Perspectiva garantista

Nada impede juiz de fixar pena abaixo do mínimo legal

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20 de outubro de 2012, 8h00

Impor uma pena não é um acontecimento metafísico, mas uma amarga necessidade no seio de uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens de hoje (as palavras de Von Liszt nortearam o Projeto Alternativo alemão de 1966).

Não é sem razão que um dos momentos mais complexos e cruciais no sistema penal é o da aplicação da pena. A aplicação ou dosimetria da pena não se confunde com a cominação da mesma. Esta ultima é feita pelo legislador quando da criação dos tipos penais. A cominação se refere à proporcionalidade abstrata ou individualização legislativa. Já a aplicação, proporcionalidade concreta, diz respeito à segunda etapa do processo de individualização da pena, qual seja, a individualização judicial.

Para Jair Leonardo Lopes, “aplicar-se a cada qual a pena que se ajuste, tanto quanto possível, às circunstâncias subjetivas e objetivas de sua conduta criminosa constitui a realização máxima do ideal de Justiça no particular.”[1]

A mesma pena, ensina sempre com clareza o professor, “não poderia, p.ex., ser aplicada ao pai que matasse o estuprador de sua filha e ao próprio estuprador, que matasse o pai da estuprada, para evitar que este levasse o fato ao conhecimento da polícia.” [2] Apesar de ambos terem cometidos o crime de homicídio.

Do mesmo modo que o legislador está vinculado ao princípio da proporcionalidade (abstrata) e da necessidade, quando da cominação da pena, o juiz, também, está. O juiz criminal está vinculado ao princípio da proporcionalidade (concreta) e as regras contidas no Código Penal. Portanto, dentre os limites (mínimo e máximo) cominados pelo legislador, deve o julgador ajustar a pena ao fato concreto levando em consideração as circunstâncias judiciais e legais. Trata-se, por conseguinte, de uma discricionariedade vinculada[3]. O juiz, afirma Luiz Luisi, “pode fazer as suas opções para chegar a uma aplicação justa da lei penal, atendendo as exigências da espécie concreta, isto é, as suas singularidades, as suas nuanças objetivas e principalmente a pessoa a que a sanção se destina. Todavia é forçoso reconhecer estar habitualmente presente nesta atividade do julgador um coeficiente criador, e mesmo irracional, em que, inclusive inconscientemente, se projetam a personalidade e as concepções de vida e do mundo do juiz.[4]

Definitivamente, o julgador não pode ser mero aplicador da lei ou um simples fazedor de contas quando da aplicação da pena. Na perspectiva constitucional e garantista o juiz em seu julgamento deve interpretar a lei inclusive para, caso ela represente uma afronta aos princípios constitucionais, deixar de aplicá-la. Neste sentido, assevera Paulo Queiroz[5] “(…) a missão primeira do juiz, em particular do juiz criminal, antes de julgar fatos, é julgar a própria lei a ser aplicada, é julgar, enfim, a sua compatibilidade — formal e substancial — com a Constituição, para, se a entender lesiva à Constituição, interpreta-la, conforme a Constituição ou, não sendo isso possível, deixar de aplicá-la, simplesmente, declarando-lhe a inconstitucionalidade”.

Nosso Código Penal (CP) como é sabido adotou o denominado critério trifásico (art. 68 do CP). Assim, na primeira fase o juiz deve aplicar dentro dos limites da pena cominada (pena prevista in abstrato) a pena-base atendendo as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime e comportamento da vítima); Na segunda fase serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes e por fim, na última fase da aplicação da pena-base, examinará se há alguma causa de diminuição ou aumento da pena. Terminada esta operação o juiz estabelecerá o regime inicial de cumprimento da pena (fechado, semiaberto ou aberto), bem como se há possibilidade de substituir a pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direito ou outra espécie cabível.

Segundo ensina Fragoso, a lei confere ao juiz um poder discricionário, significando que o juiz não pode aplicar a pena, dentro dos parâmetros legais, segundo seu arbítrio. O juiz prossegue o professor carioca, está adstrito à aplicação da pena justa. O que separa o arbítrio da discricionariedade é a obrigação de motivar a aplicação da pena. [6]

Sem pretender entranhar-se, aqui e agora, nas finalidades da pena e nas suas justificativas (para que punir e por que punir), certo é, que no contexto do Estado democrático de Direito não se pode conceber que uma pena seja aplicada de modo absolutamente dissociável de sua finalidade. Conforme preconizado por Luigi Ferrajoli, a pena não tem por objetivo a retribuição de um mal mediante outro mal que é a pena, mas busca proteger o indivíduo da vingança pública e privada, defendendo-o da reação desmedida da vítima e da coletividade. Neste aspecto, o direito penal se transforma num conjunto normativo de tutela dos direitos fundamentais, atuando “como instrumento de contenção do poder público, limitando o jus puniendi e o desejo de vingança do ofendido e dos demais membros da comunidade” [7].

Hodiernamente, é imperioso que o Direito Penal seja compreendido sob uma perspectiva garantista e constitucional nas quais os princípios “situam-se no mais elevado nível hierárquico do ordenamento jurídico”. [8]

Somente através de um modelo garantista de maximização da liberdade e minimização do poder punitivo é que o Estado, efetivamente, poderá cumprir com sua função social.

A pena, no modelo garantista e em seu “utilitarismo reformado”[9] apresentado por Ferrajoli, “não serve apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições”. [10]

Os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena em uma perspectiva garantista atuam, também, como limitadores do poder punitivo, vinculando ora o legislador, quando da seleção de crimes e da cominação de penas, ora o julgador, quando da aplicação (individualização) da pena.

Na individualização da pena aplicação da pena no caso concreto o juiz deve atender as várias circunstâncias, mas a culpabilidade é, sem dúvida, o principal fundamento além de limitar o poder punitivo. Posto que, “quanto mais se aperfeiçoa e se enriquece o conceito de culpabilidade, mais se concentra e se reduz a área de utilização da pena criminal”.[11] Se, como afirmam Zaffaroni e Pierangeli, [12] o homem esteve presente em toda teoria do delito, na culpabilidade “o enfrentamos mais do que nunca”. Não olvidando a formulação kantiana de que homem deve ser visto como fim em si mesmo e jamais como meio.

Assim, na individualização judicial da pena, entende-se que a cominação da pena mínima por parte do legislador, muitas vezes em patamares elevados, não pode engessar o julgador que deve ter na pena mínima apenas uma referência. Conforme dito, a culpabilidade analisada no caso concreto, levando-se em consideração, por exemplo, a vulnerabilidade do agente ou coculpabilidade[13], no momento da aplicação da pena, pode recomendar uma sanção menor do que a prevista em lei. Portanto, diante de uma perspectiva garantista, nada impede que o juiz fixe pena abaixo do mínimo legal, independente do reconhecimento de uma causa de diminuição ou atenuação da pena. [14]


[1] LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal. São Paulo: RT, 1999, p. 225.

[2] Idem.

[3] De acordo com Jescheck hoje existe um grande consenso em entender que também a eleição e a cálculo da sanção no caso concreto é uma decisão juridicamente vinculada. Posto que o julgador deva se orientar através de regras gerais e especiais estabelecidas na lei. (Ob. cit. p. 939).

[4] LUISI, Luiz. Ob. cit., p. 54.

[5] QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica, p. 39.

[6]   FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal. Parte Geral. Rio de Janeiro:Forense,1990, p . 320.

[7] BOSCHI, José Antonio Paganella.Daspenaseseuscritérios de aplicação. rev. e atual. 4ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

[8] COMPARATO, Fábio Konder. Comentário ao artigo 1º. In: 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: conquistas e desafios. Brasília: OAB-Conselho Federal, 1998.

[9] QUEIROZ, Paulo de Souza. Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 72-75.

[10] Ferrajoli, ob. cit., p. 268.

[11] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 254.

[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Ob. cit., p. 517.

[13] Sobre os referidos conceitos ver, entre outros, Zaffaroni e Pierangeli (Ob. cit.) e PINTO, Simone Matos Rios . O princípio da coculpabilidade em uma análise garantista do direito penal. Belo Horizonte, 2009. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

[14] Embora sabendo que a maioria da doutrina e da jurisprudência, bem como da Súmula 231 do STJ, entende-se que não há razão jurídica, principalmente sob a ótica garantista, que impeça a fixação da pena abaixo do mínimo legal. Neste sentido Paulo Queiroz (Direito penal. Ob. cit., p.328-329).

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