Expectativas frustradas

Comissão do Senado perdeu a chance de aprimorar o CP

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20 de setembro de 2012, 8h00

A proposta de reformular a legislação penal conduzida pelo Senado Federal foi muito benvinda, em face do imperativo de se adequar os tipos penais existentes aos bens jurídicos que ganharam importância para a sociedade nas últimas décadas, sem se falar da necessidade de corrigir as distorções nos patamares das penas de inúmeros crimes.

Todavia, o Projeto de Lei do Senado 236 de 2012, elaborado por uma Comissão de operadores do Direito, mostrou-se aquém das expectativas, repleto de equívocos, que conseguiu aliar advogados criminalistas, membros do Ministério Público, magistrados e professores contra o conteúdo da proposta final. Por outro lado, os poucos avanços constatados no seu texto não demandariam uma reforma completa do Código Penal para serem implementados.

O PLS 236/12 apresenta diversos aspectos negativos, que pretendo expor, mas não exaustivamente por serem inúmeros.

O primeiro deles, admitido pela própria Comissão que o elaborou, é seu caráter fortemente descriminalizador. A revogação de diversas leis e dispositivos do próprio Código Penal deixaram perigosas e desnecessárias brechas na legislação repressiva. De simples contravenções penais como vias de fato e porte ilegal de arma (dispositivo que permitia punir quem portasse na via pública um punhal ou um chaco) a crimes graves como a exploração sexual consentida de adolescentes passaram a ser permissíveis. É bom destacar sobre esta última conduta, que a Constituição Federal, em seu artigo 227, parágrafo 4º, determina que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente” e que o Brasil é signatário de tratados internacionais em que se comprometeu a reprimir tais ações. Na mesma linha, os delitos eleitorais foram severamente reduzidos quantitativamente, deixando-se de punir condutas graves relacionadas com o abuso de poder econômico e político, dentre outros. Poder-se-ia arrolar diversos delitos que foram suprimidos, a meu ver equivocadamente, cuja existência continua importante nos dias atuais.

O segundo aspecto negativo, e certamente o mais importante, já anotado por diversos outros articulistas de renome, é a existência de inúmeras inconsistências jurídicas. Dispositivos com redação equivocada, especialmente da Parte Geral, que podem ter graves consequências no Direito Penal se aprovados, penas desproporcionais entre os crimes e outros sem pena (preconceito racial) ou mesmo sem descrição fática, como o do jogo do bicho, o que, neste último caso, proporcionará a descriminalização da conduta.

A alteração das regras do regime aberto, ou mesmo sua extinção, era uma demanda conhecida dos operadores de direito, em virtude da ineficácia do sistema atual provocada pela quase inexistência de Casas do Albergado construídas pelo Estado. Todavia, o sistema proposto é, no mínimo, curioso. O regime aberto consiste no cumprimento de uma pena de prestação de serviços à comunidade, cumulada com outra pena restritiva de direitos e o recolhimento domiciliar (art. 52). E se desrespeitar as regras do regime aberto, o condenado terá que cumprir a pena prisional em regime semiaberto (art. 52, §4º). Além disso, o regime aberto não se confunde com a pena substitutiva de restrição de direitos, tanto que esta, se descumprida, pode ser convertida em prisão no regime fechado ou semiaberto (art. 61, §3º).

Mas não é só. O projeto de lei emprega termos diversos ao tratar da idade da vítima. Nos crimes contra a dignidade sexual, o estupro de vulnerável (art.186) caracteriza-se quando a vítima tem “até doze anos”. Este termo, a propósito, é dúbio porque essa idade se estende do dia do aniversário da pessoa até um dia antes de completar treze anos de idade. De forma mais correta, o artigo 503 utiliza a mesma expressão do Estatuto da Criança e do Adolescente, definindo criança “a pessoa até doze anos ide idade incompletos”. No crime de favorecimento da prostituição ou da exploração sexual de vulnerável (art. 189) refere-se ao “menor de doze anos”. Como se vê, aliás, o projeto de lei emprega termos distintos para determinar a idade do vulnerável dentro do mesmo Título dos Crimes contra a Dignidade Sexual.

Por fim, o terceiro aspecto negativo da proposta apresentada é sua tendência despenalizadora exacerbada. Um sistema de aplicação de penas que dificulta a sua majoração pelo magistrado, uma diminuição das penas de crimes graves como o roubo e a criação de uma figura deste mais branda. Além disso, muitos dispositivos propostos refletem apenas teses de defesa dos acusados rejeitadas pelos Tribunais Superiores. O parágrafo único do artigo 24 fixa o momento consumativo dos crimes patrimoniais de uma forma dúbia (Nos crimes contra o patrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação do delito), aliás, com a pretensão de desdizer a jurisprudência de décadas do Supremo Tribunal Federal e também acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário.

No artigo 157, parágrafo 1º, II, o PLS equipara ao roubo a exigência feita à vítima de revelar senha, código ou segredo, necessários à subtração, conduta que é atualmente é punida como extorsão. Se acolhida essa proposta, o delito virtualmente não será mais punido, prevalecendo  outra tese defensiva vencida, a de que se trata de crime único, quando o agente, no mesmo contexto, subtrai os bens da vítima e obtém a senha bancária, com o intuito de sacar o dinheiro do caixa eletrônico. O chamado “sequestro relâmpago”, portanto, teria um tratamento mais brando pela nossa legislação, contrariando um sentimento de praticamente toda a sociedade de puni-lo mais gravemente, em virtude de sua evidente gravidade.

Frise-se que qualquer tese defensiva evidentemente é legítima, mas a profusão desse tipo de norma na reformulação da legislação penal descaracteriza seu propósito de atualização do Código Penal, adequando-o às expectativas da sociedade, que se manifestam no Senado Federal.

Destaquei apenas algumas críticas, facilmente identificáveis, que levam à conclusão de que essa proposta de reforma do Código Penal, por mais que seja modificada, dificilmente terá uma feliz aplicação. O que inicialmente era uma proposta benvinda tornou-se um objeto de grande preocupação para os operadores do Direito e, especialmente, para a sociedade. A melhor solução é o arquivamento do projeto de lei.

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    é procurador de Justiça Criminal do Estado de São Paulo, coordenador da Comissão de Estudos de Assuntos Legislativos da Associação Paulista do Ministério Público.

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