Tradição abatida

Entrevistas secretas de concurso para juiz são ilegais

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18 de setembro de 2012, 23h37

O Conselho Nacional de Justiça julgou ilegais, nesta terça-feira (18/9), as entrevistas secretas, com perguntas subjetivas e pessoais, feitas por desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo aos candidatos no último concurso para juiz.

A maior parte dos conselheiros considerou que as entrevistas, apesar de serem tradicionais nos concursos da corte, afrontam, no mínimo, o princípio constitucional da impessoalidade.

O presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, resumiu, ao final da sessão, o sentimento da maioria dos conselheiros: “Concursos públicos devem primar pela imparcialidade dos julgadores e pela objetividade dos critérios. Quanto maior a objetividade, maior a imparcialidade. Quanto mais se aproxima da subjetividade, mais se afasta do desejo constitucional da imparcialidade. Essa tal entrevista reservada seguiu o caminho inverso, colocou-se em rota frontal de colisão com a Constituição”.

Candidatos reprovados no 183° concurso de ingresso para a magistratura paulista relataram que, apos a prova oral, quarta etapa do concurso, foram feitas entrevistas com cada um dos candidatos, com perguntas bastante subjetivas, que, por fim, pesaram na avaliação.

Entre as perguntas feitas por desembargadores estavam, por exemplo, as seguintes:

– Mas a senhora está grávida. Não acha que já começaria a carreira como um estorvo para o Poder Judiciário?
– Gente de Brasília não costuma se adaptar a São Paulo. O senhor está convicto de seus propósitos?

– Qual sua religião?
– Sua esposa trabalha? Qual a profissão dela? Tem certeza de que se adaptaria?

Os conselheiros, por maioria de oito votos, decidiram que os 146 candidatos reprovados na prova oral, representados pelo advogado Luís Roberto Barroso, terão o direito de refazer o exame e os 70 candidatos aprovados tomarão posse imediatamente, mas sem que o concurso seja homologado pelo tribunal. Apenas após a classificação que surgirá dos novos exames é que o certame poderá ser homologado. O prazo para que o tribunal conclua as novas provas é de 60 dias.

Prevaleceu o entendimento de que os aprovados, representados pelos advogados Pedro Lenza e Joelson Dias, não tiveram culpa das irregularidades, não contribuíram para que acontecessem e não houve qualquer benefício ou apadrinhamento especial. Ou seja, os aprovados conseguiram sucesso por mérito, apesar dos erros do TJ paulista e não podem ser prejudicados.

Da tribuna, Barroso argumentou que o procedimento adotado no concurso "ultrapassou a fronteira de todos os erros escusáveis". O advogado ressaltou que os próprios desembargadores afirmaram que as entrevistas serviam para verificar, além do conhecimento técnico, se o candidato era "talhado" para o ofício de julgar. Barroso rememorou que essa era a prática adotada pela ditadura militar, para excluir dos concursos as pessoas "inadequadas". À época, esquerdistas, mulheres separadas e homossexuais. "Ninguém está acima da lei. Nem mesmo o poderoso Tribunal de Justiça de São Paulo. Quem acha que está acima da lei se comporta abaixo da crítica".

Pedro Lenza, em nome dos aprovados, defendeu, citando jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que "o Estado não pode brincar com o cidadão". Segundo ele, "feito o concurso, aprovado o candidato, é preciso dar posse". O advogado disse a eventual violação do procedimento administrativo tem de ser provada, em nome da presunção de legitimidade do ato administrativo. "Não há presunção de vívios".

Decidiu-se pelo meio termo. Não houve dúvidas entre a maioria dos conselheiros de que o concurso pecou, sim, com diversas irregularidades. Mas as falhas não beneficiaram os aprovados. Prejudicaram os reprovados. Logo, cabia a reaplicação da prova para os afetados. 

Nova chance
Em um julgamento que durou quase sete horas, mesmo com o apelo feito em vão pelo ministro Ayres Britto para que os conselheiros fossem breves, o CNJ considerou que a quarta etapa do concurso foi eivada de irregularidades. Além da entrevista secreta ilegal, decidiu-se que o TJ paulista desrespeitou todo o procedimento previsto na Resolução 75/2009 do CNJ, no que diz respeito às regras para a prova oral.

Apenas dois conselheiros consideraram que as perguntas não tinham nada de errado. Tourinho Neto e Silvio Rocha defenderam a entrevista. Para Rocha, as entrevistas foram feitas com boa fé e depois da prova oral. Assim, não havia prova de que interferiram na avaliação dos candidatos. Ele ressaltou a “lisura do concurso”.

Já o conselheiro José Lúcio Munhoz, apesar de considerar as entrevistas irregulares e votar também para que os reprovados possam refazer a prova oral, fez questão de “afastar o adjetivo pejorativo de entrevista secreta”. Segundo ele, o Ministério Público faz a mesma entrevista em seus concursos. “Não é algo feito com malícia, de modo a prejudicar, a colher frutos indevidos”, disse.

Sete conselheiros reconheceram, em maior ou menor grau de extensão, ilegalidades no procedimento adotado pelo tribunal e determinaram que os reprovados refaçam as provas: Jefferson Kravchychyn, Emmanoel Campelo, Francisco Falcão, Carlos Alberto Reis, Ney Freitas, José Lúcio Munhoz e Wellington Cabral Saraiva. O conselheiro Silvio Rocha, a despeito de defender a lisura do concurso, votou com a maioria.

Outros três votaram pela anulação total das provas, para aprovados e reprovados: o relator Gilberto Valente, Jorge Helio e o ministro Ayres Britto. O conselheiro Tourinho Neto votou pela regularidade do concurso e Bruno Dantas abriu uma quarta corrente. Para ele, a posse dos 70 candidatos deveria ser suspensa pelo prazo de 90 dias até que o tribunal reaplicasse a prova para os 146 reprovados. Só então, seria feita a classificação, dada a posse e homologado o concurso. Os conselheiros Neves Amorim e Vasi Werner se declararam impedidos ou suspeitos de julgar o caso.

Com os oito votos da maioria, os 146 reprovados depois da entrevista ilegal poderão refazer a prova oral, sob a avaliação de uma nova banca examinadora. Desta vez, sem uma entrevista pessoal, reservada e recheada de perguntas subjetivas. Nos termos propostos pelo conselheiro Wellington Saraiva, a nova prova deverá ser avaliada também por uma nova banca examinadora.

Subjetividade máxima
A entrevista foi bastante criticada, mas os conselheiros apontaram diversas outras irregularidades no concurso. O ministro Ayres Britto disse que ficou “muito mal impressionado com o número de vícios graves e grosseiros”. E listou os problemas: “entrevista pessoal, sessão secreta de abertura das notas, não lançamento imediato da nota da prova oral, descarte dos envelopes antes do fim do concurso, arredondamento de notas sem critérios claros”, entre outros.

As irregularidades foram bem pontuadas no voto do relator, Gilberto Valente. De acordo com a resolução do CNJ, após a prova oral, os examinadores têm de atribuir imediatamente a nota do candidato, envelopá-la e lacrar o envelope. Depois disso, a abertura dos envelopes deve ser feita em sessão pública. O critério é adotado porque nas provas orais os candidatos são identificados. Por isso, o cuidado para que não haja ninguém prejudicado ou beneficiado indevidamente.

O TJ de São Paulo não fez nada disso. “Não se compreende como pessoas experientes deixaram de cumprir procedimentos tão simples”, disse o relator do processo no CNJ. “O Tribunal de Justiça ignorou os procedimentos”. De acordo com os conselheiros, o tribunal não deu notas aos candidatos após a prova – mas só depois da malfadada entrevista subjetiva –, não lacrou os envelopes e fez a divulgação das notas em sessão secreta, sem informar qualquer dos interessados. Depois, fez uma sessão pública só para informar os resultados. “O conjunto da obra é absurdo”, concluiu Gilberto Valente.

O conselheiro Jefferson Kravchychyn, que inaugurou a divergência ao defender a reaplicação das provas apenas para os reprovados, afirmou que o procedimento tem vícios, mas não fraudes. Na mesma linha votou Emmanoel Campelo. “A discussão é sobre falhas e vícios acontecidos. Mas em nenhum momento foi questionado apadrinhamento ou favorecimento. Então, a aprovação não é objeto de discussão”, disse.

Além de criticar duramente as entrevistas pessoais, Jorge Helio disse que o TJ de São Paulo parece ter “certa repugnância do CNJ”. Segundo o conselheiro, não é só o tribunal paulista, mas especialmente ele tem um histórico de embate com as regras do CNJ. Ele fez referência a um vídeo em que o presidente do TJ diz aos aprovados que eles poderiam ficar tranquilos, garantindo que o concurso seria homologado mesmo com o caso em discussão no Conselho.

Bruno Dantas também foi enfático: “Costume secular não prevalece sobre a Constituição de 1988. Algumas tradições seculares precisam ser superadas. O CNJ nasceu para ajudar o Poder Judiciário a superar tradições seculares anti-republicanas, antidemocráticas e, portanto, inconstitucionais”. Segundo ele, é o caso das entrevistas secretas e do descumprimento de regras de concursos públicos.

O conselheiro Carlos Alberto Reis classificou a entrevista pessoal como “um horror” e disse que o concurso tem, sim, irregularidades. Mas também defendeu que, diante da falta de provas de que houve qualquer benefício aos aprovados, deveria se garantir a posse deles e permitir que os prejudicados refizessem a prova oral. “O tribunal de São Paulo tem de viver o hoje. O ontem é ontem. Faziam, mas não pode fazer mais. A cada tempo, o seu cuidado, dizem as escrituras”, afirmou o conselheiro.

O concurso foi aberto em 2011 com 193 vagas previstas. Ao longo do certame, abriram-se novas vagas. Hoje, segundo informações do TJ paulista, há 265 cargos vagos. Como são 216 os candidatos classificados para a prova oral, há vagas para todos os que atingirem a nota exigida.

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