Non liquet!

Quando há empate, absolvição deve ser decretada

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22 de outubro de 2012, 13h20

O empate verificado na votação proferida pelos ministros do STF no julgamento da Ação Penal 470 (o chamado caso mensalão), no tocante à acusação da prática de determinados delitos formulada contra alguns dos acusados, tem suscitado aceso debate sobre qual será o equacionamento final do impasse, gerado por temporário desfalque na composição do tribunal, já que, dos onze que o integram, apenas dez ministros participam do Plenário. O quorum deficitário se deveu à recente aposentadoria de um de seus ilustres membros. Ocorreu que cinco ministros votaram pela condenação e outros tantos pela absolvição desses imputados, restando configurados o empate e o impasse. Em tal cenário — indaga-se — qual deverá ser a solução final da causa?

No sistema brasileiro, o órgão judicante, singular ou plural, não pode se eximir de proferir decisão concludente — seja definitiva, seja terminativa — e não solucionar a demanda. Por isso que os colegiados são providos sempre em número ímpar, de sorte a se evitar a possibilidade de se contarem votos em números iguais e sentidos opostos. Na Roma Antiga, o pretor tinha a faculdade de, entrando em estado de perplexidade, determinado por dúvida insuperável em face do conflito das provas, proferir o non liquet (expressão abreviada da fórmula juravi mihi no liquere, atque ita judicatu illo solutus sum, ou, em tradução livre, “jurei que o assunto não estava claro, e me afasto, em consequência, daquele julgamento”). Assim julgou o magistrado Aulo Gélio ao apreciar intrincada e complexa demanda, sobre a qual não logrou formar segura convicção, certeza estreme de dúvidas.

Modernamente, tal não se permite aos juízes, que jamais podem se omitir de proferir a decisão, em um ou outro sentido, obrigados que estão à entrega da prestação jurisdicional, dever do Estado. No juízo penal, no entanto, essa vedação recebe diversos contornos, ensejando outras consequências já que o que está em jogo é a liberdade humana, valor supremo na axiologia dos povos civilizados. Nesta esfera, se a prova colhida não permitir ao julgador formar juízo seguro sobre a culpa do réu, em percepção isenta de dúvida razoável, deve proclamar esse mesmo non liquet, mas com o sentido de absolver o réu, cuja culpa ou inocência não se logrou garimpar. Nessa acepção contemporânea, em vez de se afastar do processo como fazia o juiz romano, impõe-se ao julgador a proclamação da não-formação da culpa, mesmo que incomprovada a inocência. E a absolvição do réu tem de ser decretada, como corolário do prudente e sábio in dubio pro reo (na dúvida, decide-se sempre em favor da liberdade, é dizer, em favor do réu).

Ora, em um julgamento colegiado, em que pontificam vários juízes, não pode haver materialização mais perfeita e acabada do estado de dúvida sobre a culpa ou inocência do acusado do que o empate dos votos proferidos pelos componentes da turma julgadora: metade da pluralidade declara a culpa e a outra metade proclama a inocência! Aí está configurada, em quintessência, a insuperável hesitação que autoriza o in dubio pro reo, exigência da civilização e da cultura das sociedades livres.

Por tais motivos, parece inadequado se falar, no caso, em “voto de minerva” (no empate, o presidente da corte a votar duas vezes), situação anômala que, para começar, implicaria a sobrevalia do poder de decisão de um dos membros em relação a seus pares.

O Regimento Interno do STF, em dispositivos distintos (artigos 146, parágrafo único, e 150, parágrafo 3º), dispõe que, em matéria criminal, ocorrendo empate prevalecerá a decisão “mais favorável ao paciente ou réu”. Apresenta-se, por isso, incabível que, em tal situação de equivalência de decisões condenatórias e absolutórias deva o colegiado, em tema criminal, aceitar que um de seus membros tenha o poder de, escoteiramente, solver a suprema contradição, máxime contra a liberdade. Nesse caso, inevitável o non liquet que favorece o acusado.

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