Lei de lavagem

Lavagem de capitais, exercício da advocacia e risco

Autor

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

27 de setembro de 2012, 11h34

A reforma da Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) pela Lei 12.683/12 reacendeu as discussões sobre as conexões entre o exercício da advocacia e a lavagem de capitais. Essas conexões se dão (devida ou indevidamente) em três diversas “frentes”: o recebimento de honorários maculados, os advogados como sujeitos obrigados pelos mecanismos de prevenção à lavagem e a participação (no sentido do concurso de pessoas) do advogado na lavagem de capitais praticada por outrem.

A primeira “frente” foi abordada com maestria por estudiosos e profissionais do escol de Rodrigo Sánchez Rios[1] e Rodrigo de Grandis[2], dentre outros. O problema não é novo. Nasceu com a própria lei, já em 1998, e não será objeto dessas reflexões. Só entendo necessário pontuar que, no limite, trata-se de uma questão ampla e gravíssima que diz com a garantia de defesa na Justiça Criminal, questão essa que só pode ser decidida pelo órgão legislativo democraticamente eleito, e que nem mesmo nos países com sistemas jurídicos similares ao nosso, nos quais ela foi posta aos tribunais, decidiu-se por simplesmente abolir (ou mesmo limitar) a defesa criminal privada, passando-a à defensoria pública.

O tema que tem preocupado, neste momento, os advogados e seu órgão regulador, a Ordem dos Advogados do Brasil, é precisamente o segundo (e também deveria ser o terceiro, como procurarei demonstrar): pode o advogado ser obrigado a cumprir os deveres de prevenção à lavagem de capitais?

Mais precisamente: pode o advogado ser obrigado a identificar seus clientes, manter cadastro atualizado, registrar determinadas operações, adotar procedimentos e controles internos que permitam atender a essas obrigações, cadastrar-se no órgão regulador (COAF) e atender suas requisições e, por fim, comunicar operações automáticas e suspeitas de seus clientes (artigo 10o, Lei 9.613/98)?

A resposta da Ordem dos Advogados do Brasil é negativa. O Conselho Federal do órgão adotou, em agosto passado, parecer elaborado por renomados juristas segundo o qual “os advogados e as sociedades de advocacia não devem fazer cadastro no COAF nem têm o dever de divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram entregues no exercício profissional”, posto que tais obrigações conflitam com normas constitucionais e infraconstitucionais que protegem o sigilo profissional.

Também a Confederação Nacional dos Profissionais Liberais (CNPL) ajuizou ADI (ADI 4841) no STF arguindo a inconstitucionalidade do novo dispositivo (artigo 9o, parágrafo único, inciso XIV, Lei 9.613/98), sob relatoria do decano do STF, ministro Celso de Mello.

A teor do que dispõe o artigo 14, parágrafo 1o, da Lei 9.613/98, parece-me que a competência para regulamentar tais obrigações para os advogados seria exclusivamente da OAB, daí que sua omissão não possa ser suprida e nem mesmo sancionada por nenhum outro órgão.

Parece-me, igualmente, que a decisão de tal órgão de recusar a aplicabilidade das novas normas aos advogados, sem emitir qualquer regulamentação sobre o tema, leva a uma falsa sensação de segurança, que pode implicar em incertezas e abandono dos advogados à própria sorte[3]. E é aqui que a segunda “frente” acima identificada se conecta à terceira. Afinal, os advogados que prestam assessoria jurídica nas operações elencadas no inciso XIV podem acabar tendo prestado assessoria para a ocultação ou dissimulação da origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores oriundos de infração penal, especialmente agora que os crimes tributários também são antecedentes da lavagem. Tal assessoria poderá ser vista – e já tem sido, a bem da verdade – como forma de participação (artigo 29 do CP) no crime de lavagem de autoria de outra pessoa, que pode ou não ser o cliente.

Embora o advogado esteja desempenhando um papel social lícito, sua ação pode ser entendida como causal para a prática do crime (de lavagem) por outrem. Entramos, assim, no tema das ações neutras, abordado com a habitual maestria por Luís Greco[4], a cuja obra remeto o leitor. Por ora, basta dizer que as ações neutras são aquelas ações cotidianas, em si lícitas, mas que podem desaguar na participação no crime de outrem. Uma das formas de afastar a imputação objetiva da lavagem ao advogado nesses casos é estabelecer o mais claramente possível o âmbito do risco permitido[5]: até onde pode ir licitamente o advogado na prestação de assessoria nessas operações.

E é aqui que uma regulamentação da OAB seriam muito bem-vinda, ainda que na forma de um “guia de boas práticas” — como feito pela American Bar Association nos Estados Unidos da América, por exemplo —, para ao menos criar uma barreira normativa à indevida extensão da imputação objetiva aos advogados sem a necessidade de se chegar ao nível de análise da imputação subjetiva, ou seja, da existência ou não do dolo. E a diferença entre esses dois momentos de aferição da imputação é bastante significativa: uma barreira à imputação objetiva do tipo pode, a depender de sua força, evitar a necessidade de instrução processual penal; a necessidade de aferição da imputação subjetiva, ao contrário, geralmente demanda instrução. Ao fim e ao cabo, pois, trata-se de obstar a ação penal, cujos malefícios à carreira profissional do advogado sequer precisam ser explicitados.

Apesar do acerto das manifestações acerca da incompatibilidade entre o sigilo profissional e algumas das obrigações da prevenção à lavagem, parece-me que a questão não está e não deve estar encerrada[6], demandando debate sereno e aprofundado, para que se dê efetiva segurança normativa aos advogados no desempenho lícito de suas atividades profissionais.


[1] SANCHEZ RIOS, Rodrigo. Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e de política-criminal. São Paulo: Saraiva, 2010 (Direito penal econômico – Gvlaw).

[2] GRANDIS, Rodrigo de. O exercício da advocacia e o crime de “lavagem” de dinheiro. Em: Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal / Coordenador Carla Veríssimo Di Carli e Andrey Borges de Mendonça [et al]. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011, p. 115-146.

[3] Não estou sozinha nesse entendimento, cf. “Juristas pedem que a Ordem regule a nova Lei de Lavagem” (disponível em: http://www.abbc.org.br/noticiasview.asp?idNoticia=1993).

[4] GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

[5] Na Espanha, por exemplo, a lista de operações que o advogado deve comunicar porque suspeitas já foi usada, justamente, para afastar a tipicidade da participação de advogado em lavagem cometida por cliente (cf. SÁNCHEZ-VERA GÓMEZ-TRELLES, Javier. Blanqueo de capitales y abogacía: un necesario análisis crítico desde la teoria de la imputación objetiva. INDRET, Barcelona, enero 2008).

[6] Nesse sentido, impende registrar a iniciativa da DIREITO GV na promoção de uma Mesa de Debates sobre o tema, a ser realizada no dia 23 de novembro de 2012, e também no incentivo a uma pesquisa conjunta dos alunos da GVlaw sobre a regulamentação da matéria em seis sistemas jurídicos estrangeiros, merecendo especial destaque a experiência canadense.

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