Independência entre esferas

Pretensão prescrita não exclui penalidade disciplinar

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18 de setembro de 2012, 14h24

Dentre os delitos profissionais[1] descritos nos incisos do artigo 34° do Estatuto da Advocacia e da OAB para os quais se comina a pena de suspensão, há duas hipóteses em que a pena somente poderá ser levantada quando houver satisfação integral da dívida, inclusive com a correção monetária.

Trata-se do delito de locupletamento, que se caracteriza quando o Advogado se locupleta, à custa do cliente ou da parte adversa, por si ou interposta pessoa, e da prevista no inciso XXIII que considera infração disciplinar o não pagamento das contribuições, multas e preços de serviços devidos à OAB, depois que o Advogado é regularmente notificado a fazê-lo.

Ante esse contexto, surge a seguinte pergunta: a prescrição da pretensão de cobrança das anuidades na esfera cível implica o levantamento da penalidade disciplinar?

Em outros termos, a OAB poderia impedir que um Advogado inadimplente exercesse o seu direito fundamental ao trabalho com base na não satisfação de uma dívida cuja pretensão de cobrança está prescrita?

E o que dizer do Advogado que se locupletou à custa do cliente?

Há vozes no sentido de que ocorrendo a prescrição “a OAB em hipótese alguma pode obstar o advogado “devedor” de anuidades, se fulminadas pelo lapso prescricional, o livre exercício da sua profissão, sob pena de ofensa constitucional do livre trabalho.”[2]

Contudo, poder-se-ia afirmar que essa conclusão decorre de um raciocínio com diversos problemas conceituais.

Dentre esses problemas, o primeiro se refere a não distinção entre o direito material e a pretensão a ter satisfeito o direito. De fato, violado o direito, surge para o credor a pretensão (anspruch) de exigir que o devedor lhe entregue o objeto da prestação[3], quitando a dívida.

Caso o devedor não satisfaça de forma espontânea a pretensão do credor, surge um período de tempo para que o credor possa atuar no plano jurídico de modo a compelir o devedor a lhe entregar o objeto da prestação.

Nesse sentido, considerando a inércia do credor, o que a prescrição extingue é a pretensão e não o direito. Não extingue, portanto, a legalidade da obrigação, pois decorrente de ato jurídico perfeito, e, por consequência, não extingue o próprio direito.

Daí que o artigo 882 do Código Civil seja claro ao estabelecer que “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”.

O segundo problema conceitual se refere à desconsideração de que a OAB tem como uma de suas principais finalidades institucionais a preservação da ética profissional. Nos termos do artigo 1° do Código de Ética: o exercício da advocacia exige conduta compatível, inclusive, com princípios da moral individual, social e profissional.

Desta feita, em que pese exista uma teoria minoritária que defende que a prescrição extingue o próprio direito material, nenhum doutrinador defende que a prescrição tem o poder de extinguir o dever ético[4] de saldar a dívida.

Enfim, o terceiro problema conceitual do raciocínio que pretende transformar a prescrição da pretensão de cobrança numa causa de extinção da punibilidade no processo administrativo disciplinar é que não distingue a prescrição na esfera cível da prescrição no processo administrativo disciplinar.

Esse é um erro muito grave, pois no processo administrativo disciplinar o interesse protegido pertence à OAB e não ao Representante[5]. Sendo assim, no caso da infração de locupletamento, por exemplo, o fato do cliente sequer ajuizar uma ação de cobrança, contra o advogado que tenha indevidamente se apropriado de valores, não impede que a OAB instaure de ofício uma representação por infringência aos incisos XX e XXI do artigo 34° do Estatuto.

Sendo assim, muito embora no caso da cobrança de anuidades[6] a OAB seja o titular do direito tanto na esfera cível quanto na administrativa, é preciso atentar para o fato de que a concepção da prescrição da pretensão de cobrança, como causa extintiva da punibilidade, impediria que a OAB pudesse punir por locupletamento um Advogado, pelo simples fato de que seu cliente não ajuizou uma ação na esfera cível.

Essa circunstância retiraria a independência e autonomia da OAB, na medida em que submeteria uma de suas principais finalidades institucionais ao alvedrio de um particular. Isso seria muito grave, pois muitas das vítimas de locupletamento são idosos doentes e com baixo nível de instrução, os quais se apresentam vulneráveis à atuação de um número extremamente reduzido de maus profissionais, que envergonham a esmagadora maioria dos Advogados.

Essas vítimas, em que pese muitas vezes não possuam condições de ingressar com uma ação na esfera cível, não deixariam, por certo, de divulgar o ilícito para a coletividade, sem que a OAB pudesse zelar pelo bom nome dos profissionais éticos, punindo o infrator, com respeito, por óbvio, ao sagrado devido processo legal.

Contudo, mesmo no caso da cobrança de anuidades, a independência entre as esferas cível e administrativa impede que se confunda a prescrição do processo administrativo disciplinar[7] com a prescrição no processo civil.

Ante o exposto, verifica-se que a tese que pretende conferir à prescrição, regulamentada pelo Direito Civil, o status de causa extintiva da punibilidade no processo administrativo disciplinar da OAB, não se apresenta coerente com os fundamentos lógicos e sistemáticos do instituto da prescrição, nem tão pouco com os aspectos metodológicos que diferenciam o processo ético e disciplinar da OAB do processo civil.

Um importante posicionamento divergente
Em que pese os argumentos expostos, há decisão do Conselho Federal no sentido de que uma vez prescrita a dívida na esfera cível, deve ser excluída a prorrogação da sanção até a satisfação da dívida:

RECURSO 49.0000.2012.001565-8/SCA-TTU. Recte.: J.M.C.F. (Adv.: José Moacyr de Carvalho Filho OAB/SP 33878). Recdo.: Conselho Seccional da OAB/Paraná. Relatora: Conselheira Federal Vera de Jesus Pinheiro (AP). Relator "ad hoc": Conselheiro Federal Délio Lins e Silva (DF). EMENTA 068/2012/SCA-TTU. Recurso ao Conselho Federal. Infração disciplinar. Alegação de inconstitucionalidade da suspensão do exercício profissional por inadimplência de anuidade. 1) Não viola o artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional em face de débitos de anuidades perante à OAB, tendo em vista que os artigos 34, inciso XXIII e 37, inciso I, da Lei 8.906/94 não foram objeto de declaração de inconstitucionalidade. 2) Por outro lado, a prescrição para a cobrança das anuidades deve seguir o disposto no artigo 206, parágrafo 5º, inciso I, do Código Civil, que determina o prazo de cinco anos para a cobrança de dívidas fundadas em instrumentos público ou particular. 3) Recurso parcialmente provido somente para excluir a prorrogação da sanção até a satisfação da dívida de anuidade do ano de 2005, mantendo, no mais, a sanção disciplinar imposta. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros da 3ª Turma da 2ª Câmara do CFOAB, por unanimidade, em conhecer do recurso e dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto da Relatora, que integra o presente. Brasília, 17 de abril de 2012. Renato da Costa Figueira, Presidente em exercício. Délio Lins e Silva, Relator "ad hoc". (DOU. 16/05/2012, S. 1, p. 117)

Em que pese essa decisão tenha sido adotada no exame de um caso referente ao não pagamento de anuidades, é inelutável a constatação de que seu fundamento pode ser utilizado para excluir a prorrogação da sanção nos casos de locupletamento.

Ou seja, imaginando-se um caso no qual um advogado tivesse contra si 100 representações por não repassar valores referentes a benefícios previdenciários para aposentados, e esses não tivessem ajuizado a ação no cível, bastaria o reconhecimento da prescrição nessa esfera para impedir a OAB de punir esse mau profissional.


[1] Sirvo-me aqui da distinção elaborada por Carlos Fernando Correa de Castro entre delitos profissionais e infrações éticas: “As infrações éticas latu sensu se dividem em dois tipos distintos, considerando a sua origem, natureza e importância do dever protegido. Quando são previstas em lei, como são aquelas todas capituladas nos diversos 29 incisos e parágrafo único do artigo 34 da lei 8.906/94, tornam-se verdadeiros delitos profissionais. CASTRO, Carlos Fernando Correa de. Ética profissional e o exercício da advocacia. Curitiba, Juruá, 2010, p. 23.

[2] Flávio Olímpio de Azevedo. Seccional da OAB não pode cobrar anuidades prescritas. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jul-06/flavio-olimpio-seccional-oab-nao-cobrar-anuidades-prescritas acesso em 30/03/2012.

[3] A lógica deôntica desse fato relacional é, tal como destacado por Robert Alexy, a lógica do “direito a algo” ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios constitucionales, 1993, p. 186 et.seq. Ou seja, constituído o fato jurídico deve (deve ser interproposicional) surgir o direito do sujeito ativo de exigir do sujeito passivo o objeto da obrigação e da prestação. Importante que se atente, todavia, para o fato de que há uma diferença entre ter um direito a algo e o algo ao qual se tem direito LOPES, Fernando dos Santos. Acerca da distinção entre falsos e autênticos bens jurídicos coletivos para o Direito Penal Econômico. FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010, p. 89. O algo ao qual o sujeito ativo tem direito é tanto o objeto da obrigação quanto o objeto da prestação. O objeto da obrigação é a “conduta prestacional” do sujeito passivo que consiste na realização do dever (dever ser intraproposicional) de, por exemplo, “entregar uma porção de moeda”. Por outro lado, o objeto da prestação se refere nesse caso ao valor pecuniário que deve ser pago ao credor Cf. CARVALHO. Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 367.

[4] Esse dever ético, no que se refere às anuidades, não deixa de ser jurídico, pois respaldado por legislação federal, que é especial em relação ao Código Civil.

[5] CASTRO, Carlos Fernando Correa de. Ética profissional e o exercício da advocacia. Curitiba, Juruá, 2010, p. 111.

[6] Não resta dúvida que a questão das anuidades, de forma aparente, traz o problema do conflito entre o direito fundamental ao trabalho e o dever que a OAB tem de cobrar anuidades com o fim de investir na realização de suas finalidades institucionais. Afirma-se que referido conflito é aparente, pois a OAB não só pode como deve perdoar a dívida daqueles Advogados comprovadamente carentes. Em atenção ao princípio democrático, contudo, os critérios para definir o significado do conceito de carência devem ser estabelecidos pelo Conselho Federal. Atualmente esses critérios estão definidos no provimento n° 111/2006.

[7] Considerando a súmula 01/2011 do Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB, “o termo inicial para a contagem do prazo prescricional, na hipótese de processo disciplinar decorrente de representação, a que se refere o caput do artigo 43 do EAOAB é a data da constatação do fato pela OAB, considerada a data do protocolo da representação ou a data das declarações do interessado tomadas por termo perante órgão da OAB, a partir de quando começa fluir o prazo de 5 anos, o qual será interrompido nas hipóteses dos incisos I e II § 2° do artigo 43 do EAOAB, voltando a correr por inteiro a partir do fato interruptivo”.

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