Constituição e Poder

O Barão de Münchhausen e o Direito sem preconceitos

Autor

10 de setembro de 2012, 9h43

Spacca
Em uma de suas mais conhecidas ironias, René Descartes dizia que não há nada que Deus tenha distribuído em melhor proporção entre os homens do que a capacidade de julgar o comportamento alheio sem preconceito, uma vez que todos acham que a tem em boa quantidade. Ironia à parte e pedindo desculpas pelo truísmo, nós, os juristas, aí incluídos os juízes, os advogados e os promotores, somos seres humanos e, como tal, extremamente preconceituosos. A confirmação dessa verdade deveria ser desnecessária, não fosse o fato de que o preconceito se torna tanto mais forte e arraigado quanto mais insistimos em desconsiderá-lo.

No Direito Constitucional, no Direito Eleitoral e Penal, por exemplo, é muito fácil deixar que falem os nossos preconceitos. É muito fácil que nossas pré-compreensões se substituam às coisas, às pessoas e à própria realidade: basta não querer notar. Interpretamos textos e julgamos realidades e pessoas, sem nos preocuparmos em inquirir se a maldade ou a bondade que vemos está naquilo que interpretamos ou em nossa própria pré-comprensão do mundo. Está aonde chegamos ou de onde partimos? Hegel dizia que o que de pior pode acontecer à razão é dar algo como sabido e seguir adiante. No Direito, nada pior do que, por exemplo, um magistrado desconsiderar a hipótese de estar julgando preconceituosamente e, simplesmente, seguir em frente.

É certo que poucos terão dificuldade em reconhecer a existência de preconceitos. Mas, voltando a Descartes, preconceito é algo que de regra apenas enxergamos nos outros. Podemos confiar no nosso próprio discernimento para escapar aos preconceitos?

Conta-se que Rudolf Erich Raspe e Gottfried August Bürger teriam desgraçado a honra e o bom nome de Hieronymus Carl Friedrich – Freiherr von Münchhausen, mais conhecido como Barão de Münchhausen, ao inventar ou aumentar algumas fantasias sobre o famoso personagem que, na versão alemã, ganharam o título de “As Viagens Maravilhosas por Mar e Terra: Campanhas e Aventuras Cômicas do Barão de Münchhausen”[2]. Como se sabe, entre as aventuras do Barão de Münchhausen, uma das que mais se destacou é aquela em que, ao passear a cavalo, o Barão acaba embrenhando-se num pântano e como afundava cada vez mais sem alguém que o pudesse socorrer, o Barão não teve duvida: puxou a si mesmo pelos cabelos, até que conseguiu sair com cavalo e tudo do atoleiro. Pois bem, essa incrível fantasia é o perigo de todos nós, juristas: imaginar que, presos e atolados em nossos mais radicados preconceitos, boa parte deles ignorados, possamos a partir de nossa auto-ilustração (visão de mundo), como que nos levantando pelos próprios cabelos, escapar dessas mesmas ilusões, ideologias e preconceitos. Em tal condição, o jurista permanecerá num auto-engano, acreditando que é imparcial e mesmo neutro, quando mais não fará do que, sem qualquer questionamento, reproduzir a ideologia e os valores que, em boa parte das vezes, sequer consegue enxergar.

Mas o que fazer, se não podemos confiar no nosso auto-equilíbrio e boa vontade para escapar aos nossos preconceitos?

I. O caráter essencialmente preconceituoso de todo compreender

Em primeiro lugar, é de se dizer com Gadamer que nem sempre um valor ou uma (pré)compreensão que se consolida como preconceito é um mal em si. O errado é não colocar essa prévia visão ou esse valor em permantente questionamento. Vejamos mais de perto essa ideia.

De fato, Hans-Georg Gadamer advertia que nem sempre é negativo o (pre)conceito, ou a (pré)compreensão de que nos valemos para agir ou para a tomada de uma decisão. O problema consiste, entretanto, em não colocarmos sob questionamento, isto é, em confronto com a realidade mesma a pré-compreensão de que partimos ao tomarmos uma decisão.

Em sua leitura sobre a interpretação compreensiva (hermenêutica), Gadamer busca retirar da idéia de preconceito e (pré)juízo (Vorurteil) o caráter negativo que lhe foi imposto pelo Iluminismo, pois, sob sua constatação, quem quer que se ponha a compreender um texto busca sempre realizar um projeto que já se antecipara em sua mente[3].

Segundo Gadamer, uma análise histórica da ideia de (pré)conceito, ou (pré)juízo, demonstra que não se justifica o timbre negativo que lhe teria sido imposto pelo Iluminismo, isso porque a ideia de (pré)conceito ou (pré)juízo, em si, apenas quer designar o juízo que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos objetivamente determinantes do texto ou realidade submetidos à nossa compreensão. Por isso, preconceito ou (pré)juízo não designam, necessariamente, um juízo falso. Tais conceitos podem ser avaliados tanto positiva como negativamente[4].

II. O caráter preconceituoso da interpretação do direito

No que interessa aos juristas, segundo Gadamer, mesmo o processo de concretização da lei é de natureza produtiva e criativa – e não meramente descritivo. Além disso, depende da pré-compreensão do intérprete (esse reconhecimento do caráter criativo do processo de interpretação e aplicação da lei minimiza as diferenças, por exemplo, entre um juízo de subsunção e juízo de ponderação, já que assim se tornaria evidente que ambos os procedimentos de concretização legal dependeriam, em última instância, de juízos de valoração[5]).

Entretanto, Gadamer afirma que o intérprete de um texto (como a lei, por exemplo) apenas pode realizar seu ofício adequadamente quando as opiniões prévias de que parte não são arbitrárias. Por essa razão é conveniente e mesmo necessário que o intérprete nunca inicie sua tentativa de compreender um texto a partir das opiniões prévias que lhe são próprias[6]. Nas palavras do próprio Gadamer, aquele que quer compreender um texto deve antes estar pronto para deixar-se dizer alguma coisa por esse mesmo texto. Por isso uma consciência instruída pela hermenêutica precisa ser de antemão sensível à alteridade do texto (Andersheit des Textes)[7].

Assim, o intérprete, quando sinceramente almeja a compreensão de um texto, não pode se submeter à arbitrariedade de suas opiniões prévias, ignorando por assim dizer a própria opinião do texto. De outro lado, como explica Gadamer, essa sensibilidade à alteridade do texto não implica uma neutralidade objetiva com relação ao texto nem muito menos uma auto-demissão de suas próprias opiniões. O que importa aqui é dar-se conta de prévias opiniões e preconceitos próprios, abrindo espaço para que os pressupostos e preferências pessoais do intérprete possam ser confrontados com a verdade objetiva e alteridade do próprio texto. Por isso, quando ouve, ou lê algum texto, o intérprete não precisa esquecer todas as suas opiniões previamente formadas ou todas as inclinações pessoais, o que se exige é apenas uma abertura para as opiniões do interlocutor ou do próprio texto[8].

Percorrendo a trilha aberta por Heidegger, Gadamer sugere que uma interpretação compreensiva deve reconhecer o caráter essencialmente preconceituoso de todo compreender[9]. De toda forma, isso não supõe nem pressupõe um juízo negativo nem positivo da ideia de preconceito ou (pré)julgamento. Segundo Gadamer, aliás, o descrédito da ideia de (pré)juízo ou preconceito é uma consequência, paradoxalmente preconceituosa, do Iluminismo, sobretudo, de sua tentativa de buscar neutralizar o pensamento das formas religiosas e míticas de compreensão de textos e do próprio mundo[10].

Tão logo se entremostra o primeiro sentido de um texto, e já o intérprete antecipa o sentido de seu todo, em outras palavras, o sentido da interpretação de um texto apenas se manifesta, segundo Gadamer, porque aquele que interpreta um texto o interpreta com determinadas expectativas, a partir de determinado sentido[11]. Assim, a compreensão do texto que se põe ao intérprete consiste precisamente na elaboração e aperfeiçoamento daquele projeto prévio, que deve ser confirmado e revisado continuamente conforme se vai penetrando mais extensamente do sentido do texto. É compreensível, portanto, que, no processo hermenêutico, a objetividade só possa estar nessa possibilidade de revisão daquele projeto prévio. Isso apenas se alcança ao colocarem-se lado a lado projetos rivais até que se possa estabelecer uma unidade de sentido. Resumindo, toda interpretação começa com conceitos prévios que, no seu itinerário, serão substituídos por conceitos mais adequados[12]. A esse processo de novo-projetar ou reprojetar permanente, que concretiza o movimento de conferir sentido à compreensão e à interpretação, Heidegger designava círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel)[13].

Tudo considerado, quem busca compreender corretamente tem que afastar os erros de suas opiniões prévias mediante o confronto com as coisas mesmas (Sachen selbst) que serão objeto do processo hermenêutico. Assim, a tarefa permanente do compreender é a elaboração de projetos corretos e objetivamente adequados, os quais, como projetos, são antecipações que apenas podem se confirmar «nas coisas»[14]. A objetividade no processo hermenêutico não pode ser algo diferente do que a confirmação que as opiniões prévias podem encontrar através de sua elaboração e aperfeiçoamento. Da mesma forma, apenas se pode falar em arbitrariedade de opiniões prévias quando se consegue demonstrar a sua inadequação objetiva no momento e processo mesmo de sua execução. Entretanto, só se dará conta da arbitrariedade ou acerto de suas pré-compreensões quem esteja disposto a colocá-las em questionamento. Como se vê, o mais profundo de nossos preconceitos é, precisamente, a soberba de afimar a pureza de nossa compreensão do mundo, das pessoas e das coisas.


[1] Desembargador do TRF da 1ª Região e Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra

[2] (Wunderbare Reisen zu Wasser und zu Lande: Feldzüge und lustige Abenteuer des Freiherrn von Münchhausen)

[3] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 276.

[4] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 275.

[5] Lothar Michael. Methodenfragen der Abwägungslehre, p. 173.

[6] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p.272.

[7] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 273.

[8] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 274.

[9] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 274/5:

[10] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 276.

[11] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p.271.

[12] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 272.

[13] Heidegger. Sein und Zeit, p. 312 e ss, apud Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 270.

[14] Hans-Georg Gadamer. Wahrheit und Methode, p. 272.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!