Código de Ética

Lei de Lavagem não se aplica a honorários de advogado

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25 de outubro de 2012, 6h41

O advogado que, no exercício da advocacia, sabendo que seu cliente pretende abrir uma offshore no Panamá para lavar dinheiro, oriundo do tráfico de drogas, presta orientações jurídicas sobre como abrir referida offshore comete o delito de lavagem de dinheiro?

O advogado que recebe e utiliza em sua atividade econômica honorários de um cliente acusado de tráfico de drogas, com conhecimento de que esses valores são provenientes do tráfico de drogas viola o inciso I do parágrafo 2° do artigo 1° da lei de lavagem de dinheiro?

Tratando-se de perguntas técnicas, para respondê-las urge estabelecer algumas premissas, de modo a afastar o senso comum, que é notoriamente incompatível com questões de cunho científico.

Prima facie, poder-se-ia afirmar que as duas condutas narradas além de imorais são criminosas. Com efeito, nos dois casos o advogado estaria se beneficiando com a desgraça alheia. Ora, se um advogado recebe R$ 100 mil de um traficante que só tem esse dinheiro em virtude da prática de crimes, então os seus honorários, ainda que de forma indireta, derivam da desgraça e da ruína do próximo. Certo é, inclusive, que o próprio Direito repudia o tráfico e a lavagem de dinheiro, tanto que essas condutas foram criminalizadas. Ante esse contexto, afirma-se que o advogado deve apenas receber valores lícitos como honorários.

Nesse sentido, o advogado só teria duas opções: ou ele só atenderia clientes inocentes cuja renda fosse manifestamente lícita, ou investigaria se os valores que lhe estão sendo oferecidos pelo traficante possuem origem lícita, considerando a hipótese de que o traficante possa desenvolver paralelamente uma atividade honesta.

Não há dúvida de que essas alternativas estão totalmente de acordo com o senso comum, e provavelmente receberiam aceitação unânime por parte do público em geral. Contudo, é perfeitamente possível sustentar que elas não apenas contrariam a ordem jurídica vigente, como violam os mais basilares princípios éticos, jurídicos e morais.

A começar pelos aspectos éticos e jurídicos, o artigo 21 do Código de Ética da OAB determina que “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.” Embora conste no Código de Ética é fácil verificar que essa norma pode ser considerada, inclusive, como uma norma de direito fundamental atribuída[1], pois deriva do princípio da presunção de inocência.

Com efeito, se a Constituição defende a presunção de inocência, pouco importa a opinião do advogado ou de qualquer outra pessoa sobre a culpa do acusado. A culpa no direito não é constituída por meio de opiniões, ou, tão somente, a partir de dados ônticos, sendo estabelecida apenas e, exclusivamente, depois de realizado o devido processo legal, nos termos dos incisos LIV, LV e LVII do artigo 5° da Constituição Federal.

Esses dispositivos constitucionais consubstanciam princípios comezinhos do Direito, podendo-se afirmar que o legislador apenas poderia ser mais claro sobre o assunto caso viesse a se utilizar de gravuras.

Portanto, não cabe ao advogado investigar se a origem dos honorários é lícita, uma vez que a licitude ou ilicitude do patrimônio de seu cliente presume-se lícita. Inclusive, de notar que a eventual ilicitude do patrimônio apenas será constituída em momento ulterior ao devido processo legal.

E isso por um motivo muito simples: a ilicitude não é um dado ontológico, mas normativo[2]. Para que algo possa ser considerado ilícito, de acordo com a ordem jurídica vigente, pelo menos dois critérios devem ser satisfeitos: deve haver uma norma de comportamento[3] descrevendo qual é a conduta ilícita, e caso existam indícios de que essa norma foi violada, uma vez realizado o devido processo legal, o Estado constitui a ilicitude por meio do reconhecimento de que a conduta praticada é ilícita. Portanto, com base na análise dos fatos institucionais desenvolvida pelo filósofo John Searle, pode-se afirmar que a sentença condenatória tem tanto natureza declaratória quanto constitutiva[4].

Sendo assim, ainda que, a partir de indícios, exista uma opinião sobre a origem ilícita do patrimônio, considerando que a ilicitude ainda não está constituída, não há como existir dolo, pois não se pode conhecer algo que ainda sequer existe!

Por outro lado, cogitar-se-ia sobre a existência ou inexistência do tipo objetivo e do dolo se a lei 9138/98 pudesse ser aplicada ao advogado quando do exercício da advocacia.

Ocorre que referida lei não se aplica aos advogados quando praticam atos vinculados ao exercício da advocacia[5]: e isso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque o advogado é indispensável à administração da justiça[6]. A justiça, por sua vez, apenas pode ser realizada por meio do processo, ou seja, é necessário que exista defesa, acusação e julgamento. Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que exista a presunção de inocência, e que o juiz seja o único soberano a dizer o que é e não é lícito.

Ora, se o advogado presumir, com base em sua opinião, que a origem do patrimônio de seu cliente é ilícita, então ele não está mais exercendo a função de advogado, mas a de julgador. Tão pouco pode o promotor afirmar que a origem de certo patrimônio é ilícita antes do término do processo. O que ele pode fazer é atestar a existência de indícios[7] de ilicitude.

A ordem jurídica blindou o advogado com diversas garantias, pois lhe incumbiu com o árduo ônus de defender a presunção de inocência e o devido processo legal numa sociedade formada majoritariamente por homens leigos, que julgam com base no seu senso comum e, sobretudo, a partir de preconceitos.

Como se sabe, o senso comum e os preconceitos são a principal causa da condenação de inocentes.

Ante o exposto, espera-se que a conduta de presumir a inocência do cliente não venha a ser criminalizada por meio de uma interpretação inconstitucional da lei de lavagem de dinheiro.

Do contrário, a ordem jurídica pátria será transformada num grande circo, sendo que a função de palhaço passará a ser exercida por todos os advogados.


[1] De acordo com Robert Alexy, uma norma de direito fundamental atribuída é uma norma que embora não conste de forma expressa no catálogo de direitos fundamentais está incluída no âmbito semântico de alguma dessas normas. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 72.

[2] Trata-se, em última instância, de um fato institucional que, segundo John Searle, apenas pode existir a partir da atribuição de um status, consoante regras constitutivas. SEARLE, John. Freedom and Neurobiology: reflections on free will, language and political power. New York: Columbia University Press, 2007, p. 82 et.seq. Insta frisar, contudo, que na ordem jurídica os únicos que possuem poder para atribuir o status de ilicitude para um dado da realidade natural são os juízes, tão somente, após a realização do devido processo legal.

[3] Importante não confundir essas normas com aquelas que conferem competência para um juiz exercer a ação institucional de atribuír o status de ilicitude a um dado natural, nem com as que determinam os procedimentos que constituem o devido processo legal. Nesse ponto cabe lembrar o ensinamento de Robert Alexy no sentido de que as ações que constituem exercícios de competência são ações institucionais, ou seja, aquelas que não podem ser exercidas apenas com base nas capacidades do indivíduo, uma vez que requerem a existência de regras constitutivas. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios constitucionales, 1993, p. 231. Lembrando que o conceito de regras constitutivas utilizadas por Alexy é o mesmo utilizado pelo filósofo John Searle.

[4] Consoante explica Cristiano Carvalho, trata-se de um ato de fala com direção de ajuste dupla: “o mero fato de se realizar o ato de fala já altera o estado de coisas no mundo. A direção de ajuste é dupla: palavra-mundo e mundo-palavra, ao mesmo tempo em que o ato corresponde ao mundo, pelo mero fato de sua enunciação (se o declaro casado, você está casado), o mundo ajusta-se ao fato declarado, pois a declaração estabelece um novo status. (…) se o juiz de direito declara que um determinado sujeito cometeu um crime, para fins jurídicos ele cometeu”. (grifo nosso). CARVALHO, Cristiano. Caderno de Direito Tributário 2006. Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Disponível em: http://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/rom_CristianoCarvalho_Web.pdf acesso em: 12/03/2010.

[5] Isso não significa qualquer impunidade, uma vez que se, por exemplo, o Advogado recebe efetivamente 50.000 de honorários, declarando 100.000 com o fim de lavar dinheiro para o seu cliente, não há que se falar em exercício da advocacia. Caso diverso é o do advogado que explica ao seu cliente como abrir uma offshore no Panamá. Ora, da mesma forma que um médico não pode se negar a salvar a vida de um bandido, ainda que saiba que depois de curado irá matar uma família de inocentes, um Advogado não pode se negar a orientar seu cliente a abrir, de forma lícita, uma offshore, ainda que saiba que seu cliente irá utilizar essa offshore para lavar dinheiro do tráfico de drogas. O que é mais importante: a vida de uma família inocente ou um ato de lavagem de dinheiro?

[6] De notar que há entendimento de que o bem jurídico protegido no delito de lavagem de dinheiro é a administração da justiça.

[7] De acordo com Mittermayer apud Tourinho Filho: “o indício é um fato em relação tão precisa com outro fato que de um o juiz chega ao outro por uma conclusão natural. É preciso, então, que haja na causa dois fatos, um verificado e o outro não provado, mas que se trata de provar raciocinando do conhecido para o desconhecido; aplicado ao processo criminal o indício é o fato, circunstância acessória, que se prende ao fato principal, e que por isso concorre para se chegar à conclusão de ter sido cometido o crime, ou de ter nele tomado parte um indivíduo determinado, ou de ter sido o crime consumado deste ou daquele modo. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 631.

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