Do metafísico ao empírico

Nova Lei da AGU e a fabulização da advocacia pública

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de setembro de 2012, 12h46

[Artigo publicado originalmente na edição de sábado, 15 de setembro, do jornal Correio Braziliense]

Uma animada discussão parece se desdobrar do encaminhamento de projeto de lei complementar que altera a lei orgânica da Advocacia-Geral da União. Bem entendido, trata-se (ainda) de um projeto devidamente endereçado para o palco natural da discussão política: o Congresso Nacional. Não se cuida de qualquer imposição normativa que tenha origem no Poder Executivo. A proposta segue caminho normal. Será debatida em seu nicho institucional apropriado.

O que se estranha são algumas reações que se registram, e que substancializam menos uma preocupação com a eficiência de nossas instituições do que interesses setoriais corporativos mimetizados em imaginárias preocupações sociais. Inventa-se uma ciência política ingênua que engasga o conceito de Estado, desenhando-se esse último como um escudo protetor para o exercício do achismo e das idiossincrasias.

Acusa-se o projeto de propiciar o aparelhamento ideológico da AGU, de engendrar a perda da autonomia do advogado público e de fixar uma fórmula hierárquica de concepção de decisões. Nesse sentido, o aparelhamento teria como causa a disposição de que seriam membros da AGU, além dos integrantes das carreiras jurídicas, os detentores, em âmbito do sistema de advocacia pública, de cargos comissionados. A perda da autonomia teria como causa a tipificação como erro grosseiro do advogado a inobservância das hierarquias técnicas e administrativas fixadas na lei complementar que se discute. É esse mesmo fragmento que fomentaria uma rigidez hierárquica na concepção de decisões. A crítica ao projeto não é uma questão weberiana, de burocracia; é freudiana mesmo, que qualifica um delírio jurídico, ainda não catalogado no código internacional de patologias da alma.

A incorporação do comissionado no sistema de advocacia pública é o reconhecimento de um fato capitulado pela vida real, e que reflete tradição normativa que, inclusive, considera funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública. Além do que, a preocupação é substancialmente quimérica, na medida em que os números objetivamente comprovam, pelo contrário, uma elogiável retração do exercício de cargos de advocacia pública por comissionados. Muito já se fez.

A tipificação como erro grosseiro de composição de texto que revele opinião pessoal e não uma direção institucional é medida necessária para que se alcance uma relativa unificação de entendimentos, indicativos de segurança jurídica. Quando se sabe para onde a nave vai, até o vento ajuda. Além do que, lê-se no projeto em discussão que não se considera erro grosseiro a adoção de opinião sustentada em interpretação razoável, em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita, no caso, por órgãos de supervisão e controle, inclusive judicial. O que temer?

O agito em torno de orientação para que um sentido hierárquico seja elemento fundante do sistema de advocacia pública que se pretende reconhecer é mais uma fobia juvenil para com o superego do carimbo. Somos advogados. Pautamos nossa atuação no contexto de uma tradição que remonta a Demóstenes e a Cícero, a confiarmos no estudo comparado de Plutarco, fundador de um gênero literário, a biografia. Demóstenes e Cícero combatiam com ferocidade; ensinam-nos que advogados representam uma parte. Ainda que não aceitassem pagamento pelo trabalho, e sim um estipêndio pela honra, de onde o substantivo honorários, o grego e o romano aqui lembrados plasmam a profissão com a adesão consciente para com o interesse daquele que se defende.

O contribuinte não pode ser sacrificado com o sustento de mais um órgão de controle. Esse papel já é exuberantemente exercido pelo Tribunal de Contas da União, pelo Ministério Público Federal, pela Controladoria-Geral da União, bem como pela opinião pública e pelo pleno exercício da cidadania, que se materializa também em várias ações populares que são propostas recorrentemente. O que se precisa é de um sistema de advocacia pública eficiente, intransigente na defesa do Erário, firme no combate à corrupção, intolerante na luta contra o servidor macunaímico, criativo na formulação jurídica de políticas públicas ungidas pela urna, comprometido com os substanciais valores da ética da responsabilidade, e não da convicção, se me entendem os que estudaram Max Weber.

Nos exames de ingresso às carreiras de advogado público deve-se inserir a disciplina de Ciência Política. Quem sabe, os futuros advogados públicos lerão um certo teórico francês que nos ensinou que o Estado é, no sentido pleno do termo, uma ideia, não tendo outra realidade além da conceitual, ele só existe porque é pensado; segundo esse pensador falecido em 1988, o Estado é da ordem das ideias e não dos fenômenos concretos. Ele se concretiza na ação governamental.

Isso não significa que deva o advogado público obedecer cegamente ao estafeta convidado de plantão, na abominável hipótese que essa praga um dia vingue. Limites há. E os sabe quem conhece a Constituição e as leis. Devemos conceber e viver a advocacia pública da vida real. Somos agentes privilegiados do proscênio democrático. Devemos, no entanto, transitar do metafísico para o empírico, de um ideal que imaginamos, e que não é nosso, porque fabulizado e romantizado, para um real que vivemos, e que nos pertence.

* As opiniões aqui emitidas são pessoais e não se prestam para explicitar entendimento institucional.

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