Embargos Culturais

Os Custos dos Direitos, parte 4

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

5 de maio de 2013, 8h00

Stephen Holmes e Cass Sunstein, no clássico The Cost of Rights — Why Liberty Depends on Taxes (Os Custos dos Direitos — Porque a Liberdade Depende de Impostos), afirmam que não há regime de propriedade sem a existência de um modelo tributário[1]. A fórmula capitalista depende de um arranjo institucional fiscal. Holmes e Sunstein seguem a máxima de Jeremy Bentham, pensador utilitarista inglês, para quem propriedade e direito nascem e morrem juntos. Apresenta-se alguma antropologia jurídica, no sentido de que antes do Direito não se poderia falar em propriedade; na inexistência daquele, não se poderia cogitar da existência deste último.

A propriedade, prosseguem Holmes e Sunstein, é conjunto relativamente complexo de coisas, decorrente de relação social juridicamente construída. Essa relação depende do Estado e, num sentido mais pragmático, da burocracia governamental. De tal modo, sem o governo, capaz de aplicar as regras que cria, insistem Holmes e Sunstein, não se pensaria no direito de uso, desfrute, fruição, gozo, disposição e até de destruição. Ainda que este último, naturalmente, deva ser condicionado às necessidades sociais.

Esse axioma também seria válido, com mais razão, nos chamados direitos de propriedade intangíveis, a exemplo de ações e de direitos intelectuais; nesse caso, observam Holmes e Sunstein, não se tem acessão física; deve contar o titular da prerrogativa com meios legais de proteção. É o modelo normativo (cujo funcionamento custa ao contribuinte) que propicia a proteção de que se necessita.

Na concepção de Holmes e Sunstein, direitos de propriedade simplesmente nada significam na hipótese de inexistência de autoridades governamentais capazes do uso de coerção física que resulte na exclusão de não proprietários. De modo mais óbvio, direitos de propriedade pressupõem sistema de controle de registros, razão das atividades cartoriais. A prosaica exigência de reconhecimento de veracidade de assinaturas é da afirmativa comprovação eloquente. Afinal, o reconhecimento de firmas deve ter alguma autoridade.

Nesse sentido, a propriedade no Direito norte-americano quantifica fundamentos legais do capitalismo, legitimando relações de uso e valor[2]. Identificada por conjunto de privilégios e responsabilidades, a propriedade configura direito exclusivo de controle de bem econômico. Abstratamente outorgável a todo ser humano, cidadão ou não, a propriedade secciona concretamente o universo na axiologia do ter. Cria a categoria do have e a sub-categoria do have-not, fragmentando o mundo entre proprietários e não proprietários. É o sistema normativo que regulamenta todo esse modelo e é o contribuinte quem sustenta a vida real dessa tipologia ideal.

Nos Estados Unidos, a propriedade real, real property ou realty, é topicamente imóvel, a exemplo da terra. Chama-se propriedade pessoal, personal property, quando caracteriza-se pela mobilidade física, a exemplo de livros, utensílios e ações. Por exclusão, a propriedade pessoal é toda propriedade que não é real. Essa divisão, de aparente raiz romanística, finca-se no entanto na common law, e refere-se à dicotomia entre propriedade feudal e não feudal, aquela primeira de caráter fundiário e de titularidade do valido do rei.

É tangível (tangible) quando plasma valores intrínsecos à existência da coisa, a exemplo de um automóvel. É intangível (intangible) quando não assume forma material, a propósito de cártula que traduza cota acionária, classificação que lembra divisibilidade entre coisas corpóreas e incorpóreas na tradição da civil law. A propriedade pessoal também emerge na propriedade intelectual, dividida em direito de reprodução de obra (copyright), em marcas (trademark) e em patentes (patent). Todo um sistema deve ser organizado, com o objetivo de se dar concretude a essas tipologias.

O modelo norte-americano suscita a aquisição da propriedade pelo trabalho, pela sorte, pela compra e pela posse, modalidades que são incentivadas pelo espírito empreendedor calvinista, como captado por Max Weber. O trabalho seria a própria dignificação do homem, contemplado pela graça divina, fonte de inspiração e incentivo à realização material da terra, sinal de eleição para salvação na vida após a morte.

A aquisição original (original acquisition) faz-se pela ocupação (occupancy), pelo encontro da coisa (finding), pela usucapião (adverse possession), por outorga pública (act of public authority). A aquisição derivada (derivative acquisition) faz-se pela venda (contract of sale), pela doação (donation), pela venda judicial (adjutication). São modos de transferência de propriedade. Todos eles detêm uma base jurídica, são reconhecidos por arranjos institucionais não menos jurídicos. O funcionamento do modelo demanda intervenção do Estado.

O detentor de direito de propriedade nos Estados Unidos implementa direitos de posse, de uso, de exclusão e de alienação. O detentor da propriedade real diz-se titular de um estate, ou de um interest. Essa qualidade divide-se em quatro aspectos, relativos ao nível de controle, à duração, ao espaço físico e divisibilidade do título. É o Estado quem os garante.

Quanto ao nível de controle, diz-se que o proprietário absoluto, aquele que exerce o maior grau de poder sobre a coisa, detém um fee simple absolute. Ele pode dispor da coisa por declaração feita em venda ou doação (deed) e por disposição testamentária (will). Também detentor de elementos possessórios, pode dispô-los, por meio de contrato de aluguel (lease). Juízes e tribunais fiscalizam a realização desses atos jurídicos.

No aluguel, tem-se a outorga de direito de posse a outrem, que pode assenhorar-se da coisa por determinado período de tempo. O locatário é chamado de lessee ou de tenant, o locador de landlord. Não há vedação estatutória à sub-locação (sublease ou sublet), porém contratos mais recentes têm limitado substantivamente essa possibilidade. Cartórios e burocratas tratam desse assunto.

Nos Estados Unidos o proprietário tem direito potestativo de usufruir o sossego que o uso da propriedade exige, o quiet enjoyment of the premises, com absolutos poderes para afastar invasores e perturbadores (trespassers). A propriedade é historicamente usufruída sob e sobre a superfície (below and above the surface of the land), de modo que o titular tem direitos de explorar minerais, petróleo e gás natural.

O proprietário está subsumido a vários deveres, identificados em geral com o título de nuisance, a exemplo da proibição de expelir gases tóxicos na atmosfera. Para tanto, o proprietário subordina-se a regras gerais da localidade, detentora de poder de polícia (police power). A propriedade real também enceta relações tributárias. Impostos (taxes) incidentes sobre a propriedade são de competência estadual e local. O quanto a ser pago (assessed value) decorre de alíquota (tax rate) aplicada ao valor da propriedade (ad valorem taxes), fixação geralmente feita pela comunidade em votação geral. Impostos pagos em razão da propriedade são dedutíveis do imposto de renda. O lucro obtido com a venda da propriedade, por outro lado, qualifica fato gerador de tributação sobre a renda. Há incidência também quando se faz a transferência da propriedade (transfer taxes on the sale of property), de competência estadual. Um modelo burocrático gigantesco deve controlar todas essas situações.

O modelo tem custos, suportados pelo contribuinte: é esse o núcleo da tese de Holmes e Sunstein. Não se pode associar, assim, propriedade e inexistência de autoridade governamental. De tal modo, prosseguem os autores norte-americanos aqui estudados, um modelo jurídico liberal não apenas defende e protege a propriedade: ele também o define e o cria. Imaginária associação entre direitos de propriedade e inexistência de Governo, em curiosa imagem de Holmes e Sunstein, seria como o jogo de xadrez, sem que se aplicasse as regras do jogo de xadrez…

O papel governamental, asseguram Holmes e Sunstein, consiste na manutenção das regras do jogo. É o que se compreende, em âmbito de direito de propriedade, com o regime de multas e compensações no direito civil, bem como com o conjunto de punições do direito penal. Com referência ao filósofo inglês David Hume, Holmes e Sunstein ponderaram que a propriedade privada é monopólio dado e garantido por autoridades públicas, arranjo que se faz mediante o uso de recursos também públicos, disponibilizados pelo contribuinte. Por essa razão, o exercício da propriedade privada dependeria, basicamente, da qualidade das instituições públicas, isto é, da atuação estatal. E esta última custa.

Consequentemente, a propriedade privada seria também resultado direto do arranjo fiscal e da disponibilidade governamental em gastar com modelo que propicie segurança jurídica que justifique a estrutura conceitual e real de direitos de propriedade. Como resultado, inferem Holmes e Sunstein que a segurança para que se transacione titularidades e prerrogativas também depende da habilidade governamental para extrair recursos privados e aplica-los com propósitos públicos. Trata-se do tema do bom governo.

Ao fim, a atuação governamental é de certa forma compensada. Retoma-se ideia que remonta a Adam Smith, no sentido de que a soma de esforços individuais resulte em benefício comum. O aumento da riqueza social, em grande parte também decorrente de investimentos estatais, redundaria no aumento de bens tributáveis; aumenta-se a arrecadação.

Holmes e Sunstein observam que os gastos com a defesa também têm por objetivo a proteção do direito de propriedade. O inimigo invasor ameaça a propriedade do nacional. Em grande medida, a fixação de orçamento generoso para com as forças armadas também tem por objetivo atender à essa necessidade, de proteção do direito de propriedade.

Holmes e Sunstein observam que o recrutamento militar de jovens de baixa renda seria forma de proprietários se beneficiarem indiretamente do Estado, em forma de imaginária contribuição cívica, por parte do conscrito. Para os autores aqui estudados, gastos com defesa pública qualificam exemplo dramático da dependência da garantia de direitos privados em relação a recursos preponderantemente públicos.

Holmes e Sunstein criticam os defensores da teoria do Estado mínimo, os libertários, a exemplo de Robert Nozick — impossível o Estado que não gaste com segurança e propriedade. Afirmam que os gastos dos Estados Unidos da América com segurança interna e com a defesa da propriedade privada são seguramente maiores do que o produto interno bruto de muitos países do mundo.

Para Holmes e Sunstein, um governo liberal, concebido de modo ideal, é aquele que extrai recursos privados para eficientemente redistribuí-los, mediante a produção de bens e de serviços públicos. Desse modo, insistem, a função do Governo consiste na construção e na manutenção de ambiente favorável e seguro para o desenvolvimento dos negócios privados. Por isso, sublinham, a dependência dos direitos privados para com recursos públicos confirma que não se pode opor Governo a mercados livres.

Consequentemente, prosseguem, detentores de direitos de propriedade dependem de cooperação social conduzida por autoridades governamentais. O funcionamento de um eficiente sistema de propriedade depende de um não menos eficiente sistema cartorário. Os campos não serão cultivados, os negócios não serão realizados, afirmam Holmes e Sunstein, se o Estado não oferecer suficiente proteção.

Subsídios agrícolas e isenções fiscais, custeados pelo contribuinte, e realocados pelo Poder Público, sustentam os preços das propriedades. Os mercados dependem das instituições jurídicas, da burocracia e das política públicas.

Para Holmes e Sunstein, é papel do Governo reprimir fraudes, investir em infraestrutura, garantir direitos de acionistas, supervisionar bolsas de valores, proteger propriedade intelectual, regular o setor bancário, apoiar a inovação, encorajar investimentos, fomentar a produção, estimular o uso eficiente de recursos escassos, definir direitos contratuais e regime de propriedade; para tal, devem coletar dinheiro do contribuinte, gastando de modo inteligente e responsável. Tanto quanto a justiça da arrecadação, deve-se também preocupar com a qualidade do gasto.


[1] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, The Cost of Rigths- Why Liberty Depends on Taxes, New York and London: W. W. Norton & Company, 2000, pp. 59 e ss.

[2] Exposição pormenorizada do modelo norte-americano de propriedade, com precisas indicações de fontes bibliográficas, encontra-se em livro meu, Direito nos Estados Unidos, Barueri: Manole, 2004, pp. 167 e ss.

Autores

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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