Serviço lícito

Criminalização de honorários é fruto de preconceito

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30 de setembro de 2012, 8h00

O primeiro examinando subiu ao púlpito para sustentar que matar o próximo não é legítimo, salvo em algumas situações excepcionais, mas falou disso apenas com o espírito e com alguma eloquência; o segundo examinando havia estudado anos a fio na Alemanha, e fez muito mais bonito: dissecou os antigos, desfilou citações de dezenas de autores hodiernos, mostrando ao final um vasto conhecimento doutrinário sobre o tema. Sua tese: matar o próximo faz bem para todos, porque o homem é uma praga que merece ser extirpada do planeta.

Embora não concordassem muito com a tese, os professores admiraram a capacidade intelectiva do estudante, e a sua vasta dedicação à ciência, tendo em vista a pesquisa exaustiva, que não deixou passar despercebidos inclusive alguns professores da banca. Para usar a distinção de Perelman, o orientando não persuadiu, mas convenceu e foi aprovado com louvores; o primeiro persuadiu, mas não convenceu, saiu reprovado e derrotado.

Passados alguns anos, a menção ao nome do primeiro logo passou a ser associada à retórica barata, ao discurso vazio de conteúdo científico, raso, superficial; já o segundo, passou a ser convidado a inúmeros seminários, sempre aplaudido com entusiasmo, pela coerência científica que buscava no seu raciocínio.

Quando alguém se levantava indignado dizendo “isto é um grande absurdo”, o palestrante, saudado pelos componentes da mesa, retrucava quase com escárnio: “ora, meu caro, absurdo não é argumento científico”. Passados mais alguns anos, os alunos deste gênio acadêmico já não se contentavam simplesmente em sustentar suas teses, mas a praticavam, exterminando quem vissem pela frente.

Embora fictícia, essa pequena estória retrata um pouco os rumos que o direito penal vem tomando ultimamente. Quando um ministro do STF diz que o ônus de provar a inocência é da defesa, fica fácil perceber como o que ontem era absurdo hoje pode virar “entendimento”. Parafraseando Dostoievski, quando qualquer coisa sobre a vida do Estado e dos seus cidadãos é questão de entendimento, tudo é permitido. O caminho é perigoso.

Isso está acontecendo com o tema dos honorários do advogado e a pretensão de alguns de enxergar lavagem em seu recebimento. Pilhéria. E pior, pilhéria que só se faz legitimar quando levada para um debate puramente técnico-dogmático, porque nas palavras de Zafaroni, a ciência jurídica pura é uma garrafa vazia, aceita tudo, basta que seja bem fundamentada, e tudo que depende de entendimento vira menor, afeito apenas à ciência e seus laboratórios artificiais, alheio ao cidadão. Ou seja, levar o debate dos honorários para o campo dogmático é, do ponto de vista da política aristotélica, legitimar o discurso incriminador.

Não! Nós, advogados, precisamos fazer como o estudante incauto que subiu ao púlpito para dizer que matar o semelhante é um absurdo! Criminalizar os honorários do advogado em qualquer hipótese é um absurdo! É simples assim e por razões que transcendem a dogmática, a ciência penal, ou este ou aquele entendimento técnico sobre o tema, com todas as vênias aos pesquisadores e estudiosos. Ou será que precisamos ter lido e relido os alemães para saber que não devemos matar um semelhante?

Parece que colocar uma questão qualquer no processador da dogmática penal virou fetiche, como se houvesse um certo prazer em ver confirmada a coerência do sistema. E então o modelo abstrato vai fagocitando tudo que encontra pela frente, vai engordando e deformando-se, para se adaptar e não morrer. O meio jurídico parece ter-se olvidado que o valor fundamental do homem e, por conseguinte, do direito, é o próprio homem, e não o funcionalismo, o finalismo, o círculo de sei lá quem, as pirâmides daquele outro…

Em nome da coerência sistêmica, temos relegado a um patamar inferior a essência que emana da natureza das coisas, temos renegado as ideias que emanam do espírito. Mas talvez falar de espírito não seja técnico o suficiente para ser levado a sério. Meu deus, para onde estamos caminhando?

Se nós educamos nossos filhos com a força do espírito — pelo menos ainda não conheci quem educasse seus filhos por meio de técnicas dogmáticas — por que não podemos falar sobre o futuro deles da mesma forma? Precisamos de mais poesia e menos teses acadêmicas. Vamos então falar sobre a natureza das coisas.

O sentimento é a força propulsora dos enunciados em matéria de ciências humanas; o discurso jurídico é apenas a forma de dar razão ao sentimento. Duncan Kennedy e a escola crítica do direito nos Estados Unidos denunciaram isso já na década de 70. Logo, precisamos antes de mais nada investigar a origem do incômodo gerado pelo fato do advogado receber honorários produto de crime? Sim, porque se não houvesse incômodo, não haveria proposta nesse sentido. Só se tivéssemos enlouquecido completamente, pensando em propostas que punem as pessoas por algo que não nos incomoda.

Existem diferentes sentimentos a esse respeito caminhando soltos por aí. Há os que não admitem ver delinquentes sendo patrocinados por advogados de alto nível (é o sentimento de indignação com o direito de defesa do criminoso e o sentimento de que existem réus indignos de defesa); há os que não suportam ver um profissional como o advogado sendo bem remunerado por defender um suposto criminoso (sentimento associado ao ódio histórico à profissão do advogado); há o sentimento de pessoas bem intencionadas, no sentido de que, numa situação como essa, é melhor ceder a mão para não perder o braço (o sentimento que está por trás disso talvez seja o medo).

O outro sentimento, este até um pouco mais vil, é o de deixar desamparado o advogado que ainda opera nos chamados street crimes, em regra, mais humilde, e que ganha a vida defendendo dois tipos principais de acusados: os acusados de pequenos roubos ou furtos, e tráficos. Os clientes desses advogados dificilmente conseguem provar origem lícita para pagar pelo serviço prestado, diferentemente do cliente-empresário ou de uma deliquencia mais estruturada, que já terá lavado o dinheiro quando do pagamento dos honorários, não gerando maiores inconvenientes ao profissional. E o que farão aqueles advogados mais humildes? Trabalharão de graça, ou deverão mudar de profissão, ou pior, cair na marginalidade para não largar o ofício? E quem então defenderá esses acusados?

Mas passemos agora às razões que podem estar sendo usadas para justificar o sentimento.

Comecemos com uma indagação: se o mesmo cliente do advogado, que o remunera com dinheiro ilícito, paga a escola de seus seis filhos, uma das mais caras do país, alguém irá se insurgir ao final de um ano, ou de cinco anos, em razão do caminhão de dinheiro despejado — produto de crime — nos cofres do colégio? O mesmo se diga do hotel, em cuja suíte presidencial esse mesmo criminoso resolve estabelecer residência, ou o restaurante onde ele decide fazer todas as refeições, sempre sorvendo bons e caros vinhos, e onde, ao cabo de um ano, também terá deixado uma fábula de dinheiro proveniente do ilícito.

Suponhamos que tanto a tesouraria da escola, quanto o gerente do hotel e o dono do restaurante saibam ou nutram fortes suspeitas quanto à origem espúria dos valores, dada a notória atividade ilícita exercida pelo freguês. Alguém cogitaria processar um desses três profissionais por lavagem de dinheiro? Ora, se a resposta for sim, por que então existe tanta tese jurídica, tanto artigo de jornal, tanta palestra sobre os honorários do advogado, mas não de outros profissionais? Parece que aqui, sem querer, encontramos o sentimento, um antigo sentimento, que sintetiza todos os outros: o preconceito.

Pois é, atividades econômicas cotidianas, como a escola, o hotel, o médico, o restaurante, a agência de turismo, o arquiteto, o empreiteiro de obras civis, e serviços de um modo geral não estão na mira dessas pessoas como parecem estar os advogados.

Um argumento que poderá ser usado para distinguir a profissão do advogado e justificar a discriminação seria o fato de que, diferentemente do hotel, do restaurante e da escola, o advogado distingue os honorários de acordo com a situação financeira do cliente. Logo, a suíte presidencial do hotel terá o mesmo preço para quem aparecer para alugá-la, a mensalidade da escola também, e o vinho servido no restaurante também, mas os honorários não. Vejam então que o injusto da conduta do advogado que recebe honorários de origem ilícita não é propriamente a origem dos recursos, ou a maior ou menor ciência que ele tem disso, mas sim o incômodo gerado com a forma como o advogado eleva o valor dos honorários de acordo com o patrimônio do cliente.

Mas, ora, se isso for mesmo verdade —o que nem sempre o é — veja-se que a razão então para criminalizar os honorários do advogado é a cobiça, o ânimo de lucro. Imoral? Talvez. Crime? Jamais. Numa sociedade capitalista, na qual é garantido o livre exercício das profissões, e onde cada um é livre para colocar preço no próprio trabalho da forma como melhor lhe aprouver, seria razoável criminalizar o desejo de lucro? A diferença dele, advogado, para o dono do restaurante é que, na atividade econômica deste último, a oscilação de preço de acordo com o cliente é prática não usual. Então, pergunta-se, seria justo, por conta apenas da forma como se dá a fixação de preços da atividade, uns poderem receber valores provenientes de crime, desde que por serviço licitamente prestado, e outros não?

Vai-se percebendo que há, no fundo, motivos velados para quererem proibir apenas os advogados de receberem, pelo serviço, o preço que consideram justo — e repita-se, no sistema capitalista onde vivemos, a justiça do preço obedece a uma única regra: a da livre concorrência. Leva quem presta o melhor serviço pelo melhor preço.

Poderão argumentar ainda os inimigos da advocacia — perdoem-me, mas a essa altura já não consigo enxergá-los de outra forma — que o problema é de outra ordem. O problema seria que, ao receber os honorários do traficante, por exemplo, o advogado está recebendo um montante de dinheiro cuja existência até então o Estado não conhecia, e se conhecesse previamente, o confiscaria. Logo, o recebimento dos honorários pelo advogado subtrai do Estado a possibilidade de confiscar o bem. Pode até ser, mas o argumento anterior continua válido, ou seja, por que não também para o hotel, para o restaurante e para a escola…?

Talvez, porém, pela proximidade que o advogado mantém com a Justiça e com o processo criminal a que o cliente dele responde — e vejam que estou a analisar apenas a situação do advogado criminal — ele logo entra na mira das autoridades, porque a primeira pergunta que se costuma fazer é: como será que o cliente está pagando os honorários do advogado? Talvez por causa dessa proximidade, os “advofóbicos” lembram-se dos honorários do advogado e não de outros profissionais, o que não deixa de configurar tratamento discriminatório decorrente apenas da natureza do ofício e não da maior ou menor reprovabilidade da conduta.

Vamos ainda mais além. Não chega a ser desejável que valores provenientes do ilícito sejam descobertos pelo Estado depois de já terem sido transferidos para a conta bancária do advogado ou de outro profissional qualquer. Todavia, tirando a hipótese do pagamento ser apenas uma simulação para colocar os valores em lugar seguro, fora isso o pagamento de honorários polpudos não chegam a ser uma forma de favorecer o criminoso ou garantir-lhe o proveito do crime. Pelo contrário, olhando sob essa perspectiva, pior seria cobrar pouco ou quase nada, porque aí, sim, estar-se-ia garantindo vultosos valores em poder do criminoso, além de incentivá-lo a novas práticas (se o melhor advogado pode ser contratado por alguns poucos vinténs, então quem sabe o crime não compensa, perguntar-se-á o delinquente).

É sintomática a diferença, neste ponto, entre a prestação de serviços e o comércio, sobretudo, o de bens de luxo, porque, se neste, o criminoso pode encontrar uma forma de materializar o dinheiro em bens duráveis e mais seguros do que a moeda, o serviço, em regra, não reflete investimento destinado a aumentar ou preservar o patrimônio; no caso da prestação de serviços, a contrapartida, em regra, não visa o incremento patrimonial, mas pelo contrário, é normalmente vista como gasto sem retorno financeiro.

Chegamos então em outro patamar da discussão. O que incomoda é ver o delinquente se desfazendo de valores que obteve com a prática do crime, ou será que é ver um profissional cujo ofício é visto com pouca ou nenhuma simpatia — quando não com imenso ódio — sendo bem remunerado?

Sim, porque do ponto de vista da natureza das coisas, o direito do Estado de confiscar bens provenientes de crime não vale mais do que o direito do advogado, ou de qualquer outro profissional, de receber, pelo serviço lícito prestado, o preço que lhe parece justo.

Aliás, precisamos parar com essa ideia de dinheiro sujo e dinheiro limpo. Dinheiro ilícito, a rigor, é moeda falsa; o resto é dinheiro feito na casa da moeda e, portanto, lícito. Dinheiro é um só, e provavelmente todo mundo já usou dinheiro que passou pelas mãos de criminosos e nem sabe disso. Já se falou em pureza da raça, em pureza do espírito, fala-se muito hoje em pureza do corpo, e agora virou moda falar em pureza do dinheiro. É a releitura da proibição católica de exercício de atividades monetárias. Ora, o que importa não é o dinheiro ser limpo ou sujo, mas a ação, a atividade, a conduta do homem, e no caso dos honorários, estamos falando de um serviço, dos mais antigos da história, lícito, legítimo, e cunhado com alto estudo e profunda seriedade.

Afora que o recebimento de honorários devidamente declarados ao Fisco é conduta inversa à de ocultar ou dissimular a origem, verbos contidos na norma penal incriminadora do tipo de lavagem, embora não pretendamos aprofundar a questão pelo prisma dogmático, porque, como já dito, seria diminuir a importância da questão.

Sem vênias às opiniões contrárias, a verdade é uma só: ninguém no nosso país pode ser punido ou processado por receber valores, se os aufere como contrapartida à execução de um serviço lícito. Essa conclusão nos leva, por sinal, a outra constatação, a de que numa sociedade como a nossa, calcada na busca do sucesso profissional e na melhora de vida pelo trabalho, é uma quimera achar que as pessoas recusarão trabalho e, por conseguinte, honorários, por conta da origem suspeita de onde provêm.

Num país fundado na busca pelo lugar ao sol da sociedade capitalista de consumo que construímos, ao proibir o recebimento de honorários, a única coisa que conseguiremos fazer é empurrar uma gama ainda maior de pessoas — inclusive advogados — para a marginalidade, até o dia em que não será mais possível separar o honesto do desonesto, o bandido do mocinho, o lícito do ilícito, e o país terá se transformado numa grande e indistinguível máfia.

Será que esse é o futuro que pretendemos para os nossos filhos, ou não será melhor deixar as pessoas trabalharem em paz, recebendo seus honorários sem medo de declará-los às autoridades, e pagando os impostos sobre eles incidentes?

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