Com interesses

Projeto de Lei da AGU é passo final para politização

Autor

18 de setembro de 2012, 17h46

Desde que assumiu o cargo, o advogado-Geral da União se intitula, pública e equivocadamente, como intransigente defensor da chamada Advocacia de Governo, decorrente, a seu ver, da posição de ministro de Estado. Dentro dessa concepção política da instituição, nunca se opôs à ocupação de cargos na AGU por pessoas não concursadas e impôs um modelo de funcionamento da instituição subserviente ao governo federal. 

Assim sendo, o Projeto da Nova Lei Orgânica da AGU parte da concepção de que a Advocacia-Geral da União é um órgão político e, como tal, o advogado-Geral da União é ministro de Estado (artigo 3º). Ignora-se que a Constituição Federal, em seu artigo 131, aponta que a AGU tem por chefe o advogado-Geral da União, e que a instituição é ali tratada em capítulo diverso daquele em que versa sobre o Poder Executivo, estabelecendo como único laço a unir a AGU àquele Poder o exercício das “atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”. 

Não por outra razão, o constituinte originário deixou de regular a Advocacia Pública no Título III (da Organização do Estado), onde trata especificamente do Poder Executivo. Conferiu-lhe local próprio, fora do espectro de subordinação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não para que formasse um “quarto poder” ou “quarta função de Estado”, mas para que pudesse atender, com independência, aos Três Poderes, já que a representação judicial da União compreende a defesa dos órgãos federais do Legislativo, Executivo e Judiciário, e é função essencial à Justiça.

Assim o fez, também, por pretender que a AGU atuasse, com essa mesma independência, nas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo.

Contudo, a partir da ideia de órgão de governo, o projeto redefine, em igual desrespeito ao artigo 131 da Constituição, a estrutura da AGU. Espraia em todo o seu conteúdo a imposição de diversas subordinações e vinculações administrativas e funcionais de membros concursados da AGU a ministros ou dirigentes máximos dos órgãos ou entidades assessoradas que integram o governo federal.

Abre, ainda, as portas da AGU para a prática usual nos ministérios, consistente na ocupação de postos chaves por pessoas não aprovadas previamente em concurso público, o que ofende a basilar regra de acesso à Administração Pública prevista no artigo 37, inciso II, da Constituição.  

Nessa linha, o “Projeto Adams” considera “membros da Advocacia-Geral da União, além de integrantes das suas carreiras jurídicas, os detentores, no âmbito dos órgãos que integram o Sistema da Advocacia Pública da União, de cargos de natureza especial e em comissão de conteúdo eminentemente jurídico”. E oportuniza expressamente que cargos vitais de chefia na instituição, como procurador-Geral da União, da Fazenda Nacional, Federal e do Banco Central, de consultor-Geral da União, procurador chefe das autarquias e fundações federais e consultores jurídicos dos ministérios sejam ocupados por bacharéis em Direito não concursados.

Não obstante, o projeto submete os advogados públicos Federais concursados ao talante do governante de plantão. Porque fortalece a subordinação administrativa e funcional de todos os procuradores da Fazenda Nacional ao ministro da Fazenda, de todos os procuradores do Banco Central ao presidente do Banco Central, de todos os advogados da União aos ministros de Estado e de todos os procuradores federais aos dirigentes máximos das autarquias e fundações federais.

O faz ao permitir que os integrantes da cúspide do Poder Executivo indiquem os titulares dos postos chaves na AGU, sendo que, ao mesmo tempo, o “Projeto Adams” dita expressamente que é dever do membro da AGU, este sim concursado, observar a “hierarquia administrativa e técnica” e "erro grosseiro" não seguir a “hierarquia técnica e administrativa”.   

O malfadado novo modelo da AGU ainda traz novas subordinações administrativas e funcionais de advogados Públicos Federais concursados a pessoas não concursadas que podem exercer livremente a Chefia das atividades jurídicas da Presidência da República, da Casa Civil e do Ministério da Justiça, tudo em clara ofensa ao artigo 131 da CF. 

Além disso, é de ruborizar até mesmo a face cunhada em um dos versos da moeda de um real, a previsão no projeto de quais cargos em comissão são privativos dos membros efetivos da AGU.

Claramente inserida nessa concepção de órgão político, tal matéria é totalmente estranha a um diploma que deveria encerrar prerrogativas compatíveis com a complexidade das atribuições dos advogados públicos federais e impõe aos membros uma subordinação e vinculação ainda maior aos órgãos assessorados (ministérios, autarquias e fundações).

O que também é inconstitucional, como a Unafe aponta no STF, na ADI 4297, ação esta cujo efeito imediato, caso acolhida pelo Supremo, será exatamente a eliminação da possibilidade de ocupação de cargos comissionados por membros concursados da AGU e também pelos não concursados, que hoje já ocupam postos na instituição. 

Por fim, silente o projeto sobre a necessária autonomia técnica da atuação do advogado público federal para o reconhecimento do direito do cidadão levado ao Judiciário, o que contribui sobremaneira para a demora da prestação jurisdicional, na medida em que, sem segurança jurídica, os membros deixam de reconhecer os direitos dos cidadãos, o que afronta o Estado Democrático de Direito.

Ao contrário, o projeto mantém as regras de não interposição e desistência de recursos, reconhecimento de pedidos e abreviamento de demandas atreladas a um engessado e burocrático sistema de edição de súmulas pelo advogado-Geral da União, que não acompanha a dinâmica processual vigente, a jurisprudência dos tribunais e as necessidades da sociedade. E ignora a revolucionária iniciativa das câmaras de conciliação e arbitragem da AGU, em vez de consolidá-las ou ampliá-las para resolução de conflitos da Administração Federal com os particulares. 

Os advogados da União, procuradores federais, da Fazenda Nacional e do Banco Central devem assessorar juridicamente os ministros e os gestores públicos nos ministérios, fundações, autarquias e órgãos federais de todo o País. Devem impedir a má gestão do dinheiro público, dizendo o que estes podem e o que não podem fazer, combatendo, assim, desde o erro ocasional até a fraude e a corrupção. E assim promovem a implantação de políticas públicas de forma hígida. 

São também os advogados públicos federais responsáveis pela representação em juízo da União, que engloba a defesa judicial dos interesses de todos os órgãos federais e entidades públicas que formam os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. 

No exercício de ambas as funções constitucionais, como ensina o jurista Dalmo de Abreu Dallari: “O Procurador Público é quem torna certo que o Poder Público não é imune ao Direito. Compete-lhe defender os interesses sociais, particularizados numa entidade pública, sem excessos ou transigências, sempre segundo o Direito. Consciente de que o poder político e a atividade administrativa são expressões da disciplina jurídica das atividades de direção e administração da sociedade, o Procurador, orientando ou promovendo a defesa de interesses, jamais deverá omitir o fundamento jurídico de seu desempenho. E sua consciência jurídica não há de permitir que, pela vontade de agradar ou pelo temor de desagradar, invoque o Direito segundo critérios de conveniência, para acobertar ações ou omissões injustas”.

Assim, se ao advogado público federal cabe elucidar o Executivo sobre limites jurídicos que não podem ser transpostos e mostrar-lhe as alternativas jurídicas viáveis, além de defender os Três Poderes da União em juízo sem se descurar do dever de preservar os interesses sociais e do cidadão, é da mais solar evidência que o exercício diário de tal responsabilidade, capaz, por força da Constituição Federal, a orientar juridicamente ou até mesmo, se necessário, a limitar juridicamente uma conduta contraposta, não pode ser exarada de forma livre e espontânea pelo subordinado ao seu subordinante, com a independência e a força que deveria ter para fiel cumprimento de tal missão, diante desse modelo de vinculação da AGU ao Poder Executivo.

Esse distanciamento do Executivo, vontade do Poder Constituinte Originário, cai por terra com essa concepção de que a AGU é um órgão político, subordinado em suas atividades a diversos dirigentes do Poder Executivo e que podem livremente nomear, para os postos mais cruciais da AGU, pessoas não concursadas, que estão comprometidas, em regra, a agradar apenas àquele que os nomearam para ocupação do cargo comissionado. E a abertura da instituição para não concursados, sem sombra de dúvida, afronta o interesse público ao possibilitar que funções técnicas, da mais alta importância estratégica para o funcionamento do Estado, sejam exercidas, por exemplo, por apadrinhados políticos ou representantes de interesses eminentemente privados. 

O risco de politização da AGU por meio do “Projeto Adams”, além de imoral, é, sobretudo, inconstitucional. Contraria a Orientação Normativa 28, editada pelo então advogado-Geral da União José Antonio Dias Toffoli, que determinava a exoneração de todos os não concursados da instituição, e pacificado entendimento do Supremo Tribunal Federal de que são incompatíveis com a caracterização da Advocacia do Estado e, portanto, inconstitucionais, as formas de investidura marcadas pela precariedade, como o comissionamento, a contratação e qualquer outro modo de admissão de advogados para o exercício das atribuições das Procuradorias, que os deixe, desse modo, sujeito ao talante de quem os nomeou, admitiu ou contratou, valendo citar os precedentes da ADI 159, ADI 881, ADI 1.679, ADI 2.581 e ADI 2.682. 

Digno de destaque trecho do voto do ministro Néri da Silveira na ADI 881:“Não quis a Constituição que o exame da legalidade dos atos da Administração Estadual se fizesse por servidores não efetivos. Daí o sentido de conferir aos Procuradores dos Estados – que devem compor em carreira e ser todos concursados – não só a defesa judicial, a representação judicial do Estado, mas também a consultoria, a assistência jurídica. De tal maneira, um Procurador pode afirmar que um ato de Secretário, do Governador, não está correspondendo à Lei, sem nenhum temor de poder vir a ser exonerado, como admissível suceder se ocupasse um cargo em comissão.”

O “Projeto Adams”, portanto, frauda a finalidade que o texto constitucional assinalou à Advocacia-Geral da União, pois serão retiradas de seus membros as condições básicas, elementares, para o fiel cumprimento da missão da instituição. Além de consagrar o desprestígio dos seus membros e o esvaziamento das suas atribuições em contrapartida a uma crescente concentração de poderes e de decisões nos cargos de direção da AGU, cujos ocupantes, sem prévio concurso público, serão nomeados e exonerados ao bel prazer dos interesses dos ocupantes de dirigentes de autarquias e ministérios e demais órgãos federais a serem assessorados e representados juridicamente.

De difícil compreensão, destarte, a quem servem os ideais do atual advogado-Geral da União, já que a quadra histórica é amplamente favorável à consolidação de uma advocacia pública profissional, independente e voltada à defesa dos grandes interesses da nação. 

Todavia, é certo que esvai, pelos dedos do advogado-Geral da União, a oportunidade para entrar para história da AGU como o responsável pela sua modernização, valorização e engrandecimento, e assim receber o merecido reconhecimento dos advogados públicos Federais e dos brasileiros. Ao contrário, sua gestão será submetida ao julgamento da história. Julgamento a que é submetido todo homem público, com o pesado fardo de um Projeto de Lei Complementar que está prestes a protrair seus efeitos deletérios no tempo e que colocará em xeque o interesse público e o próprio futuro da AGU, caso venha a ser acolhido sem as devidas correções constitucionais pelo Poder Legislativo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!