Diário de Classe

Supremo está entre o legalismo e o realismo jurídico

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20 de outubro de 2012, 8h00

Spacca
Desde muito cedo, me surpreendi envolvido com a intricada questão das possibilidades científicas do Direito. Espinhava-me as discussões — hoje já tão triviais — a respeito da inconclusiva questão para se saber se o Direito é uma ciência ou uma arte, ou, ainda, uma simples técnica para regimentar o convívio social. Sempre fui fascinado por história. Nutria também profundo interesse pela filosofia. Em meio a um vai-e-vem entre as possíveis respostas a essas questões, sempre acabei por tender para a concepção científica do Direito.

Como jurista, não me agrada a ideia de instrumentalização do Direito. Penso que temos como tarefa determinar as condições para que as respostas aos problemas jurídicos sejam efetivamente jurídicas. Do mesmo modo, partilho profundamente da convicção de que cada cidadão que busca a prestação jurisdicional tem um direito fundamental de que o Judiciário lhe ofereça a resposta correta para o seu caso (aquilo que Lenio Streck chama de direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição).

Nesse sentido, penso que devemos encontrar condições para se fazer teoria jurídica livre de polarizações ideológicas ou políticas. Tudo isso porque, elemento central de um Estado de Direito Democrático diz respeito à submissão dos atos do governo ao direito e da possibilidade de cada indivíduo, cada cidadão, poder prever as implicações normativas de sua conduta e da conduta dos agentes estatais.

Desse modo, encaminho aqui uma pequena reflexão sobre essas possibilidades, digamos, cognitivas sobre o Direito. Proponho uma análise que se coloca no interior de um dilema. Um dilema de extremos. O extremo do legalismo e o extremo do realismo jurídico. Ao final, examinaremos algumas projeções dessa análise em torno da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

A propósito de um Tricentenário
No dia 28 de junho do corrente ano comemorou-se o que seria o tricentésimo aniversário de J.J. Rousseau. O filósofo, referido por muitos como Genebrino, sempre dividiu opiniões. Nunca foi unanimidade, nem mesmo quando vivo. Durante a Revolução Francesa chegou a ser alçado a patrono da revolução. Influenciou, também, em alguma medida, as ideias políticas que foram articuladas e afirmadas no decorrer da revolução americana.[1] Sua obra, nesse contexto, é associada à defesa radicalizada da ideia de que o titular da soberania não é o Príncipe, mas, sim, o povo, construindo as bases para a concepção de República que será articulada pelo Direito político moderno.[2] Por outro lado, os contrarrevolucionários e a tradição liberal que se formou a partir do século XIX, associaram Rousseau ao terror revolucionário, ao possível totalitarismo presente na sua concepção de Volonté générale, sendo retratado, portanto, como inimigo da liberdade.

Independentemente das polêmicas e discussões que a obra de Rousseau suscitam, é fato que, quase 30 anos antes de o Abade Sieyès perguntar “Quem é o terceiro estado?”, o genebrino já havia afirmado que a natureza da soberania só poderia derivar do procedimento segundo o qual “a multidão, unanimemente, substitui as vontades particulares pela vontade geral: a essência da soberania se identifica, então, com a vontade geral”. [3] O autor de O Contrato Social defendia, assim, de um modo totalmente dissonante com relação ao que era pregado por juristas como Grotius e Burlamaqui, que a soberania tinha como titular o povo, que a exercia na forma da vontade geral.

Além disso, encontra-se em Rousseau as origens de uma fórmula, que faria sucesso no interior da modernidade política, derivada da afirmação de que o governo não manda, mas obedece. Nesse sentido, a obra do filósofo acabou por inspirar — e ao mesmo tempo indicar algumas pistas — para a superação do que era então um Estado Jurisdicional por um Estado Legislativo; um Estado de Direito.[4]

A posteridade, então, ocupou-se em operar a cristalização das teses rousseaunianas em torno de uma lógica política segundo a qual o poder exercido pelo governo é limitado através da obra que resulta da vontade geral: a legislação. Algo que reverbera, de alguma forma, na afirmação de Thomas Paine de que o governo é um governo de leis e não de homens.

Evidentemente que essa centralidade da lei, como força limitadora do exercício do poder político, passará a sofrer questionamentos por parte da teoria jurídica. Mais especificamente, no campo juspublicista, seria possível colocar a seguinte pergunta: De que modo o poder, efetivamente, se submete a esse Direito que ele mesmo criou? A engenharia jurídica do Estado Constitucional acabaria por responder essa pergunta com a solução do controle judicial dos atos do poder público. Assim, ao fim e ao cabo, a ideia de Estado de Direito, ou Estado Constitucional de Direito, acaba sendo figurada como sendo aquela em que o governo se submete ao Direito por ele criado, através de leis, mas que encontra sua efetiva aplicação no momento em que o poder judicial efetua o controle da legalidade/constitucionalidade dos atos do poder público.

Muitos dos seguidores de Rousseau — e não propriamente ele — acreditaram que o produto da vontade geral, a lei, fosse suficiente para conter abusos e arbitrariedades do governo. O grande problema é que, sempre que se parece encontrar uma solução, algo escapa e fica fora dela. No caso, a questão seria a seguinte: Quem controlaria os excessos ou arbitrariedade daqueles que são responsáveis por concretizar as leis, aplicando-as aos casos concretos?

Depois de Rousseau, o realismo jurídico
De algum modo, a concepção de que o Direito, que submete os atos de governo aos seus auspícios, se encontra todo ele alocado no produto da vontade geral, vale dizer, na lei, acarreta consequências também para o modo como o Direito é conhecido e ensinado. Note-se: se toda a arquitetura jurídica de um Estado se apresenta figurada em leis — escritas e organizadas — o acesso ao conhecimento do material jurídico também se apresenta de forma, a princípio, mais simples e objetiva.

Detratores dessa concepção, contudo, existiram desde os albores do século XX. Muitos, oriundos da experiência do common law. O caso talvez mais emblemático seja o do juiz Oliver W. Holmes. Para ele, aquilo que se produz enquanto conhecimento jurídico nada mais é do que conjecturas e determinações prováveis de como os juízes se comportarão no futuro no momento de estabelecer suas decisões. Em afirmação clássica, Holmes assevera que o Direito significa “the prophecies of what the courts will do in fact”.

Nesse caso, estudar Direito não seria um ato de conhecimento dos conjuntos legislativos existentes em uma determinada ordem jurídica, mas, sim, a realização de um esforço compreensivo baseado em uma análise comportamental daqueles que ocupam lugares de decisão, mais especificamente decisão judicial. De todo modo, a frase de Holmes já contém em si uma advertência: por mais que se esforce, o máximo que o estudioso do Direito conseguirá fazer será uma profecia daquilo que, no futuro, decidirão os tribunais.

Holmes é considerado um dos principais autores do chamado realismo jurídico, em sua vertente estadunidense. Rousseau seria uma espécie de pai no legalismo. São, em alguma medida, a antítese um do outro. Mas ambos, cada um a sua maneira, têm algo a dizer sobre a experiência jurídica brasileira atual.

Entre Holmes e Rousseau
A ideia de que todo o Direito cabe dentro daquilo que é o produto da vontade geral é reconfortante também sobre outro aspecto: o da previsibilidade social das condutas tidas como lícitas e ilícitas. A concepção realista, por sua vez, acaba por levar a certo pessimismo no que tange a possibilidade de determinação dessa previsibilidade normativa, uma vez que aquilo que será decidido no futuro pelos tribunais a respeito das mais variadas matérias jurídicas são no máximo profecias que podem se concretizar no futuro, mas, em hipótese alguma, existe alguma garantia de que isso vá, de fato, acontecer. Em outras palavras, para um legalista, boa técnica legislativa, com redação precisa de leis bem acabadas, somada à formação de experts treinados para interpretá-las com precisão seria o suficiente para que tivéssemos por conquistadas as condições para que os atores sociais pudessem antecipar, com máxima precisão, os resultados jurídicos de sua conduta. Para um realista, o esforço legislativo é vão, na medida em que, ao final, o Direito que irá efetivamente reger o caso será aquele determinado pelo tribunal.

A este propósito, vejamos o que ocorre, no contexto atual, com o Supremo Tribunal Federal. O julgamento da Ação Penal 470 esta produzindo um amplo debate no campo jurídico nacional. A ConJur publicou recentemente notícia que veiculava a opinião de criminalistas no sentido de que, para julgar a referida ação, a maioria dos ministros da corte aderiram a uma postura mais conservadora com relação ao Direito Penal, de modo a evidenciar certo retrocesso no que tange à sua jurisprudência criminal e ao modo de interpretar as garantias processuais dos acusados (clique aqui para ler).

Sem embargo, penso que caberia aqui a seguinte pergunta: Será que a mudança ocorre porque se está a julgar a referida ação penal ou, ao revés, por que há, na espécie, uma reformulação nos quadros pessoais do tribunal? Quero dizer que, de 2004 a 2012, quatro ministros deixaram a corte e outros três ingressaram nela. Muda-se o juiz, altera-se o comportamento decisório, modifica-se o Direito. Holmes estaria certo?

Quero tentar aqui aumentar um pouco a esfera de análise. Saindo da questão absolutamente sensível que é aquela enfrentada pela AP 470, vejamos — aleatoriamente — com os ministros antigos votaram sobre determinadas matérias e como estão votando os novos. Tomemos como exemplo o crime de Porte Ilegal de Arma. [5]

Em 2004, o Pretório Excelso julgou o RHC 81.057/SP que possuía como pano de fundo a discussão sobre a configuração do crime acima retratado. Na ocasião, divergindo da relatora a minisita Ellen Gracie, o ministro Sepúlveda Pertence afirmou que, em casos que tais, deveria prevalecer a tese de que, apenas nos casos de comprovada ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, é que ter-se-ia por tipificada a conduta descrita no crime de porte ilegal de arma de fogo (nos termos previstos pela Lei 9.437/97, que regia o fato sub judice). Nos casos em que não há ofensa ou lesão concreta ao bem jurídico tem-se que a conduta seria atípica. O exemplo, que se apresenta quase como truísmo, seria o da arma desmuniciada. No mesmo caso, o ministro Cezar Peluso acompanhou o voto do ministro Pertence afirmando, ainda, que “não basta que o tipo penal esteja disposto à tutela de um bem jurídico fundamental; é preciso mais, é preciso que a conduta seja idônea a lesar ou pôr em perigo o mesmo bem, o que se traduz, para em pregar termos contemporâneos, na danosidade da conduta”. No caso, a tese do ministro Sepúlveda, reforçada pelos argumentos tecidos pelo ministro Cezar Peluso, acabou por prevalecer. Ressalte-se, por relevante, que o STJ, já sob a égide do Estatuto do Desarmamento, tem afastado o crime nos casos de porte de munição sem arma (STJ, HC 194.468) ou de arma sem munição (STJ, HC 118.773 e AgRg no REsp 998.993-RS).

De outra banda, já no corrente ano, a 1a Turma do STF, julgando HC em que se argumentava exatamente a ausência da danosidade na conduta de acusado que portava arma de fogo desmuniciada, entendeu que — por se tratar de crime de mera conduta, de perigo abstrato — a configuração do crime estava comprovada, sendo irrelevante perquirir, nestes casos, sobre a ofensividade real da conduta (HC 103.539/RS Rel. Min. Rosa Weber). No mesmo sentido foi o julgamento do HC 88.757/DF, da relatoria do ministro Luiz Fux. Assim também julgou o ministro Dias Toffoli no HC 101.994/SP, de sua relatoria.

Por certo que outros ministros, que já compunham o tribunal antes de 2004, firmaram entendimento no mesmo sentido retratado no parágrafo anterior. É o caso dos ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, de modo que é possível afirmar que há quase que uma pacificação no entendimento do tribunal no sentido de que é irrelevante, para a configuração do crime em tela, a demonstração da ofensividade ao bem jurídico ou da danosidade da conduta do acusado.

De todo modo, parece significativo que a divergência que tinha lugar antes, parece simplesmente ter deixado de existir no momento que houve uma troca de parte dos ministros da corte.

Em trabalho recente, Georges Abboud alerta para a falta de padrões de determinação de coerência decisória em nossa corte constitucional. Ressalta o autor que, em vários casos — entre os quais podemos referir os acórdãos proferidos na ADI 4.029, ADI 3.999-DF e ADI 4.086-DF, HC 82.959/SP — o tribunal acabou construindo sua decisão sob critérios casuísticos, desvinculados de qualquer circunstância que pudesse revelar alguma previsibilidade concreta de decisão. [6] O trabalho de Abboud acaba por revelar uma outra faceta desse problema: não apenas a alteração da composição da corte possibilita um tipo de “realismo jurídico à brasileira”, mas, também, um tipo específico de decisão que acaba por se pautar por margens políticas, de ocasião.

Não quero com isso afirmar que as pessoas não podem ter concepções diferentes sobre um mesmo assunto. Todavia, é no mínimo intrigante que, em se tratando de Direito, estejamos a depender de saber o que pensa o julgador a respeito de determinado tema para termos uma ideia mínima do tipo de decisão que teremos.

Afinal, o que determina a previsibilidade das condutas sociais regulamentadas pelo direito? É a lei em sua pretensa racionalidade totalizante? Ou é a análise comportamental de como votam os ministros da nossa Suprema Corte?

Muito ainda há para se refletir sobre o papel da lei e as possibilidades de controle da atividade jurisdicional no contexto de um Estado Democrático de Direito. Rousseau e Holmes podem nos ensinar algumas coisas. Inclusive sobre o modo como conhecemos o Direito. De que forma nos aproximamos dos conteúdos jurídicos? Que tipo de expectativa podemos nutrir pelo conhecimento percebido sobre o Direito? Possibilidades várias de aprendizagem. Mas, cabe perguntar: Estamos prontos para aprender algo com eles?


[1] Nesse sentido, ressalto a percuciente interpretação formulada por Harold Berman sobre as origens das grandes revoluções da modernidade (Inglesa, Estadunidense e Francesa). O mencionado autor destaca a imbricação das ideias de autores ingleses e franceses no contexto da revolução americana (Cf. BERMAN, Harold J. Law and Revolution II. Cambridge: Harvard University Press, 2003, pp. 13-16).

[2] Cf. GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 179 e segs.

[3] GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 180; Cf. também VETÖ, Miklos. O Nascimento da Vontade. São Leopoldo: Unisinos, 2005, pp.173-180.

[4] Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Estado y Constitución. In: El Estado Moderno en Europa: Instituciones y derecho. Maurizio Fioravanti (Ed.). Madrid: Trotta, 2004, pp. 16 e segs.

[5] Não desconheço, a toda evidencia, que a lei que tipifica a conduta do porte ilegal de arma de fogo foi alterada em 2003, pelo chamado estatuto do desarmamento. Todavia, a alteração não modificou a configuração do referido crime como crime de perigo abstrato. O crime previsto, por exemplo, no art. 14 da lei 10.826/2003, continua a configurar hipótese de crime de perigo abstrato, nos mais diversos verbos que compõem o núcleo do tipo. Assim, a discussão em torno da questão da ofensividade ou danosidade da conduta, permanece necessária, mesmo em face da nova legislação.

[6] Cf. ABBOUD, Georges. Critica à Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de Controle de Constitucionalidade. No prelo. Artigo aceito para publicação em periódico da Revista dos Tribunais.

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