Katiba for change

Quênia em direção a sua democracia constitucional

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

15 de outubro de 2012, 14h11

A República do Quênia teve sua Constituição referendada em outubro de 2010 por meio de um grande movimento popular. O desafio agora é garantir o respeito ao documento e lutar pela sua consolidação no seio da sociedade.

O referendo envolveu toda a nação e se converteu num dos mais consistentes momentos da democracia constitucional que o país experimentou.

Katiba for change! — dizia o grito da população às ruas, quando do referendo da Constituição. Katiba, na língua suaíli, idioma nacional, significa Constituição.

A Constituição queniana é avançadíssima em muitos temas, principalmente quanto à integridade e ética necessárias ao desempenho das funções públicas. Ela veda o nepotismo expressamente, estabelece a possibilidade de recall dos mandatos dos parlamentares e cria a Comissão Anti-Corrupção.

Participei, representando o programa de pós-graduação em Direito do UniCeub, em Brasília, do Fórum Internacional organizado pela Comissão de Implementação da Constituição, na cidade de Naivasha. A Comissão está interessada em conhecer a experiência brasileira quanto à consolidação da Constituição de 1988. Também fiz uma apresentação para os conselheiros da Comissão na capital, Nairóbi.

Minha primeira conferência abordou o tema Ativismo Judicial das Virtudes [Judicial Activism of Virtues], destacando decisões do STF como: vedação ao nepotismo, Lei da Ficha Limpa, poderes do CNJ e mensalão. Na segunda apresentação tratei sobre amicus curiae, audiências públicas e TV Justiça.

Pela leitura desse texto, os leitores conhecerão os mais ricos detalhes desse incrível momento pelo qual o Quênia está passando. Ele mostra a realidade africana quanto à tentativa de estabelecimento de uma cidadania constitucional e os desafios inerentes a essa grande jornada que se desenha diante dos quenianos[1].

O começo da história
Cheguei ao aeroporto internacional de Nairóbi (Jomo Kenyatta) por volta das 11h. Enfrentei o controle da imigração, a demora com a chegada das malas e a necessidade de trocar os meus dólares por xelins, a moeda local.

Até Naivasha gastaríamos quase duas horas e eu não queria chegar atrasado à Conferência, que começaria naquele mesmo dia, segunda-feira.

Pedi ao motorista, Kenneth, que pisasse fundo. Ele, olhando pelo retrovisor, falou com o sotaque característico: Hakuna Matata Mister Professor!

Em suaíli, língua nacional do Quênia, Hakuna Matata quer dizer “sem problema”.

Em fevereiro de 1980, o músico Teddy Kalanda Harrison gravou a mais famosa música do Quênia, Jambo, jambo Bwana que quer dizer “Olá, olá como está?”. Uma das frases diz mwakaribishwa (Estrangeiros, vocês são bem-vindos). Em seguida anuncia: Kenya yetu Hakuna Matata (No nosso Quênia não há problema).

Além do suaíli, língua nacional, a Constituição prevê o inglês como língua oficial. Se houver conflito entre diferentes versões linguísticas da Constituição, a versão em inglês prevalece.

O país foi colonizado pelo Reino Unido a partir de 1890. Somente em 12 de dezembro de 1963, o Quênia teve sua independência reconhecida.

Hoje, com 40 milhões de habitantes, é a maior economia da África Oriental e a quarta maior da África Subsaariana, atrás de África do Sul, Nigéria e Angola.

Eu estava representando o programa de pós-graduação em Direito do UniCeub[2] perante a Comissão de Implementação da Constituição, órgão independente cuja missão é criar ferramentas para consolidar o Estado Constitucional naquele país.

O convite mostra que a experiência brasileira, adquirida com a consolidação da Constituição Federal de 1988 e com a atuação independente do Supremo Tribunal Federal, passou a servir de inspiração para outros países.

O projeto inicial era falar na Conferência em Naivasha. Depois eu voltaria ao Brasil. Fiz isso. Mas a fala repercutiu e fui convidado para falar na sede da Comissão de Implementação da Constituição, em Nairóbi, na sala das sessões, para os conselheiros do órgão e para membros da sociedade civil.

A Comissão é presidida por Charlers Nyachae, formando pela London School of Economics & Political Science. A vice-presidente é Elizabeth Muli, doutora em Direito por Stanford, nos Estados Unidos.

As autoridades quenianas estavam interessadas em conhecer experiências brasileiras que, valendo-se da Constituição, conciliaram participação popular e controle dos atos dos agentes públicos.

A primeira conferência foi feita para representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de integrantes da sociedade civil.

Foi uma grande experiência. Além de viver a realidade da África, vi que o Quênia entende a Constituição como um instrumento de mudança.

Eu discorri sobre o que chamo de “Ativismo Judicial das Virtudes” (Judicial Activism of Virtues), tratando sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal voltada para temas que introduzem a ética na agenda pública nacional.

Decisões como a vedação ao nepotismo, constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, poderes do Conselho Nacional de Justiça e mensalão lançam ao debate público um dos mais relevantes temas da filosofia política, que é a ética.

Local da conferência
Saí da capital num carro da Comissão de Implementação da Constituição rumo a Naivasha, que fica a aproximadamente uma hora e meia dali. Kenneth dirigia o carro.

Logo na saída vi um outdoor: “Viva à Nova Constituição” dizia.

Ainda na estrada avistamos um enorme tumulto, com centenas de quenianos correndo e gritando. Um ônibus repleto de pessoas havia tombado naquele instante. Estavam socorrendo as vítimas. Ouvíamos sirenes tocando longe. A cena era forte. Dezenas de quenianos em pé sobre o ônibus tombado arrancando de dentro pessoas machucadas, muitas delas desmaiadas. Outros correndo com pessoas desacordadas e feridas em seus braços.

Aquela imagem ficou martelando durante a viagem. Tentei desviar o foco lendo o meu discurso. Fiquei treinando a pronúncia e modificando alguns pontos da fala. Falaria e debateria em inglês.

A Conferência ocorreu sobre a Eburru, uma montanha que o povo Masai chama de Ol Donyo Opurru (Montanha de Fumaça). Os Masai constituem um grupo nômade, encontrado no Quênia e na Tanzânia.

Estávamos no coração da savana africana, percorrendo uma estreita estrada de terra, cercados por montanhas.

Kenneth deixou tocando no som do carro Tony Nyadundo, um popular cantor queniano, conhecido como “Rei do Ohangla”, tradicional estilo de música no país. O nome da música que tocava é familiar: Obama. Em 2006, Nyadundo lançou o álbum em homenagem ao então senador dos Estados Unidos, Barack Obama, cujo pai é do mesmo grupo étnico de Nyadundo, tendo nascido na aldeia de Kogelo. Para se ter uma ideia da popularidade do queniano ilustre, dia 5 de novembro é feriado Nacional no Quênia, dia destinado a celebrar a vitória de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos.

Quando levantei o rosto, vi diante de nós quatro macacos babuínos cruzando a pista em direção a uma montanha. Eram bem grandes. Difícil se concentrar no discurso daquele jeito. Kenneth seguiu dirigindo sobre a estrada de terra.

Muito curioso ver Kenneth guiando o carro com o volante do lado direito. O Quênia adota todas as regras inglesas de trânsito, incluindo os volantes dos carros do lado direito e o trânsito nas pistas em posições invertidas às nossas.

Do local, que fica a cerca de 7.000 metros, era possível ver as águas do Lago Naivasha, um dos mais belos da África. Também a cratera vulcânica do Monte Longonot e as montanhas de Aberdare.

Estávamos numa região de safáris, encravados na mais pura savana africana. Essas regiões permitem que os visitantes vejam leões, rinocerontes, guepardos, hipopótamos, impalas, zebras (inclusive albinas), cervos, vários tipos de antílopes, crocodilos, chacais, hienas, javalis, girafas e outros.

A minha fala foi feita embaixo de uma grande tenda armada sobre a grama, próximo ao Vale do Rift, a 24 quilômetros de Naivasha.

Foi nesse Vale onde ocorreram os mais sangrentos conflitos no país durante a crise civil que se seguiu às eleições presidenciais de dezembro de 2007, ganhas pelo atual presidente, Mwai Kibaki, e cuja validade foi recusada pelo líder da oposição, Raila Odinga.

Nesse período, em Nakuro, capital do Vale do Rift, 45 pessoas foram queimadas vivas e outras dezenas foram esquartejadas. Ao todo, mais de 1.500 pessoas morreram.

A crise terminou com a decisão de elaborar a nova Constituição, promulgada em 2010.

Durante a minha conferência senti o exercício pleno da cidadania constitucional. Há cinco anos pessoas eram esquartejadas dentro de um modelo quase anárquico de vida coletiva. Hoje, os cidadãos se reúnem para discutir a Constituição.

Abri minha fala dizendo: “A iniciativa de organizar uma grande Conferência, visando dividir experiências sobre questões em torno do constitucionalismo nas democracias de todo o mundo é um sopro de esperança no meio das incertezas trazidas com a sociedade complexa na qual vivemos.”[3]

Todas as autoridades estavam sentadas sob a grande tenda. Por trás de mim, um banner da Comissão de Implementação da Constituição: “Protegendo a soberania do povo, garantindo a observância por parte de todos os organismos do Estado aos valores e princípios democráticos, promovendo o constitucionalismo”, dizia.

Dali em diante teríamos 45 minutos tratando sobre o “Ativismo Judicial das Virtudes”, contando com a rigorosa atenção de todos os presentes.

Katiba for change!
A Constituição do Quênia foi referendada em agosto de 2010 por meio de um movimento que envolveu todo o país.

O grito Katiba for change! pregava o “sim” como resposta à pergunta feita em suaíli: Je, unaikubali katiba mpya inayopendekezwa? (Você aceita a nova Constituição proposta?). Katiba significa Constituição.

No total, 6.092.593 (68,55%) quenianos votaram sim, contra 2.795.059 (31,45%), além de 218.633 (2,40%) votos entre brancos e nulos.

Após o resultado oficial, dia 4 de outubro de 2010, o presidente Mwai Kibaki, promulgou a nova Constituição numa cerimônia no parque Uhuru, centro de Nairóbi, com a presença de milhões de pessoas e de figuras ilustres, como Kofi Annan, então ex-secretário-geral da ONU.

O mês da promulgação da nova Constituição no Quênia foi o mesmo mês da promulgação da nossa Constituição Cidadã: outubro.

Desde então, a Comissão de Implementação da Constituição tem se esforçado para consagrar os postulados constitucionais. A realização da Conferência era somente uma das muitas iniciativas que a Comissão tem tomado.

Katiba! A Constituição do Quênia
Com um preâmbulo que faz alusão a Deus ao dizer “Reconhecendo a supremacia do Sagrado Deus Criador”, assim como ocorre com a Constituição brasileira que fala “sob a proteção de Deus”, a Constituição do Quênia é analítica, contando com 18 capítulos.

O capítulo 4º trata dos direitos fundamentais e se subdivide em três partes: Declarações Gerais relativas à Declaração de Direitos; Direitos e Liberdades Fundamentais e; Aplicação Específica dos Direitos.

Os direitos fundamentais assegurados são muitos.

Há direito: à vida; à igualdade e liberdade contra discriminações; à segurança; contra a escravidão, servidão e trabalho forçado; à privacidade; à dignidade humana; à liberdade de consciência, religião, crença e opinião; à liberdade de expressão; à liberdade de imprensa; de acesso à informação; à liberdade de associação; políticos; à liberdade de locomoção e residência; de propriedade; à relações laborais; ao meio ambiente; econômicos e sociais; à língua e cultura; à família; dos consumidores; à ações administrativas justas; ao acesso à Justiça, além de alguns outros.

Todavia, os direitos fundamentais não são considerados cláusula pétrea. A Constituição permite a aprovação de emendas que tratem do tema, bastando, para isso, um referendo. A Constituição é omissa quanto à possibilidade de tais emendas mitigarem os direitos fundamentais. Ela simplesmente autoriza emendas sobre eles desde que haja posterior referendo.

Um capítulo peculiar é o 6º, que trata de “Liderança e Integridade”. Ele fala das responsabilidades do chefe do Poder Executivo e estabelece como princípios a “objetividade e imparcialidade na tomada de decisões”. Visa também assegurar que essas decisões não sejam influenciadas pelo “nepotismo, favorecimentos, outros motivos impróprios ou práticas corruptas”.

Enquanto a Constituição brasileira não vedou expressamente a prática do nepotismo, tendo simplesmente feito alusão aos princípios da moralidade e impessoalidade na administração pública, a Constituição queniana proíbe taxativamente a prática.

Com a promulgação da Constituição, os poderes do chefe do Executivo no Quênia foram drasticamente reduzidos. Qualquer emenda à Constituição que afete o prazo do mandato do presidente não poderá ser aprovada sem um referendo.

Assim como consta na Constituição brasileira, é possível o impeachment do presidente.

Quanto ao Parlamento, a Constituição estabeleceu tópico próprio para tratar da necessidade de promover a representação de grupos marginalizados.

Os parlamentares gozam de poderes, privilégios (é a expressão usada na Constituição) e imunidades. Contudo, é assegurado o direito ao recall dos seus mandatos.

É possível o registro no processo eleitoral de candidaturas independentes, ou seja, de candidatos que não sejam filiados a partidos políticos. Basta que não componham nenhum partido nem o tenham feito nos três meses anteriores à eleição.

A Constituição introduz o princípio da legalidade tributária ao afirmar que “nenhum imposto ou taxa de licenciamento podem ser impostos, dispensados ou alterados, exceto quando previsto em legislação”. Ela também dispõe que “nenhuma lei poderá excluir ou autorizar a exclusão de um agente do Estado do pagamento do imposto em razão do cargo desse funcionário do Estado, ou da natureza do trabalho do agente do Estado”.

A Constituição introduziu um sub-capítulo voltado para a hermenêutica a ser exercida sobre o texto constitucional.

O artigo 259 da Carta fala que a Constituição será interpretada de uma forma que: (A) promova os seus propósitos, valores e princípios; (B) os avanços do Estado de direito e os direitos humanos e liberdades fundamentais na Declaração de Direitos; (C) permita o desenvolvimento da lei, e (D) contribua para a boa governança.

Ainda tratando da parte hermenêutica, ela trouxe um número imenso de palavras e expressões impondo a forma correta de conceituá-las. Isso talvez seja um atraso, considerando a dificuldade desses conceitos permanecerem os mesmos com o passar do tempo. A tentativa de trazer segurança impedindo a mudança de concepções por parte da Suprema Corte quase sempre resulta na necessidade de aprovar emendas à Constituição, dificultando o seu compromisso de perenidade.

Segundo a Constituição do Quênia, sempre que ela mencionar a palavra “adulto” ela quer dizer “um indivíduo que tenha alcançado a idade de 18 anos”.

Daí em diante, palavras ou expressões que têm seu significado trazido pela própria Constituição, em capítulo próprio, ganham corpo. São elas: ações afirmativas; criança; legislação estadual; deficiência; documento; data efetiva; ano financeiro; garantia; terra; legislação; comunidade marginalizada; grupo marginalizado; legislação nacional; recursos naturais; idosos; pessoa; partido político; propriedade; República; Estado; jovem…, dentre outros.

A Constituição criou muitas comissões, como a Comissão Anti-Corrupção e, semelhante à nossa, a Comissão da Verdade. Há uma Comissão dos Professores, responsável, dentre outras funções, pela contratação de todos os professores de ensino público do país.

Os quenianos também têm uma espécie de Conselho Nacional de Justiça. Falo da Comissão de Serviços Judiciais, com expressa previsão constitucional e cujos poderes se assemelham ao do nosso CNJ.

A composição do órgão, com 11 integrantes, se dá da seguinte forma: o presidente da Suprema Corte é o presidente da Comissão. Há um ministro da Suprema Corte eleito pelos seus pares. Também um ministro de tribunal superior eleito pelos seus pares. Compõem o órgão, ainda, um desembargador e um magistrado, sendo um homem e uma mulher, eleitos pelos membros da associação dos juízes. O procurador-geral da República. Dois advogados, sendo um homem e uma mulher, com quinze anos de experiência, eleitos pelo órgão semelhante a nossa Ordem dos Advogados. Há também uma pessoa indicada pela Comissão de Serviços Públicos. Por fim, um homem e uma mulher, representantes do povo, sem necessidade de serem advogados, apontados pelo presidente da República com o posterior aval da Assembleia Nacional.

A Suprema Corte tem presidente, vice e mais cinco juízes.

O presidente da República indica o presidente e vice-presidente da Suprema Corte, a partir de nomes encaminhados pela Comissão de Serviços Judiciais. A Assembleia Nacional precisa aprovar os nomes. Quanto aos outros cinco ministros, basta a indicação da Comissão de Serviços Judiciais, sem aval da Assembleia.

Segundo a Constituição, a experiência jurídica do indicado, que deve ser de pelo menos quinze anos, há de se dar no Quênia ou em países que adotem a common law.

Esse é um breve resumo da Constituição do de 2010. Vejam que ela é muito avançada em relação a vários temas. Noutros, se parece com a nossa. E noutros, revela características centrais daquele país.

Ativismo judicial
Tive de esclarecer aos quenianos, na primeira conferência, que o Brasil tem experimentado um distanciamento por parte da política-partidária dos temas morais que dividem a população.

Isso tornou o Supremo Tribunal Federal o grande responsável pelo debate franco, público e fundamentado acerca de questões sensíveis, como a união homoafetiva, o direito à vida, pesquisas com células-tronco, o aborto, o monopólio dos serviços de correios, a Marcha da Maconha, entre muitos outros.

No Quênia, a jurisprudência constitucional ainda não chegou a temas tão delicados, mas já começa a tocar em questões importantes.

A Suprema Corte deliberou sobre a correta interpretação do artigo 27 da Constituição que fala sobre ‘Igualdade e Liberdade contra Discriminação’.

Segundo ele, “o Estado deve tomar medidas legislativas e outras para implementar o princípio de que não mais de dois terços dos membros dos órgãos eletivos ou de nomeação deve ser do mesmo sexo”.

Para a Federação das Mulheres Advogadas do Quênia, haver duas mulheres e cinco homens na Suprema Corte corresponde a manter 28.57% da composição para mulheres e 71.43% para homens, violando o artigo 27 da Constituição.

A Suprema Corte rejeitou o pedido e, ao fazê-lo, registrou: “A Constituição dá ao Judiciário o poder de interpretá-la e aplicá-la. Este tribunal não pode, contudo, comportar-se como um polvo esticando seus oito tentáculos aqui e ali exercendo poderes não constitucionalmente reservados a nós. Para conceder o pedido pretendido, sem dúvida, teríamos de invadir políticas e legislações que não estão reservadas ao Judiciário.”[4]

A decisão mostra que não é só no Brasil onde se discute os limites da atuação de uma Suprema Corte. A temática ‘Ativismo Judicial’ tem mesmo percorrido todas as democracias constitucionais ao redor do mundo.

Uma demanda ainda sem resposta lançada ao colo da Suprema Corte indaga, por meio da Petição Constitucional 137/2011, à luz da Constituição queniana, o seguinte:
Sob a Constituição, todos os funcionários do Estado, incluindo os membros do Parlamento, têm a obrigação de pagar imposto?
O Executivo tem o poder ou autoridade para isentar qualquer "funcionário do Estado" de pagamento de impostos?
A atual Constituição ou as cláusulas transitórias salvam ou isenta os Membros do Parlamento do pagamento de impostos?
Seria ilegal e inconstitucional o Governo, por meio de impostos, resolver o fardo de deputados que usam recursos públicos ou dinheiro dos contribuintes?

As isenções indevidas, que violam o princípio da igualdade e conferem a autoridades tratamento distinto do conferido à população em geral, começam a aparecer no debate constitucional queniano, mostrando que, sem exceções, toda revolução passa, em algum momento, pelo Direito Tributário.

Um caso que deve chegar à Suprema Corte do Quênia no próximo ano, pelo fato de já ter sido decidido pela High Court de Nairóbi, sob a relatoria do juiz C. W. Githua, trata da constitucionalidade do Código de Vestimenta da Quênia High School, que proíbe o uso, pelas alunas, do hijab[5].

O hijab é o conjunto de vestimentas usado por quem profetiza a doutrina islâmica. Ele é usado pela maioria das muçulmanas. A inspiração vem do próprio Alcorão, que diz: “Ó profeta, dizei a vossas esposas, vossas filhas e às mulheres dos crentes que quando saírem que se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que se distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo” (33ª Surata, Al-Ahzab, versículo 59).

Segundo os muçulmanos, o hijab foi feito para proteger e salvaguardar a honra, a dignidade, a castidade, a pureza, integridade e caráter moral das mulheres muçulmanas. Recusar o uso a quem o faz como manifestação de sua religião e crenças, constitui uma discriminação com base na religião e viola direitos dispostos no artigo 27 e no artigo 32 da Constituição.

De acordo com o artigo 27, “o Estado não pode discriminar, direta ou indiretamente, nenhuma pessoa em qualquer área, incluindo raça, sexo, gravidez, estado civil, condição de saúde, origem étnica ou social, cor, idade, deficiência, religião, consciência, crença, cultura, vestes, língua ou nascimento”.

Já o artigo 32 afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de consciência, de religião, crença, pensamento e opinião”. Diz ainda que “toda a pessoa tem o direito, individualmente ou em comunidade com os outros, em público ou em privado, para manifestar qualquer religião ou crença através da adoração, prática de ensino, ou observância, incluindo a observância de um dia de adoração”. Também dispõe que “uma pessoa não pode ver negado o acesso a qualquer instituição, emprego ou instalação, ou o gozo de qualquer direito, por motivo de crença da pessoa ou religião”. Por fim, “uma pessoa não deve ser obrigada a agir, ou se envolver em qualquer ato, que é contrária à crença da pessoa ou religião”.

Contudo, a decisão tomada pelo juiz manteve a constitucionalidade do Código de Vestimenta, vedando o uso do hijab pelas alunas muçulmanas.

Para C. W. Githua, relator do caso na High Court de Nairóbi, a Escola Quênia High School agiu de forma “razoável e justificável em uma sociedade aberta e democrática, baseada na dignidade humana, igualdade e da liberdade”. Segundo o Juiz, “a política de uniforme da escola foi desenhado pelos entrevistados com o objetivo legítimo de garantir a igualdade entre todos os estudantes e para facilitar a aplicação da disciplina para a melhoria contínua dos padrões acadêmicos da escola”.

Essa discussão deve chegar à Suprema Corte. Será a grande chance de o Tribunal buscar inspiração no seu irmão africano, a África do Sul, que, por meio da sua Corte Constitucional que apreciou o caso MEC for Education: Kwazulu-Natal and Others v Pillay, em 5 de outubro de 2007.

Sunali Pillay era aluna de uma elitizada escola feminina de nível médio da cidade de Durban (Durban Girls’ High School), na África do Sul. Por usar um piercing nasal, foi acusada de violar a disciplina exposta no Código de Conduta da Escola.

Ela compunha uma comunidade sul-africana originária de imigrações da região sulina da Índia cuja marca distintiva era a mistura de características religiosas, linguísticas, geográficas, étnicas e artísticas de origem hindutamil.

Após a primeira menstruação, as mulheres da comunidade passam a usar um piercing nasal esquerdo, simbolizando a fertilidade feminina e anunciando a caminhada em direção à vida adulta, com a liberdade para o casamento.

A aluna não aceitou deixar de usar o adereço na escola. Para ela, a atitude corresponderia à grave ofensa à sua identidade cultural e religiosa, na qualidade de pessoa componente da mencionada comunidade. Segundo Sunali, o uso do piercing não era por moda, mas por razões culturais e religiosas.

A Corte Constitucional da África do Sul determinou que o corpo diretivo da Escola, em conjunto com os alunos, pais e professores, em tempo razoável, realizasse emendas ao Código de Conduta em vista a providenciar razoáveis conciliações do Código a aspectos religiosos e culturais, além de estabelecer exceções que possam ser garantidas[6].

Talvez esse precedente possa servir de inspiração para a Suprema Corte queniana, caso ela venha a decidir o caso das alunas muçulmanas e o hijab.

Percebemos que a Suprema Corte, apesar da pouca idade, tem se deparado com importantes discussões constitucionais. Com isso, a longa e ampla avenida do Estado Constitucional Democrático de Direito começa a ser percorrida por meio dos meios institucionais disponíveis.

Apesar de ainda não podermos falar em ativismo judicial, casos como os da garotas muçulmanas e o hijab deixam claro que as consequências da vida numa sociedade complexa começam a bater às portas do Judiciário do Quênia, convidando-o a participar dos desafios que a jurisdição constitucional tem enfrentado em todo o mundo.

Amicus Curiae
Após a apresentação realizada em Naivasha, embaixo da grande tenda, tivemos um demorado debate. As perguntas não foram diferentes das ouvidas no Brasil. Tocou-se em temas como democracia, exorbitância de poderes pela Suprema Corte, possível violação da liberdade de voto pela Lei da Ficha Limpa, dentre outros.

Logo que encerrei, recebi um novo convite, desta vez para falar perante os conselheiros na sede da Comissão de Implementação da Constituição, em Nairóbi.

Aceitei, claro!

Entre os conselheiros presentes estavam: Elizabeth Muli, vice-presidente da Comissão e doutora em Direito pela Universidade Stanford; Imaana Laibuta, mestre em Direito pela London School of Economics and Political Science; Peter Wanyande, doutor em Ciência Política pela Universidade da Flórida; Kamotho Waiganjo, um experimentado advogado militante; Catherine Mumma, mestre em Direito pela Universidade de Londres. Ibrahim M. Ali, doutor pela Universidade East Anglia, no Reino Unido.

Discorri sobre a nossa experiência com o amicus curiae, com as audiências públicas e com a TV Justiça.

Também estavam lá membros da sociedade civil como os representantes do Katiba for change Institute, cuja finalidade é promover a compreensão e implementação da Constituição por meio de pesquisa, educação constitucional, litígio constitucional e participação pública.

Todos ficaram encantados com a TV Justiça. Um dos presentes indagou: “Mas eles transmitem tudo? Mesmo as brigas?” E eu respondi: “Claro! Inclusive essa parte é a que dá mais audiência.” Foi só uma piada.

Quanto ao amicus curiae, a nossa experiência não é nova para a realidade queniana. A Suprema Corte de lá tem feito intenso uso do instrumento em seus julgamentos, tendo uma jurisprudência mais flexível do que a brasileira quanto à admissibilidade dos interessados.

Comumente se vê pessoas físicas participando.

Experts levam suas impressões à Suprema Corte contribuindo com informações técnicas relevantes as quais a Corte não tem interesse em abrir mão. No Brasil, a posição do Supremo é a de que somente entes plurais devem participar, em atendimento à Lei 9.868/1999.

No caso julgado pela Suprema Corte tratando do período no qual as próximas eleições devem se realizar, o professor Yash Pal Ghai foi ouvido como amicus curiae. Ele não falou como advogado de uma associação ou de um sindicato. Ele foi admitido em razão do papel que tem desempenhado na implementação de constituições em vários países, como as Ilhas Fiji e o Reino do Camboja[7].

A construção jurisprudencial da Suprema Corte do Quênia, portanto, tem sido mais flexível na utilização do amicus curiae do que a nossa, pois tem permitido que pessoas físicas sejam reconhecidas como potências públicas capazes de levar ao Tribunal informações importantes sobre o tema constitucional em discussão.

O desafio constitucional
O que percebi no Quênia é que a Constituição tem sido vista, realmente, com um instrumento de mudança.

Os quenianos têm depositado nesse documento suas esperanças quanto à normalidade institucional do país, ao controle do poder, à prosperidade econômica e ao respeito aos direitos fundamentais.

Outra constatação que tive foi quanto às pessoas portadoras de necessidades especiais. Há um cuidado imenso com essa comunidade. Todas as discussões, em algum momento, tocaram nesse importante ponto. Na Comissão de Implementação da Constituição, o conselheiro Imaana Laibuta é portador de necessidades visuais.

Fredrick Collins Omondi, advogado do Conselho Nacional das Pessoas com Deficiência, presente à Conferência, destacou os avanços brasileiros quanto aos portadores de necessidades especiais, realçando ser esta uma preocupação do Quênia.

Também senti certo apego à ideia de soberania do Parlamento, muito em voga na Inglaterra e na França há algum tempo. Algumas vozes componentes de entidades da sociedade civil se mostraram preocupadas com uma atuação muito altiva da Suprema Corte, enxergando nessa postura uma possibilidade de distanciamento da população dos seus representantes democraticamente eleitos.

Contudo, a própria Comissão de Implementação vê a Constituição como um instrumento de mudança e não tem medido esforços para concretizar todas as aspirações populares depositadas nesse documento.

Indagado sobre o que eu imaginava acerca do futuro das democracias constitucionais, respondi que há ciclos diferentes, mas eles tratam sempre da mesma pergunta: Que tipo de sociedade queremos para nós e como a Constituição pode nos ajudar a conseguir isso?

A busca pela resposta à indagação parece ser a grande fonte de inspiração para a aventura constitucional que o Quênia está vivendo.

Voltando para casa
Na sexta-feira, às 18h, eu já estava pronto para retornar ao Brasil. Dia seguinte era aniversário da minha namorada eu não poderia deixar de comemorar ao seu lado[8].

Peguei minhas malas no Hotel Intercontinental, em Nairóbi, que fica no centro e conta com instalações maravilhosas. Os edifícios do Parlamento estão à sua frente. A Suprema Corte a poucos metros. Até mesmo um orfanato de elefantes pode ser visitado.

Com as malas prontas, entrei no carro. Kenneth ao volante mais uma vez.

Fomos para o aeroporto internacional (Jomo Kenyatta). Eu ainda carregava alguns xelins no bolso. Não daria tempo de trocar.

Estava cansado por antecipação. Teria um voo de quase 5 horas para Dubai. Lá eu ficaria numa demorada conexão. Dia seguinte embarcaria para São Paulo, num voo de mais de 15 horas. Em São Paulo uma nova conexão me aguardava. Em seguida, o esperado voo até Brasília.

Eu devia chegar às 23h do sábado, última hora do dia do aniversário. Não adiantaria chegar depois da meia-noite.

No caminho até o aeroporto o que se ouvia no carro era mais um sucesso do Rei do Ohangla, Tony Nyadundo. A música se chamava Dawa ya Mapenzi (Medicina do Amor).

Pedi a Kenneth que pisasse fundo. Não foi a primeira vez que ele ouviu isso. Disse o mesmo quando cheguei na segunda-feira. Acho que ele deve ter imaginado que os brasileiros estão sempre atrasados.

Kenneth olhou para o banco de trás do carro onde eu estava. Gargalhando, disse: Hakuna Matata Mister Professor!


[1] Agradeço à acadêmica de Direito da UnB e estagiária do escritório Pinheiro Neto Advogados, Lorrane Sena, com quem dividi a minuta desse texto antes da publicação e de quem recebi importantes considerações quanto ao seu formato, redação e conteúdo.

[2] Eu gostaria de agradecer à Professora Lilian Rocha, coordenadora da pós-graduação em Direito do Uniceub, cuja sensibilidade e liderança tornaram possível a experiência no Quênia. Também ao Professor Túlio Arantes, Diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Ciências Sociais e à Professora Renata de Melo Rosa, coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais. Gostaria de agradecer ainda ao Grupo Tributário do escritório Pinheiro Neto Advogados, na pessoa do seu coordenador, Sérgio Farina, que não mediram esforços em incentivar a viagem.

[3] O trecho da minha fala no original: “The initiative of hosting a large Conference in order to share experiences about the questions surrounding constitutionalism in the world’s democracies is a glimpse of hope in the middle of all the uncertainties of the complex society which we live in”.

[4] Petição Constitucional nº 102, de 2011.

[5] Republic V The Head Teacher, Kenya High School & another Ex-Parte Smy (a minor suing through her mother and next friend A B) [2012]eKLR.

[6] CCT 51/06, §§ 11, 50, 58, 60, 85 a 86, 89 a 90 e 106. Em: http://www.constitutionalcourt.org.za/site/home.htm. Acesso: jul/2012. 

[7] Petição Constitucional nº 65, de 2011.

[8] Agradeço comovido ao apoio incondicional de Maria Clara, minha namorada, de quem recebi todo o estímulo para realizar a viagem para a África e com quem dividi o êxito da viagem. Também pude contar com ela na elaboração desse texto, por meio da sua leitura atenta e importantes sugestões.  

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da pós-graduação do UniCeub. Atuou junto à Conferência da Comissão de Implementação da Constituição do Quênia. Pesquisador na Universidade Georgetown (EUA). Realizou estudos sobre "Sentenças Constitucionais Manipulativas", na Itália. Doutorando em Direito Constitucional na PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!