Direito de Defesa

Lavagem de dinheiro: crime permanente ou instantâneo?

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3 de maio de 2017, 11h15

Definir a lavagem de dinheiro como crime instantâneo ou permanente é essencial para identificar o momento de consumação do crime. Não se trata de uma questão etérea, sem relevância prática, mas de controvérsia importante para fixar a possibilidade de prisão em flagrante e do termo inicial de contagem do prazo prescricional.

Para enfrentar o tema é necessário, antes de tudo, esclarecer que a lei brasileira não tipifica uma modalidade de lavagem de dinheiro, mas diversas formas da prática delitiva, cada qual com suas especificidades e peculiaridades. Daí porque a análise da natureza do crime, se permanente ou instantâneo, exige o estudo de cada uma das diferentes práticas previstas na Lei 9.613/98 em separado.

Da modalidade ocultar e dissimular (Lei 9.613/98, art.1o, caput)

Da descrição típica
A primeira espécie de lavagem de dinheiro é descrita nos seguintes termos, no caput do art.1º da Lei 9.613/98:

Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

O dispositivo descreve dois comportamentos distintos (ocultar e dissimular), aos quais atrela a mesma pena. Trata-se de crime de ação múltipla, com núcleos disjuntivos, de forma que a realização de qualquer das condutas concretiza a consumação.

A questão: os verbos indicam um crime instantâneo ou permanente?

Instantâneo é o crime consumado com a provocação de determinado estado ou resultado, como o furto, o roubo.[1] Permanente é aquele cuja consumação se protrai no tempo, se estende durante um período. São os crimes de gerúndio, que estão acontecendo, como a embriaguez ao volante (art. 306 da Lei 9.503/1997), ou a extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP).[2]

Há tipos penais cuja redação indica de forma clara a natureza do crime, seja pela instantaneidade evidente (ex. furto, art. 155 do CP) ou pela permanência evidente, como ocorre nos crimes de posse (ex. ter em depósito ou trazer consigo drogas – Lei 11.343/2006, art. 33; possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo sem autorização – Lei 10.826/2003).

O mesmo não ocorre em outros tipos penais cuja redação admite interpretações distintas. É o caso daqueles que apresentam o verbo ocultar, como ocorre com o caput do art. 1.º da lei em comento. Pode-se entender a conduta como crime permanente, como uma consumação contínua, que não cessa enquanto o bem permanecer oculto. Por outro lado, é possível interpretar o ato de esconder como um delito instantâneo, consumado no momento da ocultação ou dissimulação, e entender a manutenção desse estado como mera consequência natural da conduta original. O crime se consumaria com a ação de ocultar, sendo a manutenção da ocultação um efeito permanente do comportamento inicial.

A solução do problema, a nosso ver, exige um labor de interpretação teleológica, sob a ótica do bem jurídico protegido.

Existe grande controvérsia sobre o bem jurídico protegido pela norma penal que veda a lavagem de dinheiro, mas, a nosso ver, trata-se de crime contra a administração da Justiça [3].

Pois bem, a busca da natureza do crime de lavagem exige portanto, uma visita aos demais delitos contra a administração da Justiça previstos na nossa lei. Vários deles indicam condutas de consumação instantânea cujos efeitos são permanentes, e nem por isso são considerados pela doutrina ou jurisprudência delitos de natureza permanente.

Tomemos como paradigma inicial o crime irmão da lavagem de dinheiro: o favorecimento real.

Art.349. Prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito de crime”

Trata-se de crime bastante similar à lavagem de dinheiro, pois o ato de tornar seguro o proveito do crime supõe uma ocultação do mesmo, afetando a administração da Justiça.

Tal delito é considerado pela doutrina crime instantâneo [4].

Ora, se a ocultação prevista no crime de favorecimento real é caracterizada pela instantaneidade, o mesmo tratamento merece o crime de lavagem de dinheiro, uma vez que inexiste distinção qualitativa entre eles.

O mesmo ocorre com o crime de falso testemunho (art. 342 do CP). O tipo penal indica, dentre outros, o ato de calar a verdade, que não tem outro sentido distinto de ocultar a verdade, aproximando-se do verbo “ocultar” usado no caput do art.1º da Lei de Lavagem de Dinheiro.

Trata-se de um ato de mascaramento que afeta de forma permanente a administração da Justiça. No entanto, o delito é classificado pacificamente como instantâneo pela doutrina [5]

Em suma, se a ocultação de bens do favorecimento real e a ocultação da verdade no falso testemunho se consumam no instante da conduta – ainda que a afetação da administração da Justiça se alongue no tempo – o mesmo tratamento merece o delito de lavagem de dinheiro na forma ocultar ou dissimular.

Portanto, uma interpretação sistemática e teleológica aponta para a natureza instantânea do  crime de lavagem de dinheiro, na forma do caput do art. 1º da Lei 9.613/98.

Da possibilidade de cessação dos efeitos
A despeito do exposto, há quem sustente que os crimes permanentes se caracterizam pela criação de um estado de coisas antijurídico resolúvel pelo agente. Em outras palavras, sempre que o autor do delito puder interromper a permanência, a afetação do bem jurídico, por sua vontade, haverá um crime permanente.

Nesse sentido, como na lavagem de dinheiro o autor da ocultação teria à sua disposição o poder de desocultar, de revelar o bem ou seus atributos, o delito teria natureza permanente.

Não parece a melhor posição.

Fosse a capacidade de restituição do status quo ante o elemento definidor dos crimes permanentes,[6] delitos como o furto também teriam essa natureza, pois o autor pode a qualquer tempo devolver os bens e fazer cessar a lesão patrimonial[7]. O mesmo pode ser dito dos já mencionados crimes contra a administração da Justiça. Porém, essa reversibilidade dos efeitos não é suficiente para que tais delitos sejam caracterizados como permanentes.

O que define o crime permanente, portanto, não é a possibilidade de cessação dos efeitos da conduta inicial por parte do autor, mas o alongamento da consumação no tempo [8] Na extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP) ou na redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) há uma continuidade da situação antijurídica que não decorre apenas da manutenção do status quo, mas da continua afetação do bem jurídico por atos reiterados do agente delitivo. Há um esforço permanente para submeter o objeto jurídico ao domínio do autor, que tem controle total não apenas sobre a cessação dos efeitos, mas sobre o contexto de antijuridicidade.

Em outras palavras, não basta que do ato decorram efeitos permanentes. Para que exista o crime permanente é necessária uma consumação permanente. A compressão do bem jurídico devem exigir um esforço, uma vigilância constante, para além da mera inércia. Um gasto de energia, ainda que menor do que aquele despendido no ato inicial. Uma coisa é a extorsão mediante sequestro, onde a manutenção do estado de privação de liberdade exige uma atenção constante, que revela uma continua consumação do crime. Outra é o falso testemunho, onde o agente oculta a verdade, e os efeitos nocivos de seu ato perduram no tempo independentemente de seus esforços ou vigilância. No primeiro caso, o crime é permanente. No último, é instantâneo, de efeitos permanentes.

No crime de lavagem de dinheiro – na forma do caput do art.1º da Lei em comento – basta a ocultação para que o delito esteja consumado. Não se faz necessário o acompanhamento ou a manutenção do mascaramento, ou mesmo sua reinserção na econômica. Os atos de ocultação e dissimulação criam um estado de coisas que se desliga do ato inicial, porque para sua manutenção não é necessário um esforço, um gasto de energia adicional – embora ele possa ocorrer em determinados casos.

Da equiparação à ocultação de cadáver
Por fim, resta enfrentar um último argumento: a comparação da ocultação prevista no tipo penal em comento com a ocultação de cadáver (art. 211 do CP), de ocultação de documento (parte do art. 305 do CP) ou de receptação na modalidade ocultação (art.180 do CP), todos considerados crimes permanentes pela doutrina e jurisprudência.

A nosso ver, a distinção entre a lavagem de dinheiro e os crimes mencionados encontra-se na própria redação legal. O art.1º caput da Lei 9.613/98 não descreve um ato de ocultação de bens mas de certas características destes bens. Pune-se o escamoteamento da origem, propriedade, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos objetos de origem ilícita, e não do objeto em si.

Assim, aquele que furta uma obra de arte e a expõe a público, com um certificado de origem falso, pratica o ato de lavagem de dinheiro. Ainda que o objeto não esteja oculto – ao contrário, está exposto – o delito está consumado porque sua origem foi mascarada pela fraude documental. Portanto, a ocultação refere-se a um atributo do bem – sua origem – sendo irrelevante se o bem em si está escondido ou às vistas. Evidente que na forma de mascarar a localização o bem se torna – em regra – oculto em si. Mas nas demais modalidades não há necessariamente um encobrimento do produto do crime. O que importa é verificar se alguns de seus atributos foram suprimidos ou alterados, possibilitando uma futura reinserção do bem na econômica com aparência de legalidade. E tal supressão ou alteração é ato instantâneo, embora seus efeitos possam perdurar no tempo.

Pelo exposto, seja pelo bem jurídico protegido, seja pela ausência de esforço para a manutenção dos efeitos da conduta, seja pela redação do tipo legal, conclui-se que a lavagem de dinheiro, na modalidade prevista no caput do art.1º da Lei 9.613/98, é crime instantâneo.

A análise dos demais dispositivos será apresentada na Parte 2 do presente estudo.


1 Roxin, Claus. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Madrid: Thomson/Civitas, 2006. t. I. p. 329. Para Reale Jr., os crimes permanentes são aqueles nos quais a situação lesiva perdura no tempo, protraindo-se a situação antijurídica, com o aumento do prejuízo originado pelo fato. (Reale Jr., Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.270).

2 Santos, Juarez Cirino. Manual de direito penal. Parte Geral. São Paulo: Conceito, 2011. p.55.

3 BOTTINI, Pierpaolo Cruz e BADARÓ, Gustavo, Lavagem de dinheiro, 3a edição, São Paulo: RT, 2016, p.89. No mesmo sentido: Bacigalupo, Enrique. Estudios comparativos del derecho penal de los Estados Miembros de la Unión Europea sobre la represión del reciclaje o blanqueo de dinero ilícitamente obtenido. España en la Europa Comunitaria: Balance de diez años, 1995. p. 451; De Grandis, Rodrigo. O exercício da advocacia e o crime de lavagem de dinheiro. In: DE CARLI, Carla Veríssimo (org.). Lavagem de dinheiro. Prevenção e controle penal. p. 123; MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 58, embora também aponte os bens jurídicos violados nos delitos antecedentes como afetados pela lavagem de dinheiro; Podval, Roberto. O bem jurídico do delito de lavagem de dinheiro. RBCCrim, vol. 24, p. 209-222. São Paulo: Ed. RT, out/1988. p. 221; Antolisei, Francesco. Manuale di Diritto Penale. Parte Speciale I. 12. ed. Milano: Giuffrè, 1991. p. 376.

4 Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 13. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 1285, Greco, Rogério. Código Penal: comentado. 2 ed. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p. 845, Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado direito penal, 5: parte especial: dos crimes contra a administração pública, dos crimes praticados por prefeitos. 4. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 389. Para Prado, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 998 “Consuma-se o delito com a prestação do auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime, ainda que esse escopo não seja efetivamente alcançado.” Noronha, E. Magalhães. Direito penal, v.4. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 524,

5 Noronha, E. Magalhães. Direito penal, v.4. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 494, sem grifos. No mesmo sentido, Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 1269; Greco, Rogério. Código Penal: comentado. 2 ed. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p. 829; Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado direito penal, 5: parte especial: dos crimes contra a administração pública, dos crimes praticados por prefeitos. 4 ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 340. Para Prado, “Consuma-se o delito com o encerramento do ato processual do depoimento, ou com a entrega do laudo pericial, do cálculo, da tradução, ou com a realização da interpretação falsa. Faz-se mister que o depoimento seja efetivamente concluído – reduzido a termo e devidamente assinado (art. 216, CPP). Até então, pode ele ser retificado ou alterado pelo depoente, o que pode impedir a consumação da falsidade.”. Prado, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 977.

6 Garcia, Basileu. Instituições de direito penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. vol. I, t. I. p. 324; Bettiol, Giuseppe, Direito Penal. São Paulo: Ed. RT, 1971. vol. I.

7 Para Herzberg, o furto tem como seu elemento central a ruptura da posse e não a manutenção da coisa alheia, (in Gómez-Aller, Jacobo Dopico. Omission e injerencia em Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2006. p.443). No mesmo sentido, Bartoli, Roberto. Sulla strutura del reato permanente: un contributo critic. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Pebale, Milano, v.4, n.1, p.137-176, jan/mar 2001, p.145.

8 Bitencourt aponta a “continuidade da ação do agente” como elemento diferenciador do crime permanente do crime instantâneo de efeitos permanentes (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 255).

Spacca
Pierpaolo Bottini [Spacca]

 

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