundo esta tradição, no dia em que no mundo não existirem mais rosas, restará entre os homens a lembrança do nome da rosa… Segundo Eco,

A ideia de O nome da rosa veio […] quase por acaso e agradou […] porque a rosa é uma figura simbólica, tão densa de significados que quase não tem mais nenhum: rosa mística, e rosa ela viveu e vivem as rosas, a guerra duas rosas, uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa, os rosa-cruzes, grato pelas magníficas rosas, rosa fresca cheia de olor. Isso acabaria despistando o leitor, que não poderia realmente escolher uma interpretação; e ainda que tivesse percebido as possíveis leituras nominalistas do verso final, já teria chegado justamente ao final, após ter feito as mais variadas escolhas. Um título deve confundir as ideias, nunca discipliná-las[1].

Na obra de Eco há inúmeras referências simbólicas de conteúdo interminável. Jorge de Burgos, o guardião cego da livraria, é homenagem explícita ao escritor argentino Jorge Luís Borges. Há também inegáveis semelhanças entre o conto A Biblioteca de Babel, de Borges, e alguns pontos temáticos de O Nome da Rosa, a exemplo da recorrência a espelhos e labirintos, construções comuns na temática borgeana. O que não deixa de ser uma brincadeira, bem ao estilo de Borges.

William de Baskerville (nome do personagem principal) é referência a William de Ockham (importantíssimo filósofo medieval), bem como ao livro de Artur Conan Doyle, Os Cães de Baskerville, publicado em 1902, que deu início à série de Sherlock Holmes. Também há semelhança entre Adso (auxiliar de William) e Watson (auxiliar de Sherlock). Elementar…

E porque para Eco “os livros falam sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada”[2], o enredo centrou-se na Idade Média, em torno de uma série de assassinatos, colocando-nos uma dúvida sobre pretensa e supostamente perdida obra de Aristóteles. O filme mostra-nos também final apocalíptico, marcado por um grande e esperado incêndio. Ainda segundo Eco, imaginar uma história medieval sem incêndio é como imaginar um filme de guerra no Pacífico sem um avião de caça precipitando-se em chamas”[3].

O Nome da Rosa é adaptação para o cinema de romance ostensivamente reputado como pós-moderno. Trata-se de uma colagem descarada de textos, fontes, alusões, referências, tomadas num sentido absurda e anacronicamente contemporâneo. Trata-se de um serial killer ambientado na Idade Média. É uma denúncia a falsos problemas da racionalidade.

Nesse sentido, permite que pensemos o pós-modernismo como uma atitude cética para com a racionalidade construída pelo pensamento iluminista. Aparente negativismo, que dá o tom de um niilismo que truisticamente não aponta para lugar nenhum, é que propicia o eixo temático das considerações pós-modernas. O pensamento pós-moderno opõe-se à racionalidade e às promessas do que se entende por moderno, que acenou com a objetividade, a neutralidade e o progresso ilimitado de uma ciência redentora e soteriológica. É que as promessas da modernidade, por não terem sido cumpridas, transformaram-se em problemas para os quais parece não haver solução.

O pós-moderno rejeita o fundacionalismo da modernidade, definido como a âncora epistemológica e ontológica do iluminismo. Essa referência foi construída em torno de um sujeito definido pelo cogito cartesiano e pelo transcendentalismo kantiano. O iluminismo sinalizou com compromissos que não cumpriu, com uma sociedade livre e solidária que não conseguiu transcender dos textos das constituições programáticas. Realimentou-se a retórica salvacionista, usando-se da liberdade para matá-la e da razão para desracionalizá-la.

Em O Nome da Rosa explora-se também um pormenor no contexto da discussão da racionalidade no ambiente medieval. É que o racionalismo qualificava uma ameaça à teologia[4]. Por isso, partindo-se da premissa de que a razão melhor iluminava a compreensão do divino, defendeu-se que a racionalidade também era caminho para a comprovação da existência de Deus. William de Baskerville — aparentemente cético — porque racional, procura, a todo tempo, demonstrar a plausibilidade da experiência da fé. E Sean Connery deu-se muito bem no papel do frade doublé de detetive.

Os fatos narrados em O Nome da Rosa passam-se em 1327, num mosteiro beneditino. Certo clima escatológico domina quase todos os monges que desfilam pelo filme. No livro, os fatos se passam em exatos sete dias, divididos ordinariamente de acordo com a concepção de tempo dos mosteiros medievais: prima, sexta, moa, vésperas e completas. O filme mantém um passo muito parecido com a construção cronológica do livro.

O mosteiro, localizado idealisticamente em algum lugar do norte da Itália, será o palco de uma importantíssima discussão a respeito da pobreza de Jesus. Iria se discutir se Jesus seria dono (ou não) das próprias roupas que usava. Os franciscanos defendiam que Jesus não era dono de seus trajes, o que explicitava visão absolutamente desinteressada de bens seculares, característica na ordem de São Francisco, tradição que remontava ao próprio santo, que pretendia perdoar sem ser perdoado, e amar sem ser amado. As demais ordens religiosas, especialmente a dominicana, insistiam na necessidade da Igreja possuir bens na terra. O debate (aparentemente teológico) apontava para um confronto político, que se traduzia também numa discussão jurídica[5].

Os franciscanos eram vigiados pela Santa Inquisição. O Tribunal da Igreja remete-nos a uma primeira concepção de criminologia, centrada em textos que revelam autores “delirantes e perigosos, com gravíssimas fixações sexuais”[6]. Refiro-me, especialmente, a O Martelo das Feiticeiras[7] e ao Manual dos Inquisidores[8]; é neste último que se lê, por exemplo, que “é de fundamental importância prender a língua deles [dos acusados de heresia] ou amordaçá-los, antes de acender o fogo, porque, se têm possibilidade de falar, podem ferir, com suas blasfêmias, a devoção de quem assiste a execução”[9].

Os interrogatórios da Inquisição eram baseados na lógica da “alquimia ou inversão valorativa dos fatos”, técnica explicada por autor argentino, em tradução livre minha:

Quando uma mulher suportava a dor da tortura era porque o diabo havia lhe dado força; se confessasse, a queimavam de qualquer maneira, porém poderia salvar-se numa outra vida. Porém, se a mulher em desespero pela dor se enforcasse depois de ter confessado, era porque o diabo era responsável por sua condenação. Se enlouquecesse e começasse a rir enquanto torturada, era porque o diabo motejava dos inquisidores. Se se arrepende-se, é porque estava fingindo[10].

O inimigo era quem quer que pensasse de modo contrário ao dogma prevalecente[11]. No caso, o grupo dos franciscanos, cujo representante no debate seria William de Baskerville. Fatos estranhos, no entanto, começam a se multiplicar no mosteiro. Vários mortos foram encontrados. Um aspecto comum parecia ligar todos os casos. Os mortos apresentavam a língua e um dos polegares manchados de tinta.

É a investigação em torno dos intrigantes crimes que conduz o eixo temático do filme. Tem-se a impressão também de que Adso contempla várias visões[12]. Reconstrói-se um mundo imaginário da Idade Média, numa concepção historiográfica ostensivamente comprometida com ideário romântico, comum, principalmente, entre historiadores do Direito[13]. O espectador do filme tem a impressão de visitar a longa noite da história…

O inquisidor Bernardo de Guy, dominicano, é abertamente inimigo de William de Baskerville. Sua predisposição para condená-lo era objetivamente constatada pelo modo como as arguições eram conduzidas. Teimoso, William enfrentou o perigo da própria condenação, e demonstrou que os homicídios decorriam de leitura proibida de livro perdido de Aristóteles, no qual o estagirita pregava que ao homem não era proibido rir. Simplesmente. De alguma maneira já se intuíra que é rindo que castigamos os costumes.

A divulgação e o conhecimento deste pormenor do pensamento de Aristóteles, defesa do riso e da alegria, seria (no contexto do enredo de O Nome da Rosa) um perigo para a Igreja, que deveria engajar todas suas forças (principalmente junto à Inquisição) com o objetivo de evitar o conhecimento de tal livro. Os livros também matam, parece ser outra mensagem de Eco…

Adso de Melck sentiu-se atraído por uma moça que, como as demais moças do vilarejo, vendia-se aos monges, em troca de comida. Manteve relações íntimas com ela, circunstância que lhe provocou os horrores do pecado, do qual fora prosaicamente absolvido por William. Na cena final do filme, Adso foi obrigado a optar. Ou seguia-se mestre ou permanecia no local onde os fatos se passaram, e onde os familiares da moça viviam na mais absoluta miséria.

E porque a vida é uma opção permanente, e porque nunca sabemos quanto optamos corretamente, o dilema de Adso parece ser o problema de todos nós. Adso seguiu em frente, acompanhado William, relatando todos os fatos mais tarde na velhice. Um incêndio consumiu a biblioteca e o mosteiro. Talvez como uma epigramática referência de que os livros que conhecemos chegaram até por acaso, que não são necessariamente os melhores, e que há no processo de seleção dos referenciais de nossa cultura uma série de interferências, que jamais poderemos perfeitamente entender.

O Nome da Rosa é também um filme de Ciência Política, denunciando uma Igreja cheia de vícios, dominada por intrigas e querelas. Porém, é substancialmente também um raro propósito para que entendamos, definitivamente, que não há problemas exclusivamente jurídicos debaixo do sol. O que temos, sempre, são questões de economia e de política, cujas soluções passam por intrincadas formulações normativas e discursivas. Pode ser esta, mais uma, entre tantas mensagens que nos sugere O Nome da Rosa.


[1] Eco, Umberto, Pós-escrito a O Nome da Rosa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 9. Tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini.
[2] Eco, Umberto, cit., p. 20.
[3] Eco, Umberto, cit., p. 27.
[4] Cf. Ward, Ian, Umberto Eco’s the Name of the Rose, in Ward, Ian, Law and Literature- Possibilities and Prospectives, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 174.
[5] Eco, Umberto, O Nome da Rosa, Rio de Janeiro: Record, 2010, pp. 399 e ss. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e de Homero Freitas de Andrade.
[6] Zaffaroni, Eugenio Raul, La Palabra de los MuertosConferências de Criminologia Cautelar, Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 29. Versão livre para o português de minha responsabilidade.
[7] Kramer, Heinrich e Sprenger, James, O Martelo das Feiticeiras- Malleus Maleficarum, Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2007. Tradução de Paulo Fróes.
[8] Eymerick, Nicolau, Manual dos Inquisidores- Directorium Inquisitorum, Brasília: Editora da UnB, 1993. Tradução de Maria José Lopes da Silva.
[9] Eymerick, Nicolau, cit., p. 48.
[10] Zaffaroni, Eugenio Raul, cit., p. 31.
[11] Cf. Zaffaroni, Eugenio Raul, El Enemigo en el Derecho Penal, Buenos Aires: Ediar, 2009.
[12] Cf. Haft, Adele J., White, Jane G. e White, Robert J., The Key to the Name of the Rose, Ann Harbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 179.
[13] Cf. Posner, Richard, Frontiers of Legal Theory, Cambridge: Harvard University Press, 2004, pp. 145 e ss.

BIBLIOGRAFIA
Eco, Umberto, O Nome da Rosa, Rio de Janeiro: Record, 2010. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e de Homero Freitas de Andrade.
Eco, Umberto, Pós-escrito a O Nome da Rosa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini.
Eymerick, Nicolau, Manual dos Inquisidores- Directorium Inquisitorum, Brasília: Editora da UnB, 1993. Tradução de Maria José Lopes da Silva.
Haft, Adele J., White, Jane G. e White, Robert J., The Key to the Name of the Rose, Ann Harbor: The University of Michigan Press, 1999.
Kramer, Heinrich e Sprenger, James, O Martelo das Feiticeiras- Malleus Maleficarum, Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2007. Tradução de Paulo Fróes.
Posner, Richard, Frontiers of Legal Theory, Cambridge: Harvard University Press, 2004.
Ward, Ian, Umberto Eco´s the Name of the Rose, in Ward, Ian, Law and Literature- Possibilities and Prospectives, Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
Zaffaroni, Eugenio Raul, La Palabra de los MuertosConferências de Criminologia Cautelar, Buenos Aires: Ediar, 2011.

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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