Observatório Constitucional

STF e Senado no controle de constitucionalidade

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

20 de outubro de 2012, 8h00

Há praticamente três meses a pauta do Plenário do Supremo Tribunal Federal é integralmente ocupada pelo julgamento do mensalão. Enquanto isso, centenas de casos mais afeitos à função de um Tribunal Constitucional deixam de ser examinados. Dentre eles, permanece inconcluso o julgamento da Reclamação 4.335, que pode modificar a compreensão que se tem hoje dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal e da obrigatoriedade ou não de os juízes e tribunais se vincularem às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade.

Na Reclamação 4.335 (Rcl 4.335), a Reclamante — Defensoria Pública do Acre — postulou, em benefício de vários reeducandos presos, a cassação da decisão do juiz responsável pela execução penal que negara a progressão de regime com fundamento no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90, por serem esses reeducandos condenados pela prática de crimes hediondos.

A Defensoria Pública alegou que o juiz desrespeitou a autoridade da decisão proferida pelo STF nos autos do HC 82.959[1], em que, por maioria de 6 a 5, foi reconhecida a inconstitucionalidade incidenter tantum do mencionado dispositivo legal que vedava a progressão de regime dos condenados por prática de crimes hediondos.

No entender da Defensoria Pública, o juiz de primeira instância não poderia negar cumprimento à decisão do STF, ainda que tenha sido ela proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade.

É nessa perspectiva que surge, no julgamento da Rcl 4.335, o debate sobre o significado do inciso X do artigo 52 da Constituição, no atual contexto constitucional. Indaga-se se ainda compete ao Senado Federal estender os efeitos da declaração de inconstitucionalidade pronunciada pelo STF em controle difuso de constitucionalidade, ou se sua função se limitaria a dar mera publicidade ao que fora decidido pelo STF, decisão essa cujo efeito vinculante e eficácia erga omnes seriam consequência natural da autoridade do órgão que a pronunciara.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento desse caso em 1º de fevereiro de 2007. Nessa ocasião, o relator, ministro Gilmar Mendes, conheceu da Reclamação[2] e, no mérito, votou pela sua procedência. No entender do ministro Gilmar Mendes, o efeito vinculante e a eficácia erga omnes da decisão do Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle de constitucionalidade, decorrem mais da autoridade do STF, como Tribunal Constitucional, do que do veículo no qual suas decisões são proferidas. Nesse particular, fala o ministro Gilmar Mendes do processo de objetivação do controle de constitucionalidade, que, no seu entender, traz repercussões no papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade, ante a ocorrência de mutação constitucional. Dessa forma, não se faria hoje mais necessária a edição de decreto pelo Senado Federal para suspender a lei declarada inconstitucional no controle difuso de inconstitucionalidade. Ao Senado, quando muito, caberia dar publicidade a essa decisão.

Esse entendimento foi acompanhado pelo ministro Eros Grau. Dele divergiram os ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. O julgamento se encontra suspenso desde 19 de abril de 2007, ante o pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski. Desde 10 de fevereiro de 2011, os autos foram devolvidos para julgamento, aguardando sua inclusão na pauta temática do Plenário.

Como se vê, o STF pode vir a adotar o entendimento de que, no atual estádio do controle de constitucionalidade, não remanesceria mais para o Senado Federal a função de revogar os efeitos da norma declarada inconstitucional pelo tribunal, pois tal efeito seria inerente à decisão emanada pelo tribunal no exercício do controle de constitucionalidade.

A prevalecer o voto do ministro Gilmar Mendes, o STF concluirá que, independentemente da via em que a jurisdição constitucional é exercida, as suas decisões devem ser dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante.

Põe-se em debate, portanto, a possibilidade de dotar as decisões proferidas pelo STF no controle difuso de constitucionalidade da mesma eficácia daquelas proferidas em controle concentrado, dispensando-se a participação do Senado Federal. Fácil perceber que o caso provoca a discussão sobre o sentido da distinção entre os controles difusos e concentrado de constitucionalidade e sobre a relevância do Senado Federal para a realização da jurisdição constitucional.

Muitas são as questões que esse tema suscita. Uma delas, que até o momento não foi objeto de reflexão pelo tribunal, diz respeito ao prejuízo ao contraditório específico da jurisdição constitucional que poderia advir da iniciativa de conferir efeito vinculante e eficácia erga omnes à decisão proferida no HC 82.959. Nessa linha, cabe indagar: Atribuir efeito vinculante àquele julgado não demandaria que tivesse ele se submetido a outra espécie de contraditório, típico do controle concentrado?

Em nosso entender, a atribuição, pós-julgamento, de eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão proferida em controle difuso importa em efetivo prejuízo ao contraditório e ao procedimento típicos do controle concentrado de constitucionalidade.

É sabido que o controle concentrado de constitucionalidade é composto por um procedimento especial, conformado para permitir um contraditório que permita uma apreciação abrangente a respeito da constitucionalidade da norma. Na tramitação da ADI, a Constituição previu, desde sempre, a necessidade de oitiva do Ministério Público (que, apesar de ocorrer em vários processos em tramitação no STF, tem outra envergadura no controle concentrado) e da Advocacia-Geral da União (essa última, a defender, em princípio, a constitucionalidade da norma) (art. 103, §§ 1º e 3º, da CF). Além disso, o STF tem admitido (e prestigiado) a pluralização do debate constitucional com o ingresso dos amici curiae. Por fim, não se pode desprezar o efeito mobilizador que a simples divulgação da notícia de julgamento, em controle concentrado, da norma que trata da progressão de regime traria, em vista da dimensão de “tudo ou nada” dessa espécie de julgamento e da repercussão do assunto (que envolve questões atualmente sensíveis, relacionadas à segurança pública e aos direitos humanos).

Em vista dessa diferença de procedimentos, seria natural que surgissem as seguintes perguntas: Será que a mobilização da sociedade e dos órgãos constitucionalmente incumbidos de manifestar-se no controle concentrado não poderia ter modificado o julgamento do HC 82.959 (que considerou inconstitucional a norma penal por apertada maioria)? Independentemente do resultado do julgamento, poder-se-ia dizer que a não participação dos órgãos constitucionalmente responsáveis pelo contraditório do controle concentrado não traduziria uma espécie de nulidade no julgamento, se a ele se pretender atribuir a eficácia erga omnes e efeito vinculante?

O fato é que, na Rcl 4.335, se cogita emprestar eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão proferida no HC 82.959 sem que o procedimento adequado para tal consequência tenha sido observado.

Essa pode ser uma evidência de que ainda há sentido em condicionar a extensão dos efeitos da decisão do STF proferida no controle difuso de constitucionalidade ao pronunciamento do Senado Federal, conferindo uma espécie de legitimidade político-constitucional à decisão que não poderia ser suprida pelo rito de julgamento. Além da questão da legitimidade, há uma discussão sobre os efeitos do controle de constitucionalidade nos dois modelos. O decreto do Senado Federal que suspende a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF tem efeito ex nunc, o que só pode acontecer no controle concentrado feito pelo STF se houver o voto de no mínimo 8 dos 11 ministros, nos termos do artigo 27 da Lei 9.868, de 1999.

Em vista disso, parece-nos precipitada a decisão de retirar a importância do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, não tanto por discordar-se da proeminência do STF no controle de constitucionalidade no atual contexto constitucional, mas porque essa leitura pode depor contra a legitimidade do exercício da jurisdição constitucional, que exige, no mínimo, a ampla participação da sociedade.

Quando menos, a intenção de o STF atribuir às decisões de controle difuso de constitucionalidade os efeitos do controle concentrado demandaria, por parte da Corte, expressa deliberação prévia nesse sentido, antes de iniciado o julgamento do caso, para que o rito pudesse observar o contraditório próprio dessa modalidade de controle. De fato, em vista de deliberação da espécie, haveria o STF de viabilizar a mobilização e a participação da sociedade e dos entes legitimados na defesa do ato impugnado, como sói acontecer no controle concentrado. Isso porque os efeitos das decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional, não podem decorrer apenas da autoridade da Corte, como Tribunal Constitucional, mas do procedimento que legitima suas decisões.

Essa análise, feita com base em elementos concretos do julgamento do HC 82.959 e da Rcl 4.335, demonstra, em nossa visão, o real prejuízo na atribuição de efeitos erga omnes e vinculante ao controle difuso, devendo ser rejeitada, pelo menos nesse momento, a tese da falta de importância do Senado Federal no controle de constitucionalidade, por mutação constitucional.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Eis a ementa desse julgado:
PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA – CRIMES HEDIONDOS – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – ÓBICE – ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 – INCONSTITUCIONALIDADE – EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.”(HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 1.9.2006)

[2] É certo que a jurisprudência do STF assentou o cabimento da Reclamação como instrumento de preservação da autoridade de suas decisões, também em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Nessa espécie de controle, a afronta à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal decorre da eficácia erga omnes e efeito vinculante das decisões, sendo que terá legitimidade para ajuizá-la “todos aqueles que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do STF” (AgRg na Rcl 1.880).

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