Controle da administração

Alerta de tribunais de contas é prova subutilizada

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28 de abril de 2013, 7h18

As Cortes de Contas têm aplicado os alertas previstos no artigo 59 da Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF (Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000), mas ainda precisamos sair em busca da definição do seu conceito e do seu regime jurídico, no intuito de debatermos esse relevante instituto, buscando contribuir para retirá-lo do ostracismo em que se encontra, a despeito da força normativa que a lei lhe atribuiu.

Logo de saída, a questão dos alertas a serem emitidos pelas Cortes de Contas, em sinal duplo de aviso e notificação de que algo pode estar errado e que, por isso, deve ser reavaliado e corrigido, precisa ser posta no seu devido assento constitucional[1], qual seja, a integração entre os sistemas de controle interno e externo.

Ora, um dos maiores problemas reiteradamente diagnosticado no combate à corrupção e às falhas graves de gestão na Administração Pública brasileira é a insuficiência do controle. Mas esse parece ser um diagnóstico errado para o problema, pois não faltam ao ordenamento jurídico pátrio instituições competentes e regramentos aplicáveis à espécie.

O cerne da questão passa, como já pressupomos em nosso cotidiano, pela efetiva aplicação dos instrumentos e pelo diálogo consistente entre as instituições que os operam. Eis o ponto de partida que dá ensejo ao tema dos alertas.

Fato é que o artigo 59 da LRF, em seu parágrafo 1º, expressamente atribui aos Tribunais de Contas o papel de guardião do seu cumprimento, o que reclama, obviamente, um forte viés preventivo e concomitante no acompanhamento e controle das contas públicas.

O que não é tão óbvio e reclama atenção da comunidade jurídica é a relação entre os alertas e os fatos neles implicados para fins probatórios na esfera da persecução de delitos contra a Administração Pública e de atos de improbidade administrativa.

A Lei de Responsabilidade Fiscal previu[2] que os alertas devem ser expedidos sempre que for constatada alguma das seguintes hipóteses: (1) risco de frustração de metas e dever de contingenciamento de despesas e de movimentação financeira; (2) gasto de pessoal ultrapassou a casa de 90% do seu limite legal; (3) algum(ns) dos diversos indicadores de endividamento se encontra(m) acima de 90% do(s) seu(s) respectivo(s) limite(s); (4) gasto com inativo e pensionista ultrapassou limite (ainda precisa ser definido em lei) e, por último, mas não menos importante, (5) a ocorrência de “fatos que comprometam os custos ou os resultados dos programas ou indícios de irregularidades na gestão orçamentária” (grifo nosso).

Estamos aqui a defender que esta última hipótese de alerta, tal como prevista na Lei Complementar 101, de 2000, deve ser a mais prestigiada e a mais ampliada em escopo e envergadura para que alcancemos a máxima eficácia do arranjo constitucional de controle da Administração Pública. Isso porque as atividades cotidianas[3] de controle exercidas pelos Tribunais de Contas operam de forma automática[4] ao longo da execução orçamentária e podem desvendar falhas que, uma vez expostas como carecedoras de justificativa para o gestor público devidamente notificado para tanto, passam a exigir comprovação da regular aplicação dos recursos públicos, nos estritos termos do artigo 93[5] do Decreto-Lei 200, de 1967, e do caput do artigo 113[6] da Lei 8.666, de 1993.

Assim é que reputamos como alerta não só a decisão de conselheiro ou ministro de Tribunal de Contas, mas também cada uma das várias atuações técnicas dessas Cortes especializadas que fazem levantamento primário de problemas e falhas. Tais atuações materializam-se em relatórios que, por seu turno, servem de fundamento para que os gestores responsáveis sejam provocados a se justificar e apresentar suas razões de defesa em face dos fatos levantados.

Caso tal relatório — feito ex officio e preliminarmente pelas equipes de fiscalização — levante fatos que envolvam indícios de improbidade administrativa ou delito contra a Administração Pública, na forma da parte final do inciso V do parágrafo 1º do artigo 59 acima citado, não há dúvida de que se impõe o dever de alerta, de modo até mesmo a permitir que o gestor busque comprovar a boa e regular aplicação dos recursos públicos.

Neste ponto, contudo, é que se abrem algumas inquietações. O leitor mais atento nos provocará: por que é tão importante alertar o gestor responsável já no primeiro diagnóstico feito pela fiscalização? Por que não se pode aguardar o trânsito em julgado da análise administrativa feita pela Corte de Contas competente? Não se estaria a emitir alertas sem o devido processo legal? Por que os agentes que militam no sistema de controle judicial da Administração Pública se beneficiariam desse alerta emitido no nascedouro do sistema de controle externo?

Vejamos aqui que a chave das questões suscitadas acima reside na clássica inversão do ônus da prova em favor do sistema de controle, afastando, portanto, a presunção de veracidade, legalidade e legitimidade usualmente invocada em favor do ato administrativo. Embora, num primeiro momento, a presunção permaneça válida (eis que, caso não sejam objeto de fiscalização, os atos administrativos permanecem legítimos), caso contestados os atos pelo controle, interno ou externo, incumbe à Administração o ônus de afirmar e comprovar a legitimidade de seus atos.

Assim posta a equação entre alerta e ônus da prova, o resultado que dela podemos extrair é a progressiva mitigação da dificuldade de se provar o dolo específico do gestor em determinados crimes contra a Administração e nos atos de improbidade administrativa que causem dano ao erário ou ainda que lesem os princípios da boa gestão. Quem já tiver sido alertado e prossegue no erro não pode, posteriormente, alegar em juízo que não tinha consciência e vontade deliberada em assim proceder.

Tal lógica tende a ser tão mais eficaz quanto mais cedo ocorrer o alerta e por mais tempo perdurar a omissão do gestor em face do dever de justificativa e mesmo do dever de correção das despesas, renúncias de receitas e demais ações preliminarmente apontadas como contendo “fatos que comprometam os custos ou os resultados dos programas ou indícios de irregularidades na gestão orçamentária”.

Por outro lado, quando questionamos a necessidade de ampliação da admissibilidade jurídica dos alertas para antecipá-los, trazendo-os já para o momento inaugural da fiscalização técnica realizada diuturnamente em todos os Tribunais de Contas do país, temos em mente o severo ônus temporal da prescrição nas Ações de Improbidade Administrativa e Ações Penais que possam, porventura, decorrer daqueles indícios de irregularidades na gestão orçamentária a que se referiu o artigo 59, parágrafo 1º, V da LRF.

O risco de se aguardar toda a regular tramitação dos processos de prestação de contas para só, então, promover o alerta é ele deixar de ser alerta, ou seja, o aviso que previne e contém o erro, enquanto ainda era possível corrigi-lo. Com o decurso do tempo e caso persistam as falhas, a tônica do controle passará a ser repressiva e não mais preventiva, sem nos esquecermos do risco de perda de integração com as diversas possibilidades de responsabilização judicial, em face, sobretudo, da prescrição na esfera penal e da ação de improbidade.

Eis porque sustentamos a relevância e a força dos efeitos que irradiam da emissão dos alertas automáticos pelos Tribunais de Contas, nos termos do artigo 59 da LRF.

A despeito de a matéria soar como excessivamente técnica e, por isso, parecer cansativa, convidamos toda a comunidade jurídica que se preocupa com o controle de políticas públicas e com o combate às diversas formas de corrupção no âmbito da Administração Pública brasileira a lançar um olhar de curiosidade, ao menos, sobre o instituto dos alertas.

Militando contra o seu desconhecimento no senso comum, esperamos, sinceramente, que, em um futuro não muito distante, o alerta, uma vez interpretado à luz do binômio “aviso-notificação”, venha a ampliar sua ressonância de instrumento de controle preventivo e concomitante para além das fronteiras do Tribunal de Contas e lhe seja conferida renovada força jurídica para operar como um importante e ainda subutilizado meio de prova à disposição do controle judicial da Administração Pública.

À guisa de conclusão, citamos o alvissareiro exemplo do Recurso Especial Eleitoral 8.502[7], julgado no final do ano passado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que assegurou a plena força da Lei da Ficha Limpa ao manter como inelegível prefeito alertado previamente pelo TCE-SP sobre irregularidades, as quais, mais tarde, ensejaram a reprovação das contas municipais pela respectiva Câmara de Vereadores e, por fim, permitiram ao Judiciário considerá-las como atos de improbidade na via eleitoral competente.


[1] Tal como propugnado pela conjugação dos arts. 71 e art. 74 da CR/1988.

[2] O inteiro teor do citado dispositivo é o seguinte:

“Art. 59 […]

§ 1o Os Tribunais de Contas alertarão os Poderes ou órgãos referidos no art. 20 quando constatarem:

I – a possibilidade de ocorrência das situações previstas no inciso II do art. 4o e no art. 9o;

II – que o montante da despesa total com pessoal ultrapassou 90% (noventa por cento) do limite;

III – que os montantes das dívidas consolidada e mobiliária, das operações de crédito e da concessão de garantia se encontram acima de 90% (noventa por cento) dos respectivos limites;

IV – que os gastos com inativos e pensionistas se encontram acima do limite definido em lei;

V – fatos que comprometam os custos ou os resultados dos programas ou indícios de irregularidades na gestão orçamentária. […]”

[3] Sustenta-se aqui ser alerta toda e qualquer manifestação técnica do Tribunal de Contas que promova diagnóstico de falhas e/ ou irregularidades no curso da gestão orçamentária, o que inclui, por exemplo, desde o primeiro relatório de fiscalização feito anualmente em relação às Contas de Governo e de Gestão dos Chefes de Executivo, bem como em relação às Contas de Gestão das Casas Legislativas e das entidades da Administração Indireta, passando pelo acompanhamento de licitações impugnadas na forma do art. 113 da Lei nº. 8.666, de 1.993 e da execução dos contratos delas decorrentes, assim como o acompanhamento dos processos de dispensa e inexigibilidade de licitação, até a decisão final emanada por conselheiro em juízo singular ou pelos órgãos colegiados da Corte de Contas.

[4] O adjetivo “automático” aqui se refere à existência de um regular fluxo de relatórios, dados e processos tendente à permanente e cíclica responsabilização de gestores, quer no momento de julgar a sua prestação de contas nos moldes do art. 71, II da CR/1988, quer na avaliação continuada de atos (como os de admissão de pessoal, aposentadoria, licitações, contratos, convênios, transferências e repasses etc, tal como propugnado nos incisos III a VI do citado art. 71).

Nesse sentido, o caráter “automático” dos alertas advém da tessitura de instrumentos dados, em especial, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, os quais se articulam em rede para estender temporalmente a submissão ao controle. Tal rede torna a sujeição ao controle – na prática – perene e temporalmente contínua, a despeito de operar segundo o ciclo orçamentário. Dois exemplos interessantes estão contidos nos relatórios previstos nos arts. 52 e 54, a saber, o relatório resumido de execução orçamentária e o relatório de gestão fiscal que são exigidos, respectivamente, bimestral e quadrimestralmente, encurtando, sobremaneira, o tempo das prestações de contas, cujo balanço anual deve ser coerente e consistente com os dados enviados nesses dois relatórios de exigência mais próxima à gestão cotidiana.

[5] Cujo inteiro teor é o seguinte: “Quem quer que utilize dinheiros públicos terá de justificar seu bom e regular emprego na conformidade das leis, regulamentos e normas emanadas das autoridades administrativas competentes.”

[6] Conforme se lê a seguir: “Art. 113. O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto.”

[7] A seguir, podemos ler o trecho mais significativo da sua fundamentação: “[…] As irregularidades foram consideradas insanáveis pela própria Câmara (fls. 1422) e o dolo fica evidenciado pelo desrespeito não apenas às leis e princípios administrativos, como também pela inobservância à alerta do próprio Tribunal de Contas (fls. 1580).

Concluiu-se, ante as circunstâncias do caso, incidir o disposto no artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990, observada a existência de ato doloso de improbidade administrativa relativamente aos atos cometidos nos exercícios de 2007 e 2008. […]” (grifo nosso)

Autores

  • Brave

    É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

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