Embargos Culturais

Desencanto com o Direito em Manoel Antonio de Almeida

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

28 de outubro de 2012, 7h00

E ainda no século XIX, a propósito de uma imaginária literatura desiludida com o Direito, conhecemos a obra de Manoel Antonio de Almeida. Fino analista da moral social, em Memórias de um Sargento de Milícias Manoel Antonio de Almeida contrapõe à ordem, uma curiosa desordem.

O enredo é simples. Leonardo Pataca conheceu Maria num navio, tendo com ela um filho, também Leonardo, que será enjeitado. O menino, preguiçoso, desordeiro, mais tarde sentou praça na força pública, chegou a sargento. Perfila o herói picaresco. O enredo permite a apresentação de tipos peculiares, como um oficial de Justiça e uma senhora, que não vivia sem demanda. O tema é ambientado no tempo de D. João VI. A obra é sugestiva. Escreveu Massaud Moisés, a propósito do livro:
“O silêncio que lhe cercou o aparecimento em volume constitui apenas um sinal das controvérsias e perplexidades que tem levantado para quantos se abeiraram dela como leitores e críticos.”[1]

Algumas passagens da obra revelam uma visão negativa para com os fatos do Direito. Logo no início do livro, Manuel Antonio de Almeida refere-se aos meirinhos, como então se chamavam os oficiais de Justiça:
“Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos dos tempos do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates de citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.”[2]

A definição de processo que o excerto propõe é severa. Imagina-se um círculo dentro do qual se passam os trejeitos judiciais, numa óbvia e clara alusão ao jargão do foro. Um pouco mais adiante, Manuel Antonio de Almeida descreve, jocosamente, uma citação:
“Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível — dou-me por citado. Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! Eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da relação, e durante o qual se tinha de pagar importante passagem em um sem número de pontos: o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.”[3]

A passagem vislumbra um desencanto. A citação, o dou-me por citado, projetavam na parte um futuro fatal, cruel. O feito se arrastaria por anos, até as últimas instâncias. As despesas com advogados, procuradores, escrivães, vinculavam uma interminável quantia de recursos a serem gastos. O dinheiro para o juiz indicava a peita. O citado tinha prazo para esgotar suas economias, sua paciência. Ao invés de justiça, o processo prometia tempo, gastos.

Leonardo-Pataca, o meirinho da estória, passara uma noite na cadeia. Manuel Antonio de Almeida aproveita a passagem para hostilizar a classe dos oficiais de Justiça, que se mostrariam felizes com a detenção de um concorrente:
“Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vista dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou para falar-lhe. Isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e Leonardo foi mandado para a cadeia. Aparentemente os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo, porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto estava ele preso as partes os procuravam.”[4]

Mais a frente, Manuel Antonio de Almeida descreve uma mulher que amava demandar. Vejamos:
“Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente: as suas demandas eram o alimento da sua vida; acordada pensava nelas, dormindo sonhava com elas; raras vezes conversava em outra coisa, e apenas achava uma tangente caía logo no assunto predileto; pelo longo hábito que tinha da matéria, entendia do riscado a palmo, e não havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que ninguém lhe levava nisso a palma. Essa mania chegava nela à impertinência, e aborrecia desesperadamente a quem ouvia, falando dos últimos provarás que lhe tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras, nas razões finais que se tinham apresentado na ação que intentava contra um dos testamenteiros de seu pai, no depoimento das testemunhas no seu processo por causa da venda das suas casas, na citação que mandara fazer a um seu inquilino que lhe havia passado um crédito de 20 doblas e que agora negava a dívida, e em mil outras coisas deste gênero.”[5]

Mais tarde, falando com um major, D. Maria entabula uma cética e viciada ideia de lei. Eis a passagem:
“— Nem por isso deixa de ser seu filho, tornou D. Maria.
-— Bem sei, mas a lei?
— Ora, a lei… o que é a lei, se o Sr. Major quiser?… O Major sorriu com cândida modéstia.”[6]

D. Maria, de fato, vivia para demandar. Eis mais outra passagem:
“Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse respeito; mas como era coisa que constava de verba testamentária, D. Maria nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria duvidoso.”[7]

Escrevendo em meados do século XIX e captando costumes e ideias de uma geração antes de seu tempo, Manuel Antonio de Almeida construiu interessantíssimo painel que permite possamos captar a ideia que o Rio de Janeiro das classes mais médias e mais simples faziam do Direito.

Desde uma aderência radical, obcecada e por vezes neurótica de D. Maria para com as demandas, o que é uma exceção patológica, até um medo para com todas as partes e pontos no processo, imagem fixada quando Manuel Antonio de Almeida descreveu a citação. Sua visão é pessimista, perspectiva condimentada por sua atuação profissional: ele foi jornalista. Inegável, porém, que Memórias de um Sargento de Milícias é obra que se inscreve entre aquelas que veiculam um desencanto para com o Direito.


[1] Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira, Romantismo, pág. 207.

[2] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 13.

[3] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 13 e 14.

[4] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 27.

[5] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 59.

[6] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 136.

[7] Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, pág. 141.

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