Ideias do Milênio

"A sociedade de serviços tirou habilidades das pessoas"

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14 de setembro de 2012, 8h00

Entrevista concedida pelo sociólogo e professor de Oxford e da New York University Richard Sennet, ao jornalista Lucas Mendes, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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Estamos numa encruzilhada, e o desafio é manter a rede de proteção social sem levar os países à falência. Há quem afirme que a solução é mais proteção do Estado. Outros defendem que haveria mais saúde e prosperidade se o mercado funcionasse livremente. Como sair desse dilema? Talvez a resposta esteja além das finanças e da política. As inovações tecnológicas que aproximaram o mundo acentuaram o individualismo, transformaram a nossa relação com o tempo e tornaram o consumo o principal foco da economia. Alguns sugerem que um passo necessário para começarmos a melhorar nossa realidade está em repensar a forma como entendemos o trabalho. Esta é uma das propostas de Richard Sennet, escritor e professor de Oxford e da New York University, autor de uma dúzia de livros. Ele dedicou os últimos 16 ao estudo do capitalismo moderno, e vê no Brasil uma das maiores esperanças para o futuro do mundo. Este homem renascentista tem um vasto universo, que vai da cozinha, onde é um chefe de pratos sofisticados, passando pela metafísica e pela música, seu primeiro talento. Vive entre o Reino Unido e os Estados Unidos, e falou conosco no estúdio do Milênio em Nova York.

Lucas Mendes — Professor Sennett, obrigado de novo por vir.
Richard Sennett —
Eu agradeço o convite.

Lucas Mendes — O senhor tem histórias maravilhosas sobre alguns artesãos, uma delas sobre o mais famoso ourives do Renascimento, Cellini.
Richard Sennett —
Cellini.

Lucas Mendes — A outra é sobre Antonio Stradivari. Como o senhor relaciona esses grandes artesãos ao século 21?
Richard Sennett —
Bom, o que os dois fizeram foi tentar fazer coisas que pudessem ser copiadas, mas não no nível da própria produção deles mesmos, que eram geniais. Mas eles não eram artistas modernos como os consideramos hoje, autores de obras sem igual. Stradivari acho que tinha criado uma nova maneira de fazer violoncelos e violinos, que poderia ser imitada por outros. É claro que eles nunca seriam tão bons quanto ele. Mas ele criou um padrão de qualidade. Isso é típico dos artesãos: essa competitividade. Todos os artesãos competiam uns com os outros. O que eles tinham em comum era a noção de que há um padrão de qualidade objetivo. E, ao contrário dos artistas modernos, eles queriam que outras pessoas seguissem seus padrões. Acho que essa é a ligação com a maneira como nós deveríamos pensar em fazer as coisas bem feitas, com qualidade, hoje em dia. Não fazer algo único, sem igual, mas algo que possa ser feito por outras pessoas, compartilhado com os outros, mas de muito boa qualidade.

Lucas Mendes — Professor, 10 mil horas. Esse foi o tempo que o senhor disse ser necessário para alguém se tornar um bom artesão.
Richard Sennett —
Vou explicar.

Lucas Mendes — De onde tirou esse número? Há um artesão dentro de cada um?
Richard Sennett —
Há um dentro de você. Você é um artesão. Vou dizer o que esse número representa. Para aprender a fazer algo bem e de maneira confiável, precisamos fazer as coisas repetidamente. Quando eu era músico, praticávamos de 3 a 4 horas todos os dias. Com os atletas, é a mesma coisa. Não se faz algo bem acidentalmente. Mas, para fazer algo bem, é preciso ter em você esse conhecimento, tacitamente, sem precisar pensar no que está fazendo. E esse famoso número a que eu cheguei… Podem ser 10.500, ou 9.999 horas. Meu assistente e eu estávamos pesquisando isso, para estimar quanto tempo levamos para fazer duas coisas. Em primeiro lugar, para conhecer bem aquilo que estamos fazendo, porque já fizemos tantas vezes, que a coisa já está em nós, não é preciso pensar. Em segundo lugar, precisamos aprender a encontrar várias maneiras de resolver os mesmos problemas, o que é importante no artesanato. Se você acha que as coisas só podem ser feitas de uma maneira, seu trabalho fica muito monótono, você não sabe como mudá-lo ou melhorá-lo. Mas, se você encontrar cinco maneiras de martelar um prego ou cinco maneiras diferentes de cooperar com alguém que é se concorrente, você terá mais habilidade, você terá mais soluções para o mesmo problema. E o resultado disso será que você poderá avaliar essas maneiras diferentes de fazer as coisas e, gradualmente, escolher e aprimorar os melhores meios. Então, o que esse número representa é a experiência e a diversidade do conhecimento. Então, é isso. Não são exatamente 10 mil horas.

Lucas Mendes — Mas são muitas horas.
Richard Sennett —
São. Se você pensar…

Lucas Mendes — Quantos anos?
Richard Sennett —
Posso lhe dizer exatamente. Produzir um jogador de futebol de primeiro nível é equivalente a produzir um músico de orquestra. De 3,5 a 5 horas de prática diária durante sete anos.

Lucas Mendes — É bem específico.
Richard Sennett —
É bem preciso.

Lucas Mendes — O senhor escreveu que a sociedade moderna retira as habilidades das pessoas.
Richard Sennett —
Isso.

Lucas Mendes — Como e por quê?
Richard Sennett —
Bom, ela tem feito isso de duas formas. Uma foi a maneira como a industrialização ocorreu. Mas a maneira menos óbvia é o que aconteceu à medida que surgiu a chamada “sociedade profissional de serviços”. O que eu tentei mostra nos meus livros foi que essa sociedade de serviços enfraqueceu as habilidades de várias pessoas que tinham habilidades para prestar serviços pessoalmente e criou um conjunto de procedimentos mais padronizados. Não podemos entrar em uma cadeia mundial de lojas, por exemplo, e negociar o preço do produto que vamos comprar. Entende? Não dá para fazer isso. Vemos na prática médica hoje a padronização daquilo que os enfermeiros podem ou não fazer. É um problema sério. Se você não tomar cuidado com essa terceira revolução, que é a revolução eletrônica, as máquinas podem se tornar um novo elemento que tornará as pessoas menos habilidosas. Mas eu não acho que isso precise acontecer. Na verdade, quando você sai do universo monolítico da Microsoft ou do Google e aprende uma linguagem de programação como o Linux, que é um sistema de código fonte aberto, há maneiras de usar essas máquinas de uma forma tão flexível e individual quanto as ferramenta manuais. Mas nós precisamos querer fazer isso, para evitar que as máquinas se tornem uma espécie de degradação final da economia de serviços.

Lucas Mendes — O senhor escreveu uma trilogia. O primeiro livro é O Artífice. E o senhor a chamou de Homo Faber. Por que escreveu a trilogia e por que o nome Homo Faber?
Richard Sennett —
Vou responder primeiro à sua segunda pergunta. Homo Faber significa “homem que faz”. Durante a vida toda, eu me interessei por como as coisas são feitas. Eu não me interesso muito por como as coisas são consumidas. Eu sou muito espartano. Mas eu gosto de fazer as coisas e eu tinha uma intuição de que havia um conjunto de práticas usado para fazer as coisas direito, para buscar a qualidade, que ia dos trabalhos manuais às relações sociais e ao meio ambiente. Essa trilogia fala das habilidades que as pessoas precisam desenvolver para fazer as coisas direito na fabricação de objetos, na construção de relações sociais e de lugares. Essa é a arquitetura da trilogia.

Lucas Mendes — Mas por que O Artífice é tão significativo e importante?
Richard Sennett —
Bem, eu acho que é porque, após a Segunda Revolução Industrial, no século 20, muitas das coisas que fizemos eram monótonas e de baixa qualidade. Basta ver as casas construídas após a Segunda Guerra Mundial. São muito malfeitas.

Lucas Mendes — O senhor conta especificamente uma longa história sobre a Rússia.
Richard Sennett —
É verdade. Foi uma experiência incrível. Eu estive na Rússia para ver as casas dos trabalhadores. Foi uma viagem oficial a uma “aldeia modelo”, feita para iludir os visitantes. E eu tinha uma guia russa que, ao mesmo tempo em que dizia como tudo era maravilhoso, era incrivelmente irônica. E à medida que passávamos de uma casa à outra, todas perfeitas, ela dizia coisas como: “Olhe as janelas.” As janelas estavam despencando. Ou ela abria a porta e mostrava algo que eu não deveria ver, como um monte de lixo acumulado. E eu tive uma conversa ótima com ela e outras pessoas no que era, na época, a União Soviética sobre porque o comunismo, que pretendia dar às massas itens de qualidade, produzia objetos de qualidade tão baixa. Não era apenas falta de dinheiro, era também uma mentalidade de produção industrial e a distância que esses trabalhadores sentiam, no “paraíso dos trabalhadores”, com relação ao comprometimento no trabalho.

Lucas Mendes — Havia uma falta de motivação?
Richard Sennett —
Havia. Não era tão diferente do que encontramos em outros lugares, mas foi muito chocante para mim, porque eu fui até lá para ver esse “paraíso”.

Lucas Mendes — Seu livro afirma que a cooperação é essencial para melhorar nossas vidas. Mas a cooperação não é algo novo.
Richard Sennett —
Não, longe disso.

Lucas Mendes — Então como é essa cooperação a que o senhor se refere? Em que ela difere da velha cooperação?
Richard Sennett —
Quando eu falo dela no livro, o que estou explorando é uma cooperação complexa. Como trabalhar e cooperar com… E, ao dizer “cooperação”, me refiro a trabalhar com outras pessoas para fazer coisas que não consegue fazer sozinho. Como nós cooperamos com pessoas que não conhecemos, com estranhos, com pessoas de quem não gostamos ou com pessoas que são nossas concorrentes? É um tipo de cooperação muito complexa, que requer habilidades que não temos naturalmente de forma completamente desenvolvida. Nós precisamos aprender a desenvolvê-las. E o modelo que eu usei neste livro tem dois aspectos. Um deles, no mundo prático, diz respeito à cooperação em uma cidade multirracial, multiétnica, multiclasse e multirreligiosa. Na minha cabeça, o que pensei, o que me veio em mente, foi o tipo de cooperação adotado pelos músicos quando tocam juntos. Nós fazemos coisas diferentes, os músicos não são pessoas doces, são terrivelmente infantis, gostam de brigar, são um grupo desordeiro. Como conseguimos fazer essas coisas diferentes juntos e como as fazemos dar certo? É interessante ver como os músicos aprendem a ensaiar. Como os talentos jovens, que tocam sem ouvir os outros, que tocam muito, passam a prestar atenção no que os outros fazem? Como eles domam esse egoísmo? Isso ficou na minha cabeça e, em grande parte dos meus estudos em Sociologia, usei minhas experiências, e os músicos serviram como um modelo social. Mas o aspecto prático é o que faz funcionar uma cidade complexa. As pessoas se isolam, há comunidades vigiadas, com cercas altas, cães latindo nos portões, isso tudo. Isso acontece muito em São Paulo. A pergunta é: estamos condenados a viver nesse tipo… Dessa forma, todo mundo vive em uma prisão. Acho que precisamos conduzir mais experiências sobre como transformar esses muros não em algo em que tudo é aberto, mas em algo que promova mais encontros entre pessoas de classes, raças, etnias ou religiões diferentes daqueles que já conhecemos. E muito do trabalho que fiz nas cidades dizia respeito a como fazer isso em espaços públicos.

Lucas Mendes — O senhor disse que teve uma intuição, uma sensação, com relação à atual crise econômica. Isso foi muito antes de a crise começar? Quando veio essa intuição?
Richard Sennett —
Eu não quero me gabar sobre ter previsto a crise. Mas eu estive em Davos em 1996 e acho que em 1997 também. Mas, com certeza, em 1996. E eu vi aquele Fórum Econômico Mundial, aqueles homens poderosos, sentados com seus cafés, dizendo: “Mas por que estamos discutindo? Só por causa de US$ 1 bilhão? Vamos fechar logo um acordo.” Quando vi aquilo acontecer, eu pensei: “Isso não vai durar.” A única realidade que eles tinham era o outro bilionário na frente deles. Eles não falam das empresas, dos empregos… Eles só falam de comprar, vender, entrar, sair… Os políticos… Isso foi no auge do neoliberalismo. Os políticos achavam que essas pessoas eram gurus, que o fato de terem um banco de investimentos as qualificava para falar do estado da educação de um país ou da aposentadoria dos mais velhos. Essas pessoas eram o ponto de referência nesses fóruns. Para mim, ficou bem claro que eram pessoas limitadas demais para servirem de ponto de referência. E, dez anos depois, sabemos o que aconteceu.

Lucas Mendes — Isso foi 10 anos antes da crise.
Richard Sennett —
Foi. Mas não faça alarde disso. E foi apenas uma intuição que tive ao ver como esses homens conversavam. Não havia outra realidade além dos bilhões que discutiam. Eles não estavam falando do mundo real.

Lucas Mendes — O senhor disse que passou os últimos 15 ou 16 anos estudando o capitalismo moderno.
Richard Sennett —
Isso. Que bom que você fez essa pergunta!

Lucas Mendes — Por que ele é pior do que o antigo capitalismo?
Richard Sennett —
Não é pior, ele é diferente.

Lucas Mendes — Diferente como?
Richard Sennett —
Por muitas razões. Ele é mais global, obviamente, mas, na estrutura temporal deste capitalismo, o tempo tem uma configuração totalmente diferente da anterior. As empresas para as quais as pessoas trabalham são mais instáveis, elas não têm uma identidade corporativa, que precisa ser construída ao longo do tempo. O trabalho que as pessoas fazem é de curtíssimo prazo, e a relação entre os funcionários e a empresa é muito fraca, os laços que os unem são muito frágeis, de ambos os lados. É o substituto do que costumávamos chamar de “capitalismo social”… O capitalismo social era algo muito mais fluido e muito mais individualizado para o trabalhador. Nós começamos esta conversa falando da desigualdade. A desigualdade lucra com esse capitalismo de curto prazo. É como os investimentos atuam hoje em dia: é o retorno de curto prazo, em vez do lucro de longo prazo. É uma maneira de não se responsabilizar pelo futuro de nada. Então as pessoas estão vivenciando um mundo do trabalho muito mais fragmentado do que o dos nossos pais ou avós. E isso transformou as relações entre as classes sociais. Os conflitos sociais não são mais o que eram nos EUA ou no Reino Unido em meados do século 20, quando um corpo de trabalhadores lutava contra a classe empresarial para defender seus interesses. Esse corpo de trabalhadores está sempre mudando. A própria classe empresarial está mudando e desaparecendo o tempo todo. As próprias empresas são uma rede de componentes, uma espécie de arquipélago de atividades podemos dizer, em vez de algo inteiro. Não há nada contra o qual se possa lutar. Então, o que acontece nessa condição é que as pessoas que se beneficiam com isso são aquelas que estão no topo da estrutura, a elite. E, abaixo delas, temos estagnação. Estagnação com relação aos salários e à riqueza das pessoas, além de uma estagnação social em que as pessoas não criam laços no trabalho, não se conectam com outros trabalhadores, em que a consciência diminui… Como nós dois somos bons marxistas, queremos a luta de classes.

Lucas Mendes — Você é socialista…
Richard Sennett —
Você entende o que eu digo. O capitalismo passou por uma enorme mudança nos últimos 25 anos, a maior transformação desde a Primeira Revolução Industrial. Mas eu sou socialista.

Lucas Mendes — O que é ser socialista hoje? O que vocês fazem?
Richard Sennett —
Nos reunimos em porões escuros, fumamos muitos cigarros…

Lucas Mendes — Que tipo de conspiração?
Richard Sennett —
Nós conspiramos. Bem… Vou lhe dar uma resposta séria sobre o que é esse livro sobre cooperação. Porque é, na verdade, um livro político. Eu acho que nós temos… Vou responder da seguinte maneira. No início do século 20, havia uma grande divisão no socialismo europeu entre o que chamávamos de esquerda social e esquerda política. A esquerda social eram organizações comunitárias, bancos locais, que trabalhavam de baixo para cima. A esquerda política — e isso era antes de Lênin — funcionava de cima par baixo: grandes sindicatos, partidos políticos formais, esse tipo de diretrizes que as massas seguiam. Durante a maior parte do século 20 — pelo bem e principalmente mal —, a esquerda política foi dominante. Era uma estrutura que mobilizava o poder burocrático de cima para baixo, em nome da justiça. Agora, acho que, hoje, dada a natureza do capitalismo, o que nós, da esquerda, devemos fazer é reconstruir o social de baixo para cima. E eu me interesso por essa forma complexa de cooperação porque, quando as pessoas desenvolvem habilidades, elas conseguem cruzar, nas comunidades ou nas cidades, esses limites de classe, raça etc., para começar a cooperar umas com as outras. Os políticos sempre me enojam. É uma espécie de sedução ou moralização em nome do povo de que eu não gosto. Esse é um preconceito meu, uma cegueira minha, mas eu realmente acho que nós, da esquerda, precisamos construir instituições de baixo para cima.

Lucas Mendes — Muito obrigado, foi um prazer.
Richard Sennett —
Obrigado pelo convite.

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