Direito Comparado

A Constituição que vigorou por 24 horas no Brasil

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

31 de outubro de 2012, 10h47

Uma Constituição que vigorou no Brasil por 24 horas. Eis uma das possíveis definições para essa importante e quase desconhecida Constituição de Cádiz, aprovada pelas Cortes Gerais e Extraordinárias na Espanha de 1812.[1]

Paulo Bonavides, um dos grandes responsáveis pela divulgação no Brasil (e não apenas neste país) da Constituição de Cádiz, que celebra seu bicentenário este ano, assim relatou as vicissitudes desse texto normativo em nosso território:[2]
“Três vezes a Constituição espanhola de Cádiz, monumento do liberalismo monárquico, teve ingresso efêmero no constitucionalismo luso-brasileiro.”

A primeira vez em Portugal, ao ensejo da rebelião popular de 11 de setembro de 1821, apoiada por forças do exército; houve porém um recuo, de tal sorte que, segundo Aurelino Leal, passaram a vigorar, tão somente, ‘disposições da Constituição espanhola que se referiam ao sistema e processo eleitoral, e com a condição de que as Cortes Constituintes e Extraordinárias convocadas não alterassem na constituição futura de Portugal as suas boas essências e nem admitissem princípios menos liberais’; Leal, Aureliano, ‘História Constitucional do Brasil’, op. cit. PP. 17 e 18.

A segunda vez, na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, de maneira provisória e nos mesmos termos de sua adoção em Portugal, conforme assinala o sobredito historiador (Leal, Aurelino, op. cit., p. 18). A seguir, pela terceira vez, no Rio de Janeiro, por apenas 24 horas. Decretada no dia 21 de abril foi revogada no dia seguinte, por dois decretos de D. João VI, que escreveu assim, como rei, a página que melhor lhe biografa o caráter, a irresolução e principalmente a covardia da personalidade”.[3]

As raízes da Constituição Gaditana remontam ao início da rebelião contra os franceses, cujas tropas ocupavam a Espanha, no famoso “Levante de 2 de maio de 1808”, ocorrido em Madri e cujos rebeldes foram fuzilados no dia seguinte, como se pode ver no conhecido quadro de Francisco de Goya. Após a derrota dos insurgentes e o massacre francês, Espanha ergueu-se em armas e integrou-se às chamadas “Guerras Peninsulares”, que envolveram tropas francesas, de um lado, e britânicas (e de aliados), portuguesas e espanholas, de outro.

A monarquia espanhola, que inicialmente tentara se compor com Napoleão Bonaparte, dele se tornando aliada e contribuindo com o esforço de guerra, foi traída e os franceses indicaram José Bonaparte para o trono de Espanha.

Num quadro de profunda instabilidade política, com a guerra peninsular ainda em curso, as Cortes Gerais e Extraordinárias foram convocadas e iniciaram a elaboração de um texto constitucional para Espanha. Esse trabalho foi concluído aos 12 de março de 1812, na cidade portuária de Cádiz (de onde partiram os navios franco-espanhóis para a derrota na Batalha de Trafalgar em 1805). Sua vigência foi curta: de 1812 até 1814, quando o rei Fernando VII foi reentronizado e, em momento posterior, repudiou a liberal Constituição de Cádiz.[4]

Mas, o que tem de tão especial esse documento histórico?

O texto gaditano serviu de fonte de inspiração para as constituições liberais do século XX, especialmente a “Constituição vintista” de Portugal,[5] e “sobretudo, o constitucionalismo europeu e ibero-americano que antecedeu a Kelsen (1920)”[6].

A Constituição de Cádiz, por outro lado, formulou uma série de princípios absolutamente inovadores para seu tempo e que repercutiram até nosso século. A ideia de que a soberania “reside esencialmente en la Nación, y por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes fundamentales” (art. 3o) é perturbadora, de modo especial para um tempo em que a legitimidade do poder descansava na vontade de Deus e no direito divino dos monarcas absolutos. Com maior vigor, o artigo 2o também proclamava que: “A nação espanhola é livre e independente, e não é nem pode ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa.”

O objetivo do governo deveria ser a “felicidade da Nação”, porquanto “o fim de toda sociedade política não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem” (art. 13). A natureza “moderada” (não absoluta) da monarquia era estabelecida (art. 14) e a divisão dos poderes restava bem clara na afirmação de que “a potestade de fazer leis reside nas Cortes com o Rei” (art. 15).

No artigo 172, fixavam-se diversas “restrições à autoridade do Rei”, ao exemplo da proibição de que ele impedisse a realização das Cortes e de que ele se ausentasse do Reino sem consentimento parlamentar. Para uma época patrimonialista, não se esqueceram de proibir o monarca de “alienar, ceder ou permutar província, cidade, vila ou lugar, nem parte alguma, por menor que seja, do território espanhol”.

De maneira inédita para os padrões constitucionais do século XIX (e de grande parte do século XX), a Constituição de Cádiz elencava os ministérios do governo, em seu artigo 222. O nível de detalhamento também chegava ao Poder Judiciário, a quem competia, de modo exclusivo, “aplicar as leis nas causas cíveis e criminais” (art. 242), sendo certo que “nem as Cortes, nem o Rei poderão exercer, em nenhum caso, as funções judiciais, avocar causas pendentes, nem mandar abrir juízos extintos” (art. 243).

A defesa da Constituição poderia ser provocada por qualquer cidadão: “Todo espanhol tem direito de representar às Cortes ou ao Rei para reclamar a observância da Constituição” (art. 373). Cabendo às Cortes tomar em consideração “as infrações da Constituição que lhes tiverem sido presentes, para lhes dar o conveniente remédio, e fazer efetiva a responsabilidade dos que tiverem a ela contravindo” (art. 372).

Em seus 384 artigos, a Constituição de Cádiz dedicava títulos à administração das unidades do Reino, à educação pública, às Forças Armadas e às emendas constitucionais. Como salienta Eduarda Chacon, “o artigo 286 preceituava a duração razoável do processo e o artigo 291 assegurava ao cidadão o direito de não produzir provas contra si mesmo. O artigo 296, por sua vez, previa o direito à liberdade mediante pagamento de fiança. Na sequência, o artigo 302 voltava a dispor sobre a legalidade, o artigo 303 proibia a tortura e o artigo 304 vedava o confisco”.[7]

Não é sem causa afirmar que o texto constitucional gaditano corresponde ao conceito moderno de uma “Constituição dirigente”, ao exemplo das constituições vigentes em Portugal e no Brasil. Outro aspecto digno de interesse para os estudiosos contemporâneos está na tese muita vez repetida de que o constitucionalismo liberal do Oitocentos foi sintético e não preocupado com direitos sociais ou com algo além da estrutura do Estado e um catálogo mínimo de direitos fundamentais. Cádiz, quando pouco, deveria figurar como uma saliente exceção a essa tese. Eduardo García de Enterría, com maior elegância e precisão, já o afirmara em um escrito de 1986.[8]

Resta contar um pouco sobre a efemeridade de sua vigência no Brasil, ainda ligado a Portugal por laços coloniais.

O episódio deu-se em abril de 1821, num sábado, dia de eleição dos deputados às Cortes em Portugal, que elaboravam uma nova Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Conforme o relato de Eduarda Chacon, havia grupos favoráveis à permanência de D. João VI no Rio de Janeiro e outros que defendiam a imediata adoção do texto de Cádiz, “enquanto as Cortes Constituintes de Lisboa não concluíssem os seus trabalhos”. E prossegue a autora: “‘Queremos Cádiz!’, gritavam. Diante da reivindicação que lhe foi levada por um grupo do povo, sob chuva torrencial, não viu o Rei opção, senão aceitá-la”.[9]

Naquele alvoroço e com receio de um levante, D. João VI determinou que se observasse no Brasil, enquanto não ultimados os trabalhos constituintes em Portugal, a Constituição de Cádiz.

Os defensores da monarquia absoluta, no entanto, reverteram a situação: “Daí em diante, entusiasmado com o atendimento de sua reivindicação, o povo achou por bem impedir a saída dos navios que levariam a Corte Real de volta a Portugal. Evidentemente, houve forte retaliação e o saldo foi um bom número de mortos. Importa dizer apenas que o episódio serviu para dar força aos soldados que, dirigindo-se ao palácio real, de lá somente se retiraram quando foi assinado um novo decreto, revogando o anterior, (…) no qual constava que sendo a Constituição de Cádiz elaborada por ‘homens mal-intencionados e que queriam a anarquia (…) Hei por bem Determinar, Decretar, y Declarar por nulo o Ato feito ontem’.”[10]

Estudar o texto de Cádiz, para além desse pitoresco episódio da História brasileira, é descobrir que, em pleno alvorecer do século XIX, num tempo de guerra e de ocupação territorial, o grande povo de Espanha (nesse aspecto, simbolizando a latinidade) ofereceu ao mundo um respeitável, inédito e visionário contributo às instituições jurídico-políticas. O desconhecimento de Cádiz diz muito também sobre a visão pouco favorável que temos a nosso próprio respeito. E não apenas no Direito.[11]


[1] Há certa controvérsia em torno da grafia em português do nome dessa cidade espanhola. Em castelhano, escreve-se Cádiz, forma que foi escolhida por este colunista. Existem, porém, os que defendam o uso da forma Cádis.

[2] Paulo Bonavides, desde 2003, tem divulgado e estimulado os estudos sobre a Constituição de Cádiz. Essa é uma matéria de grande importância para o Direito Constitucional Comparado e não tem despertado o merecido interesse na doutrina brasileira contemporânea, com algumas importantes exceções:   CHACON, Eduarda. Bicentenário da Constituição de Cádiz, a primeira carta magna brasileira. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 80, p. 418, jul. 2012; BARRETTO, Vicente de Paulo. Viva la pepa: a história não contada da Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 172, n. 452, p. 201-223, jul./set. 2011; CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história : origem & reforma : da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. rev. e ampl. até a Emenda Constitucional nº 52/2006. Rio de Janeiro : Revan, 2006; BONAVIDES, Paulo. O constitucionalismo espanhol e seu influxo no Brasil : de Cádiz a Moncloa. In. AA.VV. La Constitución de 1978 y el constitucionalismo iberoamericano. Madrid : Ministério de la Presidencia, Secretaria General Técnica : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 197-219.

[3] BONAVIDES, Paulo.  As nascentes do constitucionalismo luso-brasileiro, uma análise comparativa. p. 197-235 (nota de rodapé 22). Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1510/9.pdf. Acesso em 26-10-2012.

[4] MORAES, Oswaldo de. Formação do estado federal brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 55, n. 368, p. 12-23, jun. 1966.

[5] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos avançados. v.14, n. 40, São Paulo set.-dez. 2000.

[6] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.

[7] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.

[8] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun. 1986.

[9] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.

[10] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.

[11] É de ser registrado que, na abertura do 8º Fórum Parlamentar Ibero-Americano, ocorrido em Cádiz, Espanha, aos 24 de outubro de 2012, José Sarney, presidente do Senado Federal, enalteceu o papel da Constituição de Cádiz na formação constitucional brasileira: “Quando falamos em separação dos poderes, em representação popular, em garantias individuais, como a de não ser preso sem ordem judicial, a proibição de tortura e confisco de bens, a inalienabilidade da casa própria, a liberdade de expressão e, na própria noção de soberania, estamos, mesmo sem saber, repetindo os homens que, aqui, no dia 19 de março de 1812, proclamaram ao mundo a Constituição das Liberdades” (Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/24/na-espanha-sarney-reafirma-importancia-da-constituicao-de-cadis. Acesso em 25-10-2012).

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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