Direito Comparado

As relações entre a doutrina e a jurisprudência

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

24 de outubro de 2012, 11h07

A decadência da produção da literatura jurídica generalizou-se. Deu-se uma explosão de comentários, anotações e paráfrases a leis e decisões pretorianas. Parece que a grafomania havia chegado para ficar, sem pedir licença à crítica literária ou sem se preocupar com a própria autocontenção dos escritores, em geral ciosos da qualidade de seus textos. Sobre tudo se escrevia e, mais que isso, abusava-se da deturpação de obras mais antigas, com citações capciosas, apresentadas a juízes incultos, “falsamente atribuídas a renovados jurisprudentes do passado”. [1] Os problemas chegaram a tal ponto que se elevaram as vozes contra a deficiente formação dos juristas e a má qualidade da doutrina. De maneira inédita, os governantes resolveram intervir nesse campo e acabar com esses abusos.

O relato contido no primeiro parágrafo não é uma descrição banal e até desnecessária da dogmática contemporânea. O leitor pode tranquilizar-se. A descrição refere-se ao século V d. C, mais precisamente o ano de 426, em pleno Império Romano, na fase do Dominato, ao tempo dos imperadores Teodósio II e Valentiniano III, autores da famosa “Lei das Citações”. O cenário era tão desolador que se tornou imprescindível uma intervenção estatal. Por essa famosa lei, reconheceu-se a autoridade dos jurisconsultos Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino como os únicos cujos fragmentos e escritos poderia ser citados em juízo, como fundamento de petições e sentenças.[2]

À semelhança dos “repositórios autorizados de jurisprudência”, ainda hoje objeto de resoluções dos tribunais, que definem quais periódicos jurídicos podem ser citados para comprovar a fiel transcrição de acórdãos e sentenças em recursos, a norma romana ressalvava “os autores por eles referidos, desde que se trouxesse a fonte original comprobatória da citação”. Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino passaram a integrar o “Tribunal dos Mortos”, “pois se realizava o cotejo de suas opiniões e, no caso de divergência entre elas, prevalecia a tese seguida pela maioria. Se houvesse empate, a opinio de Papiniano preponderaria”.[3]

As relações entre doutrina e jurisprudência, ao que se pode observar dos exemplos históricos, sempre se mostraram problemáticas, especialmente em épocas de crise mais acentuada na formação dos juristas e na diminuição da autocrítica dos escritores.

Mas, como as citações doutrinárias são recebidas e trabalhadas na jurisprudência nos dias atuais? Alexandra Braun produziu curiosos, profundos e, n’alguns momentos, irônicos estudos sobre essa relação entre o Direito dos professores e o Direito dos juízes.[4] Atribuindo-lhe todo o crédito pelas informações a seguir resenhadas, convém expor algumas excêntricas e peculiares “leis de citações” encontráveis no Direito Comparado:

É proibido citar os vivos
Os tribunais da Inglaterra e do País de Gales, até bem pouco tempo, levavam ao extremo uma interessante regra nas citações: era proibido citar autores vivos nos acórdãos. Segundo Alexandra Braun, um certo juiz Gibbs, em uma decisão de 1816, disse que seu entendimento no caso fora bastante influenciado por duas obras jurídicas escritas por pessoas de alta reputação profissional. No entanto, ele deixava de o fazer porque seus autores ainda estavam vivos e, naquele momento, era-lhe impossível citá-los dada essa peculiar circunstância.

Outro juiz inglês, John Francis Donaldson, Barão Donaldson of Lymington, mais conhecido como Lord Donaldson, em uma decisão, fez um comentário pleno de sarcasmo sobre essa regra. Em suas palavras, ele gostaria de citar determinado livro, mas um de seus coautores não poderia ser considerado como uma autoridade doutrinária, dado que ainda está vivo e bem de saúde…

Alexandra Braun apresenta uma série de teses justificadoras desse peculiar comportamento dos tribunais ingleses e galeses. A principal delas, contudo, faz recordar a descrição de idênticos problemas vividos pelos romanos no tempo de Teodósio e Valentiniano: a grafomania. A edição cada vez maior de obras doutrinárias na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX converteu-se em causa de preocupação para os juízes em controlar o modo como esses escritos poderiam influenciar no pensamento jurisprudencial. O fator morte serviria para dar o necessário distanciamento à dogmática e para lhe conferir certa noção de perenidade. Além disso, afastava-se a possibilidade de mudança de opinião, algo muitas vezes inevitável na investigação científica.

Nos últimos 30 anos, contudo, essa situação mudou drasticamente. O respeito às opiniões doutrinárias ultrapassou a barreira distintiva entre autores vivos e mortos. O diálogo entre juízes e os autores de obras técnicas tornou-se mais dinâmico, sendo cada vez mais reconhecido nos acórdãos e nas sentenças o importante papel da dogmática na formulação de soluções novas e na abertura de horizontes teóricos para os casos judiciais. Os magistrados aproveitam-se dos subsídios doutrinários, dando-lhes os necessários créditos e, quando necessário, afastando suas influências de uma maneira respeitosamente crítica.

É proibido citar doutrina
Na Itália, a citação doutrinária é proibida por lei. Nas regras de aplicação do Codice di Procedura Civile, em seu artigo 118, diz-se que o teor do acórdão deve conter uma breve exposição dos fatos relevantes e os fundamentos jurídicos da decisão, seguindo-se as regras jurídicas, os princípios gerais do Direito e, se utilizadas, as razões de equidade. No entanto, “[i]n ogni caso deve essere omessa ogni citazione di autori giuridici” (“em qualquer caso, deve ser omitida qualquer citação de autores jurídicos”).

Trata-se, conforme Alexandra Braun, de uma regra tradicional e muito antiga no Direito italiano. As raízes dessa proibição deitam-se em práticas medievais, como acentua a autora, que davam grande prestígio aos escritos doutrinários e à força dos pareceres de renomados juristas. O problema, e parece ser algo recorrente, é que os abusos também começaram a se sentir, graças ao número cada vez mais significativo de obras e de opiniões jurídicas, muitas delas sem maior rigor ou com posições inconciliáveis.

Atualmente, os tribunais, quando o fazem, mencionam de modo genérico a posição da “doutrina dominante”. Em razão disso, há alguns problemas sensíveis como a ocorrência de “plágio” de ideias desenvolvidas na dogmática e cujos créditos não podem ser atribuídos de maneira honesta a seus autores.

A arte de decifrar acórdãos
Os julgados franceses são conhecidos há muito tempo por seu laconismo. Grandes arestos da jurisprudência, que influenciaram a doutrina mundial, como na responsabilidade civil do Estado ou a perda de uma chance, em sua maior parte, resumem-se a uma ou duas páginas. Os fundamentos raramente mencionam normas jurídicas e a citação de doutrina inexiste. Tamanho poder de síntese é, por vezes, considerado um modelo a ser rejeitado, especialmente pelas cortes da União Europeia, que criticam os acórdãos franceses por seu laconismo, que seria impeditivo de se conhecer das verdadeiras razões que levaram a certo resultado.

Há, nos meios jurídicos franceses, até uma espécie de “arte de decifrar” os julgados, de modo específico, da Corte de Cassação. E, por outro lado, a tradição de crítica da jurisprudência na dogmática é antiga e respeitada. Nas revistas jurídicas tradicionais, há espaço para o desenvolvimento de posições demolidoras de acórdãos e de tendências pretorianas. Os professores e pesquisadores universitários não se pejam em atacar, muita vez com termos incisivos, a jurisprudência e em se utilizar de expressões como o “tribunal errou”, algo impensável para os modelos brasileiros de dogmática e crítica da jurisprudência.

O modo alemão de citar doutrina
Historicamente, o respeito dos tribunais pela doutrina é imenso na Alemanha, apesar de que, como ressaltado em outra oportunidade, mesmo lá se tem assistido a um nítido divórcio entre esses dois campos.[5]

A influência do pensamento doutrinário, a despeito dessa lenta alteração no modelo, ainda é muito relevante e se faz notar pela presença das obras nos acórdãos e, mais que isso, pelos debates intensos entre posições antagônicas na dogmática. Essa interlocução é também muito fértil para a doutrina, que se aproveita de alguns acórdãos para ampliar e dilatar seu campo de aplicação. Muitas figuras jurídicas desenvolvidas na doutrina foram incorporadas pela jurisprudência, que lhes deu uma nova feição e, posteriormente, receberam novos aportes nos escritos jurídicos. Ao fim, o legislador aproveita-se desse fecundo debate e dele se vale para alterar as normas, como se deu com a reforma do Direito das Obrigações.

Conclusões
As transformações profundas na realidade jurídica mundial, especialmente nos últimos 30 anos, têm servido para desfazer algumas “verdades axiomáticas” sobre as diferentes tradições e famílias jurídicas. As linhas divisórias entre o Direito dos professores (de civil law) o Direito dos juízes (de common law) tornam-se bem mais frágeis. O exemplo disso é o aumento da influência da doutrina nas decisões inglesas e seu total repúdio, ao menos de maneira explícita, na Itália e em França. São respostas diferentes para expectativas também díspares sobre o próprio Direito e sua dicção pelos órgãos judiciários.[6]


[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 99, n. 891, p. 65-106, jan. 2010. Disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/OtavioLuiz.pdf. Acesso em 23-10-2012; SANTOS JUSTO, A. Direito privado romano: parte geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos). 3. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2006. v. 1. p. 56 e ss.

[2] MATOS PEIXOTO, José Carlos de. Curso de direito romano: Parte introdutória e geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, t. I. p. 120.

[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. loc. cit.

[4] BRAUN, Alexandra. Burying the living? The citation of legal writings in English Courts. American Journal of Comparative Law, v. 58, p. 27-52, jan. 2010; BRAUN, Alexandra, Professors and judges in Italy: It takes two to tango. Oxford Journal of Legal Studies. v. 26, p. 665-681, dec. 2006;

[5] “Não é o Direito Civil o único campo no qual se observa esse estado de coisas. Um expoente da dogmática criminal alemã contemporânea, como Ingerborg Puppe, denuncia que os tribunais superiores de seu país têm assumido comportamento autárquico em relação à doutrina. O uso de conceitos jurídicos indeterminados, especialmente na distinção entre dolo, culpa e tentativa, serve de biombo para a atitude pretoriana de se evadir do debate com a doutrina e, com isso, exercer de modo arbitrário o ius dicere” (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 99, n. 891, p. 65-106, jan. 2010).

[6] Esse é um debate que começa a se realizar de maneira intensa nos meios universitários, afinal, está-se pondo em causa a própria função da academia no Direito contemporâneo. Confiram-se algumas referências importantes sobre o tema: SILVA E COSTA, José Rodrigo Rodriguez; BARBOSA, Samuel Rodrigues (Orgs). Nas fronteiras do formalismo : a função social da dogmática jurídica hoje. São Paulo: Saraiva: 2010; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise : uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10. ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado,  2011.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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