Observatório Constitucional

Soberania popular, representação e jurisdição

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6 de abril de 2013, 8h02

Spacca
Segundo os termos da Constituição brasileira “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (artigo 1º, parágrafo único), proclamando, assim, três fundamentos centrais do nosso sistema político: (i) Uma vez que, todo poder emana do povo, a soberania popular é a fonte de toda autoridade normativa, inclusive da própria Constituição em que isso se estabelece; (ii) apesar da possibilidade de ser exercido diretamente, geralmente esse poder é exercido por meio de representantes que agem em seu nome; (iii) seu exercício é limitado em suas manifestações diretas e indiretas pela Constituição – cuja autoridade, como já dito, emana do povo.

Mas qual a relação entre o povo-pretérito, que concretamente legitimou a promulgação da Constituição, e o povo-presente, simultaneamente limitado por ela e fonte de “todo o poder”? Qual a relação entre representantes e representados quando aqueles exercem esse poder em seu nome? Como resolver conflitos entre diferentes instituições representativas? Qual a relação entre a normatividade da Constituição e a vontade popular?

Responder a todas essas perguntas evidentemente iria além do escopo dessa breve coluna. Meu objetivo é bem mais simples: tendo tais questões como pano de fundo, e no contexto do salutar debate sobre a adequada relação entre jurisdição constitucional, Legislativo, Executivo e opinião pública que tem sido travado nesse espaço[1], gostaria de analisar os diferentes tipos de conflitos entre decisões judiciais e a vontade popular — direta ou indiretamente exercida — que se escondem por trás dos termos gerais em que essa questão por vezes é colocada, discutindo como a “vontade popular” idealizada se manifesta concretamente, e as diferentes funções possíveis da jurisdição constitucional — por vezes imaginada como verdadeira representante dessa vontade, por outras como limite ao seu exercício.

Quanto às manifestações concretas da vontade popular, em primeiro lugar, é útil considerar a existência de três “tipos ideais” de cidadãos[2]. O “cidadão-público”, que dedica a maior parte de sua atenção e tempo ao acompanhamento das instituições e os debates políticos; o “cidadão-privado”, que considera “política” apenas uma (normalmente sequer a mais importante) entre muitas áreas de interesse em que sua vida é dividida (dedicando maior ou menor atenção conforme o momento e tema específico e contando com a existência dos “cidadãos-públicos” para soarem o alarme se algo realmente importante estiver acontecendo); e o “indivíduo-privado”[3], que não tem nenhum interesse nos debates políticos que eventualmente estejam acontecendo.

Evidentemente todos eles são “cidadãos” no sentido formal do termo, mas a importância de sua própria cidadania varia para cada um — e sistemas políticos têm suas instituições desenhadas para lidar com essa realidade, seja dando mais valor a opinião de uns do que de outros, seja tentando gerar maior interesse e participação popular (por exemplo, delimitando períodos eleitorais, instituindo campanhas informativas, estimulando debates políticos etc). Tal questão pode ser representada simplificadamente como o problema da “profundidade” da opinião pública.

Em segundo lugar, é fundamental ter em mente que cada cidadão possui um conjunto de opiniões políticas diversas, variando significativamente quanto à importância e à prioridade que dá a cada uma delas. Além disso, normalmente se é obrigado a tomar decisões estratégicas sobre onde depositar apoio político, considerando a viabilidade momentânea de uma causa e o fato de que movimentos, partidos e candidatos geralmente representam um bloco agregado de escolhas — com maior ou menor similitude com as suas próprias. Tais questões podem ser representadas simplificadamente como problemas do “voto agregado” e do “voto estratégico”.

Em terceiro lugar, há que se considerar que as diversas instituições políticas desenhadas para representar a vontade popular podem ser compostas diferentemente quanto à forma de eleição, momento, e tempo de mandato de cada um de seus membros. Assim, por exemplo, o legislativo pode ser composto por uma ou duas câmaras, com membros eleitos a partir de eleições proporcionais ou majoritárias; o executivo pode ser composto a partir do resultado das eleições legislativas ou independentemente por meio de uma eleição majoritária (que pode ter apenas um, ou mais de um turno); e a jurisdição constitucional pode ser exercida por uma instituição composta por membros escolhidos de maneiras muito diferentes, com maior ou menor influência do legislativo, executivo e judiciário nessa decisão. Além disso, apesar de algumas dessas eleições poderem ocorrer simultaneamente, normalmente as diferenças procedimentais e de tempo de mandato levam a que algumas (senão todas) elas ocorram em diferentes períodos. Tais questões podem ser representadas simplificadamente como problemas do “desenho eleitoral” e da “momentaneidade da representação”.

Temos assim, Legislativo, Executivo e Judiciário, compostos em momentos distintos, de maneiras e por períodos diferentes, com graus variáveis de influência de um sobre a composição do outro e com maior ou menor participação popular direta nesse processo, o qual, realisticamente, é realizado por cidadãos que têm um limite de tempo e interesse em questões políticas e têm suas escolhas limitadas pelas opções que lhe são apresentadas.

Nesse contexto, cada uma dessas instituições, pode alçar a si mesma como representante privilegiado da soberania popular, seja conforme a sua manifestação nas eleições mais recentes, seja conforme sua manifestação na Constituição. Mas a correspondência real entre o mandato popular clamado pelos representantes políticos e a efetiva vontade do povo soberano é sempre uma questão em aberto.

Na maioria do tempo, as instituições funcionam sem qualquer conflito. Leis são promulgadas pelo Legislativo, sancionadas e implementadas pelo Executivo e seu cumprimento é garantido pelo Judiciário sem que haja confronto entre essas decisões e a opinião popular — seja em sua manifestação atual, seja em sua manifestação constitucional. No entanto, a possibilidade de conflitos está sempre presente, e por vezes se manifesta concretamente em um caso a ser resolvido no âmbito da jurisdição constitucional.

Provocada a tomar uma decisão sobre a constitucionalidade de uma decisão de outra instituição política, a corte constitucional muitas vezes encontra uma divisão entre a opinião popular manifestada diretamente nas ruas, pesquisas de opinião e na imprensa e aquela representada pelo Legislativo ou Executivo. Por vezes temos, de um lado o Legislativo, e de outro o Executivo com apoio da opinião popular. Por outras, temos o oposto: Executivo em confronto com o Legislativo, o qual tem apoio da opinião popular. Outras vezes, temos Executivo e Legislativo em confronto com a opinião da maioria da sociedade. E, ainda em outras, temos Executivo e Legislativo, apoiados pela opinião popular, em confronto com um indivíduo ou minoria.

Em cada uma dessas situações, decidir sobre a constitucionalidade de uma medida significa necessariamente tomar partido em um confronto político, seja em um confronto sobre a correta interpretação da Constituição (manifestação da soberania popular), seja em um confronto sobre a permanência daquilo que foi constitucionalmente decidido frente às transformações dos fatos e opiniões ocorridas no decorrer do tempo.

Nesse quadro, há três maneiras muito diferentes de imaginar a função de uma corte constitucional em tal processo: (i) como representante privilegiado da “verdadeira” opinião popular, (ii) como mecanismo institucional de verificação do suporte político real daqueles que clamam ter um mandato para representar o povo, (iii) como limite institucional a certas escolhas políticas, independentemente de seu apoio popular substantivo.

Na primeira hipótese, imagina-se uma corte exercendo uma função “majoritária”, em sintonia com a vontade coletiva, e capaz de canalizar em suas decisões demandas e opiniões populares que não são efetivamente representadas pelo Legislativo e Executivo, seja por deficiências no desenho do sistema, seja pelo poder de veto de uma minoria organizada, seja pela influência de grupos poderosos (mesmo que não representativos). Nesse caso, diante das dificuldades relativas à manifestação concreta da vontade popular[4], a jurisdição constitucional seria considerada mais capaz de representar a vontade popular do que os poderes eleitos diretamente. Situação em que, muitas vezes, a atuação da corte é saudada pela maioria da população e da imprensa e, apesar de resistências específicas, não há grande oposição por parte dos representantes eleitos — os quais podem ficar mesmo gratos pela resolução de uma questão sobre a qual lhes seria difícil ou incômodo decidir.

Na segunda hipótese, imagina-se uma corte exercendo uma função “preservadora/verificadora”. Tomando a Constituição como manifestação privilegiada da soberania popular, sua função seria a de preservar tais decisões políticas frente às outras manifestações que não tenham o mesmo grau de representatividade, exercendo o controle constitucional como uma maneira de verificar o real substrato daqueles que clamam um mandato da soberania popular. Assim, a corte não pretende representar a vontade popular atual, mas proteger a manifestação pretérita da vontade popular mobilizada, a qual seria privilegiada por não sofrer (ou sofrer em menor grau) das dificuldades de verificação concreta do apoio popular, que atos legislativos cotidianos normalmente possuem[5]. Situação em que, a atuação da corte por vezes não é questionada pela população — mostrando a falta de apoio popular da medida vetada — ou, por outras, leva a uma grande mobilização política contrária à decisão — a qual pode se materializar na promulgação de nova legislação no mesmo sentido, de uma emenda constitucional, ou na paulatina substituição de membros da corte por outros em sintonia com essa vontade popular. Nesse último caso, a corte, atuando como mecanismo de verificação do apoio popular de uma medida transformadora, encontra de fato uma confirmação da decisão dos cidadãos de transformar substantivamente o sistema político.

Na terceira hipótese, imagina-se uma corte “contramajoritária”. A qual, tomando a Constituição como limite ao exercício da soberania popular, teria função de protegê-la de maiorias subsequentes à sua própria promulgação. Tal concepção traz consigo a necessidade de desenvolver uma justificação teórica para essa limitação da soberania popular. Em alguns casos isso é justificado por se imaginar a Constituição como manifestação de uma vontade soberana qualitativamente superior. Em outros, isso é justificado por se fundamentar a autoridade constitucional, não na soberania popular, mas em uma filosofia específica (secular ou religiosa) que é verdadeira e digna de proteção independentemente de seu apoio majoritário. Em outros ainda, isso é justificado por a Constituição representar um pacto entre grupos distintos e antagônicos de uma sociedade, cuja preservação é a única garantia da estabilidade política e social. Independentemente de seu fundamento, nesse caso o que está em jogo não é o questionamento da capacidade do sistema político representar a vontade popular, mas uma limitação substantiva ao exercício dessa vontade majoritária, independentemente de sua real manifestação.

Cada uma dessas diferentes maneiras de imaginar o fundamento de autoridade e função da jurisdição constitucional se manifesta em teorias constitucionais, textos normativos, ideologias políticas e realidades concretas de sistemas político-jurídicos distintos. E, diante disso, qualquer discussão sobre a relação entre soberania popular, representação política e jurisdição constitucional deve, antes de mais nada, identificar na história política, no desenho normativo, na cultura e prática de um sistema, qual dessas imagens tem prevalência. Inegavelmente, teóricos constitucionais costumam ter suas próprias preferências e opiniões sobre qual seria a melhor maneira de se constituir essa relação, no entanto, não podem ignorar ou se sobrepor às decisões legitimamente tomadas por uma comunidade política.


[1] Rodrigo de Oliveira Kaufman, O Congresso das perguntas e o STF das respostas; Bruno Vinícius Da Rós Bodart, A quem interessa um Supremo Tribunal Federal omisso?; Rodrigo de Oliveira Kaufman, Dignidade e fundamentalismo na jurisdição constitucional; Marcelo Casseb Continentino, Quem deve velar na guarda da Constituição?.
[2] Essa tipologia (no sentido weberiano de “tipo ideal”) é apresentada por Bruce Ackerman e está na base de sua diferenciação entre “política ordinária” (normal politics) e “política constitucional” (constitutional politics). Cf. Bruce Ackerman. We the People: Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1993, pp. 230-243.
[3] Ackerman usa o termo “perfect privatist”.
[4] Especialmente aquelas geradas pelo “voto agregado”, “voto estratégico”, “desenho eleitoral” e “momentaneidade da representação”.
[5] Diferentes Constituições podem ser mais ou menos capazes de superar os problemas do “voto agregado”, “voto estratégico”, “desenho eleitoral” e “momentaneidade da representação”, dependendo do seu processo de elaboração e promulgação. Já quanto à questão da “profundidade” da opinião pública, a excepcionalidade do momento de elaboração constitucional tende a transformar “indivíduos-privados” em “cidadãos-privados”, e “cidadãos-privados” em “cidadãos-públicos”, de forma que constituições normalmente representam o produto de uma opinião pública excepcionalmente informada e mobilizada em torno de seus interesses.

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