AP 470

Supremo (con)fundiu gestão temerária e fraudulenta?

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15 de abril de 2013, 16h56

O presente artigo tem como propósito analisar algumas das repercussões jurídicas do julgamento da Ação Penal 470, especificamente no que diz respeito ao enquadramento legal do delito de gestão fraudulenta e sua distinção em relação ao delito de gestão temerária

Para alcançar esse objetivo final, num primeiro momento, far-se-ão algumas considerações sobre a relevância histórica, política e jurídica do caso. É importante elencar algumas premissas metodológicas da análise, observado o fato de que, embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, a cobertura jornalística realizada durante todo o processo permite a identificação de algumas das controvérsias penais no julgamento.

Ação Penal 470: um divisor de águas.
No dia 2 de agosto de 2012, o Supremo Tribunal Federal, deu início ao mais extenso – e mais midiático – julgamento ocorrido desde a promulgação da Constituição de 1988: a Ação Penal 470, o chamado processo do mensalão (cuja repercussão internacional levou a revista The Economist, a denominá-lo pela expressão big monthly stipend).

Do ponto de vista histórico, o julgamento do mensalão foi um verdadeiro marco, afinal, pela primeira vez uma persecução penal foi iniciada, instaurada, processada e julgada integralmente perante o Supremo Tribunal Federal. Ademais, jamais a Corte havia recebido uma denúncia com um número tão expressivo de acusados.

Do ponto de vista político, não foi diferente. Afinal, o número expressivo de denunciados não era composto por “pessoas comuns”. Figuravam entre os réus: José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares e outros integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), partido do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva[1], além de outros acusados que compunham a cúpula do Poder Executivo Federal e vários detentores de mandatos parlamentares no Congresso Nacional. Além disso, há pelo menos dois aspectos políticos internos interessantes: i) a maioria da composição da Corte, ou melhor, seis ministros – das 11 vagas –, foi alterada durante o processamento e julgamento do caso (cinco aposentadorias: Sepúlveda Pertence, Eros Grau, Ellen Grace, Cezar Peluso e Ayres Britto e a lamentável morte de Menezes Direito); e ii) houve alteração na Presidência da Corte durante as sessões de julgamento ocorridas no segundo semestre de 2012 (transição da gestão de Ayres Britto para a atual de Joaquim Barbosa).

Do ponto de vista jurídico – e aqui está o cerne deste artigo –, pode-se dizer que o julgamento da Ação Penal 470 afigura-se como um precedente paradigmático para o enfrentamento de casos penais. Embora se trate de caso de típico exercício de controle difuso, a complexidade desse julgamento ancora-se não só no fato de que as condutas imputadas aos agentes envolviam elevadosníveis políticos e econômicos de organização, mas, também, no aspecto de que havia um número extenso de tipos penais em discussão e de bens jurídicos penais tutelados. O caso torna-se, por isso mesmo,um divisor de águas para sentenças e acórdãos penais proferidos pelos diversos juízos e tribunais do país.

Dentre as inúmeras questões jurídicas relevantes[2], este artigo pretende se direcionar para um aspecto bem específico: o estudo da distinção técnico-jurídica entre os delitos de gestão fraudulenta e gestão temerária (respectivamente, os tipos penais previstos pelo art. 4º, caput; e paragrafo único do mesmo art. 4º da Lei 7.492/1986).

Para alcançar tal finalidade, deve-se ressalvar que, até o presente momento, não foi disponibilizado o acórdão da Ação Penal 470, e, como destacado pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, durante o julgamento, apenas os votos do relator e do revisor foram lidos e “os demais votos foram simplesmente comentados, sintetizados ou resumidos, tanto que os Ministros Vogais expressamente afirmaram, a cada manifestação, que traziam alentado ou substancioso voto, que passavam às mãos do presidente para posterior publicação”[3]. Apesar disso, a cobertura durante todo o julgamento permite a identificação de uma relevante controvérsia penal: afinal, teria o Supremo Tribunal Federal realizadodistinção adequada entre as condutas de gestão fraudulenta e gestão temerária ao condenar os dirigentes do Banco Rural?

Gestão Fraudulenta versus Gestão temerária: houve distinção adequada?
A Lei 7.492/1986, que trata sobre os crimes contra o sistema financeiro, é diploma legal extremamente criticado pela doutrina especializada. Para o advogado Manoel Pedro Pimentel, a norma está no grupo de “leis imperfeitamente redigidas e defeituosamente concebidas[4]. Segundo o advogado, a mencionada lei utilizou-se de combinação dos mais desfavoráveis métodos para o enquadramento legal de seuscrimes: i) tipos penais abertos (art. 4º, caput e parágrafo único); ii) tipos de mera conduta e perigo abstrato (art. 17, caput); iii) normas penais em branco (art. 22, caput) e, por fim;iv) responsabilização objetiva (art. 25, caput).[5]

Obviamente, não se pretende aqui fazer uma crítica, em tese, à Lei 7.492/1986. O que se pretende, em verdade, é verificar como o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, interpretou a referida lei e quais os elementos levaram o tribunal a condenar os dirigentes do Banco Rural, no caso concreto, pelo crime de gestão fraudulenta – e não pelo crime de gestão temerária.

Elias de Oliveira, um dos primeiros criminalistas a analisar a distinção entre as condutas de gestão fraudulenta e gestão temerária, sustenta que: “por gestão fraudulenta deve entender-se todo ato de direção, administração ou gerência, voluntariamente consciente, que traduza manobras ilícitas, com emprego de fraudes, ardis e enganos. Ao passo que gestão temerária significa a que é feita sem a prudência ordinária ou com demasiada confiança no sucesso que a previsibilidade normal tem como improvável, assumindo riscos audaciosos em transações perigosas ou inescrupulosamente arriscando o dinheiro alheio.[6]

No mesmo sentido, preceitua o professor Cezar Roberto Bitencourt sobre a gestão fraudulenta: “gerir fraudulentamente, isto é, alterando a verdade ou a natureza de fatos, documentos, operações ou quaisquer ações diretivas, sempre tem a finalidade de enganar alguém, induzindo-o ou mantendo-o em erros.”[7] Em complementação, o professor Luiz Régis Prado aduz que, para haver caracterização do crime de gestão fraudulenta, a instituição acusada deve “enganar investidores”[8].Nota-se, portanto, que há uma preocupação doutrinária em distinguir, do ponto de vista do elemento subjetivo (dolo), a conduta mais grave (gestão fraudulenta) da conduta menos grave (gestão temerária). Tal diferenciação é, inclusive, perceptível pelas diferentes penas cominadas a tais delitos, respectivamente: de três a 12 anos de reclusão e multa; e de dois a oito anos de reclusão e multa.

Além dessas considerações doutrinárias, é certo que a jurisprudência pátria não desconhece a diferença entre tais tipos penais. Sobre a gestão temerária, opróprio Superior Tribunal de Justiça, órgão do Poder Judiciário que tem como função primordial zelar pela uniformidade das interpretações da legislação federal brasileira, possui inúmeros julgados que reconhecem a autonomia normativa do delito de gestão temerária. A título meramente ilustrativo, veja-se o seguinte precedente unânime da 5ª Turma do STJ:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. GESTÃO TEMERÁRIA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA NÃO CONFIGURADA. ORDEM DENEGADA.
1. A descrição de condutas que excedem o limite inerente aos riscos da atividade negocial na denúncia – como a concessão de empréstimos sem constituição das garantias consideradas suficientes pela praxe do mercado e em favor de sociedades empresárias reconhecidamente impontuais no cumprimento de suas obrigações, não obstante reiterada advertência do Banco Central do Brasil – são suficientes para, em tese, configurar o crime de gestão temerária de instituição financeira, não havendo como afastar a responsabilidade penal sem a realização da instrução criminal.
2. A verificação da existência de culpa stricto sensu ou dolo revela-se incompatível com a via estreita do habeas corpus.
3. Satisfazendo a peça acusatória os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, a elucidação dos fatos nela narrados depende da regular instrução criminal, pois o trancamento da ação penal, pela via do habeas corpus, somente é possível quando verificada, de plano, atipicidade da conduta, extinção da punibilidade ou ausência de mínimos indícios de autoria e prova da materialidade.
4. Ordem denegada. (STJ, HC 56800/PE, 5ª Turma, Votação Unânime, Relator Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 16/10/2006).

Voltando ao caso da Ação Penal 470, é necessário destacar quais foram as condutas objetivamente imputadas aos réus pela acusação. Narra a denúncia “em relação ao Banco Rural, a análise de todo o acervo documental acima demonstrou as seguintes situações, caracterizadoras da má gestão dessa instituição: renovações sucessivas das operações, visando a impedir que apresentem atrasos, ocultando o real risco dos créditos concedidos; aumento do limite de contas garantidas, com renovações a cada 90 dias, e o aumento dos limites existentes ou concessões de novas operações de crédito na mesma modalidade; liquidação de operações de crédito com outras em modalidades diferentes da primeira, onde a instituição, por exemplo, concedia um mútuo de capital de giro para liquidar operações de crédito rotativo ou outros empréstimos em atraso; concessões de crédito temerárias; geração de resultados fictícios com operações de crédito; operações autorizadas pelo Comitê de Crédito apesar de parecer contrário do analista de crédito; indícios de desvio de recursos do Banco para empresas pertencentes ou ligadas ao Controlador do Conglomerado Financeiro Rural; transferência de ativos para fundo de direitos creditórios administrado pelo Banco Rural; exigência de reciprocidade para as concessões de crédito; empréstimos a empresas nacionais cujo controle acionário é de empresas localizadas em paraísos fiscais, com possibilidade de possuírem relacionamento entre si e entre o Controlador do Banco Rural; e; indícios de utilização de Cédulas de Produtor Rural – CPRs para desviar recursos para empresas não financeiras”. A acusação conclui, por fim, que “procedendo de modo livre e consciente, na forma do art. 29 do Código Penal, JOSÉ ROBERTO SALGADO, AYANNA TENÓRIO, VINÍCIUS SAMARANE e KÁTIA RABELLO estão incursos nas penas do artigo 4º da Lei n.º 7.492/1986.[9]

Verifica-se, que o Ministério Público Federal, em sua narrativa, ora sustenta a hipotética ocorrência de irregularidades administrativas – que configurariam inclusiveilícito administrativo –, ora afirma a existência de dados incompatíveis com uma gestão responsável – que caracterizariam, segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ, o crime de gestão temerária. Aliás, o MPF faz menção expressa ao elemento do tipo do crime de gestão temerária ao afirmar que o Banco Rural realizou “concessões de crédito temerárias”, mas, acaba por imputar aos réus – coletivamente e sem a identificação precisa do papel de cada um dos denunciados – o crime de gestão fraudulentae as “penas do artigo 4º da Lei n.º 7.492/1986”, sem realizar qualquer distinção entre os tipos penais.

Diante da manifesta ausência desses detalhamentos na imputação, não parece lógica, nem tampouco premissa automática, a conclusão de que tais condutasjustificariam, por si sós, a condenação pelo crime de gestão fraudulenta (e não pelo crime de gestão temerária). A propósito, o art. 383 do Código de Processo Penal prevê o instituto da emendatio libelli, que é aplicável quando o juízo competente verifica que a definição jurídica dada ao fato na denúncia está equivocada, fazendo a correção em sua sentença, julgando o réu conforme o adequado enquadramento jurídico-penal.

Portanto, diante da imperfeição da peça acusatória, caberia ao Supremo Tribunal Federal diferençar o enquadramento do art. 4º, caput (gestão fraudulenta),em relação ao tipo do parágrafo único (gestão temerária). Em razão da pendência da divulgação dos votos dos ministros, aparentemente, a contradição e confusão conceitual quanto à distinção dos tipos penais envolvidos em relação a essa acusação específica, senão vejamos:

“Em flagrante descumprimento desses preceitos normativos, os então principais dirigentes do Banco Rural procederam a rolagem de dívidas com incorporação de encargos. Realizavam estornos relativos a encargos financeiros devidos em virtude de atrasos e mantiveram a mesma classificação de risco”, disse Joaquim Barbosa.[10]
O ministro Gilmar Mendes retomou aspectos abordados por outros ministros que o antecederam. O ministro citou como evidência dos crimes atribuídos aos réus o fato de as “concessões temerárias de crédito” terem ocorrido a partir de cadastros incompletos dos contraentes e por meio de “manobras contábeis e escriturais”, que maquiavam a não amortização dos empréstimos.[11]
“O Banco Rural não cumpriu as prescrições do Banco Central, e isso está estampado no processo. O empréstimo ao PT ocorreu sem que houvesse sequer cadastro no estabelecimento bancário”, disse Marco Aurélio.[12]
Dada a incorreta classificação dos riscos das operações, os dirigentes acobertaram voluntariamente a fraude por trás dos empréstimos. “Nem gestão temerária, nem gestão fraudulenta, mas tenebrosa, pelos riscos que acarreta para a economia popular”, disse Luiz Fux.[13]

Nota-se, a partir dessa cobertura jornalística, que há indícios de que os ministros do Supremo Tribunal Federal, a todo o momento, fundiram conceitos típicos dos dois crimes distintos, sem, contudo, distingui-los devidamente. Tal fato nos leva a pensar, salvo a apresentação de adequada fundamentação pelo acórdão pendente de publicação, que ao julgar a Ação Penal 470, os Ministros desconsideram a complexidade decorrente da abertura descritiva dos tipos previstos na Lei 7.492/1986: “gerir fraudulentamente instituição financeira” (art. 4º, caput); e “se a gestão é temerária” (parágrafo único).

Além dessa questão, há outro elemento bastante relevante ressaltado pelo ministro Marco Aurélio – em seu voto já disponível – com relação à necessidade constitucional da individualização da responsabilidade penal. Acerca desse ponto, o ministro ponderou quanto ao artigo 25, caput, da Lei 7.492/1986, ao votar pela absolvição do réu Vinicius Saramane, que:

“Descabe generalizar, descabe partir para uma nova doutrina, que seria a admissão do crime por presunção. Subscreveu os relatórios, ocupou o cargo – em um primeiro passo, nomeado, depois, eleito estatutariamente – de diretor interno e, por isso, apenas por isso, é responsável pela gestão fraudulenta.”[14]

Ou seja, não é possível deduzir, automaticamente, que a simples condição de controlador, administrador, diretor ou gerente de instituição financeira enseje hipótese de responsabilização penal objetiva. Assim como o dever de descrição objetiva e adequada do tipo penal aplicável às condutas imputadas, é ônus da acusação a comprovação individualizada da responsabilidade penal dos acusados.

Uma vez que persiste a indefinição quanto à distinção entre as figuras jurídicas da gestão fraudulenta e da gestão temerária, surge fundada preocupação em que os demais tribunais e juízos penais do Brasil efetuem generalização e confusão entre condutas normativas distintas. Além do risco de insegurança jurídica, surge, também, a possibilidade concreta de que casos típicos de gestão temerária sejam punidos, indevidamente, como gestão fraudulenta. Tudo indica que, de fato, a Ação Penal 470 é um divisor de águas. Em matéria da distinção penal tratada por este artigo, contudo, essas águas continuam procelosas.


[1]A denúncia foi apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) no dia 30 de março de 2006: http://www.conjur.com.br/2006-abr-11/ministerio_publico_denuncia_40_causa_mensalao
[2]Como ressaltado pelo advogado Rodrigo Lago, em seu artigo intitulado “O mensalão e a Prerrogativa de Foro por Conexão”, a verdade é que “após este julgamento, várias questões ainda suscitam controvérsias, tanto em matéria penal, como também em matéria constitucional, incentivando os debates” (disponível em http://www.osconstitucionalistas.com.br/o-mensalao-e-a-prerrogativa-de-foro-por-conexao)
[4]PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 11.
[5]PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 10 -24.
[6]OLIVEIRA, de Elias. Crimes contra a economia popular, Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1952, p. 154.
[7]BITENCOURT, Cezar Roberto. BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris, 2010, p. 40.
[8]PRADO, Luiz Régis. Direito Penal Econômico. 5ª Edição. São Paulo: Editora RT, 2012, p. 228.

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