Constituição e Poder

A confusão metódica e as decisões judiciais

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22 de outubro de 2012, 12h52

Spacca
O Direito como um todo e o Direito Constitucional em particular, como se sabe, vivem uma grave crise quanto aos métodos de fundamentação dos problemas jurídicos[1]. Para além da doutrina, em todo mundo, cresce a desconfiança com a capacidade dos tribunais, sobretudo das Cortes Constitucionais, de estabilizar metodologicamente os processos de interpretação e de aplicação de normas jurídicas as casos dispostos à sua consideração.

Mais do que isso, diante das muitas incertezas e da evidente complexidade do Direito Constitucional contemporâneo, parece manifestar-se com preocupante frequência uma permanente transposição de planos entre, de um lado, a esfera de alcance (Gewinnung) e de aplicação (Anwendung) de premissas jurídicas aos casos concretos — esfera própria de atuação do juiz — e, de outro, a esfera de legitimação política (Legitimation) e justificação (Rechtfertigung) moral das próprias premissas — esfera que deveria ficar restrita à decisão do legislador[2].

Tudo isso explica, segundo Martin Kriele, porque o tom que marca boa parte da nova literatura jurídico-constitucional, sobretudo quando tem que enfrentar problemas metodológicos, seja mesmo o de mal-estar e de resignação. De fato, não sem razão, cresce a impressão de que, mediante artimanhas metódicas, confere-se cada vez mais espaço à vontade subjetiva dos juízes e de que se está contra isso cada vez mais desamparado (hilflos) e impotente (ohnmächtig)[3].

Não deixa de ser irônico, pois, que no passado, para escapar a problema de mesma natureza, mas certamente de menor dimensão, Hans Kelsen tenha recorrido, e com algum sucesso, precisamente, ao conhecido postulado da pureza metódica. Nos tempos que correm, contudo, pela indiscutível grandeza e gravidade do problema, o receio é que não tenhamos uma reposta que se mostre tão simples, já que a investigação sobre os métodos, e nisto a ironia, ao invés de solução, parece preferir juntar-se aos problemas.

Também refletindo sobre a relação entre método, praxis e teoria jurídica, Karl-Heins Ladeur acusa um empobrecimento teórico no âmbito do Direito Constitucional em favor de uma predominância quase incontrastável daquilo que vêm produzindo os tribunais constitucionais. Neste quadro, chega à conclusão de que um bom título sobre a discussão teórico-constitucional em seu país (Alemanha) seria a frase meio resignada, meio admirada, de Th. J. Lowi (referindo-se à ciência política americana): Como nós nos tornamos aquilo que nós estudamos[4]. No contexto da doutrina e mesmo de boa parte da teoria constitucional produzida atualmente, a frase bem poderia ser assim deduzida: Como nós nos convertemos naquilo que os tribunais decidem.

No caso, a queixa de Ladeur dirige-se, sobretudo, a certa abertura (talvez o mais correto seria indeterminação) metodológica por ele divisada na praxis das decisões constitucionais, consistente, sobretudo, na ausência de crítérios[5] nos juízos de ponderação e na ideia de Constituição e legislação aberta que lhe serve de base, ou seja, uma Constituição e uma ordem jurídica que, de forma flexível, se adapta aos temas formulados pela sociedade através do mandado de compatibilização. Tudo isso, segundo o autor, tem-se precipitado na ciência constitucional sob a forma daquele empobrecimento teórico[6] a que se fez refência.

Aqui, talvez, uma crítica mais pertinente e produtiva deveria dirigir-se menos à própria ideia de ponderação, ou de Constituição aberta, como visualizadas pelo autor, e mais contra a forma irrefletida e passiva com que boa parte nas inovações promovidas pelas Cortes Constitucionais têm sido recebidas pela doutrina tradicional.

Neste contexto, segundo M. Kriele, expressões de forte apelo público como Estado Judicial (Justizstaat), Estado dos Juízes, justicialização do Estado e da política, poder de tutela dos juízes, usurpação e hipertrofia do poder da Justiça, apenas vêm justificar a reclamação frequentemente sugerida de que os limites constitucionais do poder dos juízes tornam-se, progressiva e perigosamente, mais amplos. Alguns entendem ainda possível um recuo nesse caminho, outros apenas se mostram, como se disse, resignados[7].

Tudo isso acresce de preocupação quando se sabe que o objeto e finalidade da discussão metódica são em primeira linha a limitação — e, se possível, a eliminação — do arbítrio dos sujeitos encarregados da interpretação e aplicação da Constituição, pois, nos limites do possível, obviamente, é a Constituição e as leis, e não a vontade daqueles que têm a tarefa de aplicar o direito, que devem ser concretizadas (Kriele). Para essa finalidade são dispostas regras que devem tanto orientar o processo jurídico de reflexão como separar as formas legítimas da argumentação jurídica daquelas que são julgadas ilegítimas. Que a multiplicação dessas regras e métodos possam, incrivelmente, estar contribuindo para uma maior indeterminação e até crescimento da discricionariedade (às vezes, convertida em arbítrio) nas decisões judiciais é apenas mais um dos paradoxos da contemporaneidade.

De fato, se a busca por restrições ao arbítrio judicial, através de uma teoria sobre métodos jurídicos corretos e errados, pode apenas ser considerada como alcançada na medida em que regras metódicas possam ser reconhecidas e observadas com regularidade, tudo, então, parece indicar que estejamos entrando num buraco sem fundo, o qual, quanto mais é explorado e aberto por entusiastas da metódica, tanto mais se torna profundo, obscuro e, o que é pior, distante do objetivo inicialmente buscado. Não se pode negar que é absolutamente preocupante que, legitimada pelas mais variadas metódicas, em situações concretas, a jurisprudência dê-se a liberdade de determinar se a regra de fundamentação serve ou não aos resultados pretendidos[8]. Pior ainda é intuir que, em tais situações, muito provavelmente, não sejam regras metódicas que conduziram à decisão, mas, a decisão, alcançada de forma diferente, que tenha orientado a escolha do método. A questão metódica mais incômoda, no entanto, é saber se tudo isso pode mesmo ser diferente.

Sem querer nem poder dar uma resposta a uma questão tão complexa, que ultrapassa em grande medida os limites desta coluna, há, contudo, que se concordar com M. Kriele, quando afirma que a liberdade dos juízes decorre em grande parte, paradoxalmente, da forma prodigiosa com que se vem travando a discussão metódica e, em consequência disso, do fato de existirem vários métodos que, em maior ou menor medida, são considerados respeitáveis e que, também por isso, acabam conquistando defensores na doutrina do Direito Constitucional e do Direito Eleitoral.

Esse grau de indeterminação metódica[9] dificilmente será reduzido, causando uma impressão desconfortável de que o esforço teórico por um método jurídico-constitucional se apresente como algo quixotesco. Para ficar apenas em um dos problemas da questão metódica, é compreensível, pois, que a falta de clareza quanto à posição de cada um dos clássicos Cânones de interpretação, por exemplo, tenha levado a um pensador como Josef Esser a declarar a metodologia jurídica simplesmente como sem valor (wertlos)[10].

Por tudo isso, Martin Kriele revela a impressão de que, aos defensores de uma determinada orientação metódica, parece apenas restar a esperança de formação de uma Escola ou a manutenção da tradição daquelas já existentes, uma vez que, no melhor dos casos, eles apenas podem esperar que, com o passar do tempo, um maior número de seguidores reforcem a sua posição teórica, de onde partam para decidir vinculadamente sobre interpretação das leis e, com isso, confirmem, então, em todas as suas decisões, a sua adesão àquele método[11].

Por outro lado, não se pode esquecer que outras dificuldades decorrem do fato de os diferentes métodos jurídicos filiarem-se a diversas orientações condicionadas politicamente. Como se sabe, a Constituição e o Direito pretendem revelar uma estabilidade fundamental, consistente em normas jurídicas que, no máximo possível, se subtraiam à disputa de posições políticas contrárias. Assim, apenas poderiam ser consideradas corretas aquelas teorias da interpretação jurídica que concretizem o máximo possível as decisões da própria ordem jurídica sem a influência de opiniões, julgamentos ou posições políticas. Todas essas teorias têm a pretensão de estar cumprindo essa exigência e de conseguir determinar o método apenas pela neutralidade da correção científica. Porém, não é difícil notar que, apesar da neutralidade científica prometida, as diferentes orientações axiológicas que têm curso em qualquer área do Direito e, em especial, no Direito Constitucional, acabam ganhando maior facilidade de tráfego precisamente pela existência de diversas escolas e tradições metódicas no âmbito do Direito.

No centro dessas tradições, para ficar no exemplo eloqüente de M. Kriele, estão sempre presentes — consciente ou inconscientemente — antigas controvérsias políticas. Apesar, pois, da neutralidade científica acalentada em todos os discursos metódicos que atravessam o Direito Constitucional e o Direito Eleitoral, podem ser observados, ao menos em suas linhas gerais e tendências, alguns sensos comuns teóricos que orientam e revelam as diversas concepções sobre a aplicação da Constituição. Como exemplos desses sensos comuns teóricos podem ser referidas aquelas orientações designadas por Martin Kriele como amiga do Poder Executivo (verwaltungsfreundliche), uma outra amiga ao Poder Legislativo (parlamentsfreundliche) e, mais recentemente, mas não com menos força, uma orientação amiga do Poder Judiciário (justizfreundliche)[12].

Pode-se dizer que, sob o domínio das modernas Constituições, o poder das tradicionais frentes de oposição Executivo-Legislativo já se encontra relativizado pela presença de uma terceira posição: a do Poder Judiciário. Contudo, como acima se registrou, não há nada que nos ponha confiantes quanto ao fato de que a maior predominância dos métodos próprios do Poder Judiciário, no âmbito de aplicação de normas constitucionais, nos possa colocar a salvo de posições mais racionais e menos ideológicas[13]. Na verdade, para finalizar, enquanto as Cortes, em todo mundo, e no Brasil em especial, vão tornando confusos e indistintos os métodos de aplicação do Direito, o que de pior pode acontecer é acentuar-se em demasia qualquer grau de autoconfiança metódica ou discursiva.


[1] Adiante reproduzo algumas notas retiradas de minha tese de doutoramento, que, no ponto, tiveram como base as preocupações de dois grandes expoentes da teoria e da dogmática constitucional contemporâneas: Martin Kriele e Karl-Heins Ladeur.

[2] Para evitarem-se confusões, quando se fala em justificação ou fundamentação da sentença judicial, está-se quase sempre a falar da justificação e fundamentação da própria decisão jurisdicional. O juiz, portanto, tem como tarefa justificar a sua aplicação de premissas normativas escolhidas, e não as premissas mesmas.

[3] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 37.

[4] K-H Ladeur, Postmoderne Verfassungstheorie, p. 304, in Preuβ, Ulrich K (hg). Zum Begriff der Verfassung: die Ordnung des Politischen. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1994, 335 p.

[5] K-H Ladeur. Kritik der Abwägung in der Grundrechtsdogmatik.Tübigen: Mohr Siebeck, 2004

[6] K-H Ladeur, Postmoderne Verfassungstheorie, p. 304.

[7] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 37.

[8] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 25.

[9] Acentuando a diferença entre metódica e metodologia, demonstrando aquela mais abrangente do que essa, F. Muller afirma que a Metódica Jurídica não é uma lógica jurídica formalTambém não é ela orientação para técnica de solução de casos. Ela é definitivamente algo diferente de uma metodologia própria de Escolas, no sentido de uma representação de posições metodológicas na ciência do Direito.Uma metódica tem a tarefa de esclarecer, em princípio, as diversas funções de realização do Direito (legislação, administração, jurisdição, ciência) a estrutura da concretização das normas relacionadas ao caso concreto: Ela investiga o trabalho prático dos que têm a função. (…) A metódica jurídica tem o modo de trabalho diário dos juristas como conceito. Ela é técnica de decisão e técnica de imputação sob a exigência (para justificar) de vinculação a uma norma jurídica geral.Ela se refere à formação de normas de decisão para o caso jurídico e sua justaposição a uma norma jurídica assim como dessa (norma) ao texto normativo válido de forma positiva ou ao direito costumeiro; confira-se em F. Muller. Juristische Methodik, p. 25/29. Já, segundo o mesmo autor, a metodologia jurídica tem âmbito de atuação mais restrito, sendo comumente compreendida no sentido da totalidade de regras práticas (Kunstregeln) de interpretação referidas a textos legais, como, por exemplo, a interpretação gramatical ou sistemática, processos de analogia e assemelhados; F. Muller. Juristische Methodik, p. 29.

[10] Josef Esser. Vorverständnis, (nota de rodapé 95), p. 7, apud Arthur Kaufmann. Das Verfahren der Rechtsgewinnung, p. 94.

[11] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 26.

[12] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 27.

[13] M. Kriele. Theorie der Rechtgewinnung: entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, p. 27.

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