Informalidade efetiva

Processo administrativo é mais eficaz sem formalidades

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10 de outubro de 2012, 9h00

O processo, em sua acepção mais genérica, indica determinada relação necessária entre agentes (físicos, químicos, pessoas etc.). No âmbito do Direito, o processo é relação jurídica entre duas ou mais pessoas (já que não há processo consigo mesmo), com mais uma peculiaridade — a finalidade visada, ou seja, um resultado exitoso.[1]

Ou seja, como reconhecia mesmo Pontes de Miranda[2], o processo, no Direito, tem a peculiaridade de visar determinado remate, ao contrário, por exemplo, de um processo físico ou químico, que pode ser considerado isoladamente. O processo jurídico nunca será um fim em si mesmo, mas sempre instrumento para a concretização do bem comum, ao aparelhar o Estado com os meios necessários para garantir a pacificação social.

Neste sentido é que se pode falar em processo legislativo, como atuação dos órgãos competentes para a elaboração dos veículos introdutores de normas. Esta acepção permite também se falar em processo administrativo e judicial mesmo sem litígio, como, na esfera judicial, a figura da justificação judicial — processo de jurisdição voluntária.

Todavia, é interesse deste estudo o enfoque em uma espécie de processo no Direito — o processo administrativo — como instrumento de atuação da Administração no exercício de sua competência. Neste contexto, no que diz respeito às contribuições previdenciárias, haverá o processo administrativo não contencioso, relacionado ao lançamento do crédito tributário, e o litígio processual-administrativo, quando da eventual impugnação ao lançamento. No benefício, o processo não contencioso inicia-se com o requerimento da prestação, e o litigioso surge quando há impugnação ao indeferimento administrativo ou revisão por parte do INSS.

Por isso, não é correto afirmar a inexistência do processo administrativo, pois haveria, em âmbito administrativo, para alguns, mero procedimento, cabendo o processo somente aos órgãos do Poder Judiciário. Ainda é usual afirmar-se que o procedimento, signo de alcance mais amplo, seria, em âmbito administrativo, o reflexo do modus operandi da Administração, fixando a competência para emanar determinado ato e rito a ser seguido, sob pena de invalidade do mesmo. É certo que o procedimento não se confunde com o processo, mas ambos existem na esfera administrativa.

Tal visão restrita é derivada, usualmente, do critério de jurisdição única, pelo qual somente o Poder Judiciário teria o poder de resolver os litígios apresentados ao Estado-juiz, enquanto a Administração, na melhor das hipóteses, faria mero controle de legalidade de seus atos, sendo tal autoridade submetida a procedimento fixado em lei.

Não obstante, mesmo com a jurisdição única, é usual a previsão de algum tipo de processo administrativo, pois, frequentemente, verdadeiros litígios são apresentados à Administração, a qual vai muito além do mero controle de legalidade. Ademais, o processo não se limita às relações litigiosas.

A própria definição de jurisdição única deve ser compreendida cum grano salis, já que, por certo, atribui ao Poder Judiciário a prerrogativa de avaliar a licitude de qualquer demanda posta a sua apreciação, em grau derradeiro, mas sem excluir a possibilidade da atuação atípica dos demais poderes, decorrência natural do mecanismo de check and balances.

Ou seja, o sistema de jurisdição única significa que a atividade jurisdicional, como função típica, é restrita a um dos Poderes constituídos, mas não exclui, evidentemente, a atuação atípica dos demais, nos limites traçados na Constituição.

A presença do processo administrativo na Constituição vigente é cristalina. Enquanto as anteriores tinham apenas referências específicas sobre o processo disciplinar, a Constituição de 1988 trouxe orientações gerais acerca do processo administrativo, utilizando-se desta expressão em diversos dispositivos, tais como os artigos 5º LV; 37, XXI e 41, parágrafo 1º, II. O artigo 5º, LV dispõe que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a elas inerentes.

Em razão da expressa previsão constitucional do artigo 5º, LV, aliada à evolução doutrinária sobre o tema, há hoje razoável consenso sobre a existência do processo administrativo, inclusive o de natureza contenciosa, no qual o litígio entre Administração e administrado é resolvido dentro das mesmas premissas básicas do devido processo legal, com as consequentes garantias da ampla defesa e do contraditório.

De acordo com o artigo 5º, LV da Constituição, existe um processo administrativo contencioso, não deixando qualquer dúvida sobre a matéria. Nesta acepção, o litígio significa aquela controvérsia que acaba por colocar em campos opostos os beneficiários e o INSS.[3] A disputa gira em torno da prestação previdenciária. O litígio é formado quando o requerimento do benefício é indeferido, ou quando há impugnação de lançamento fiscal, com a devida fundamentação no direito em vigor.

O princípio do devido processo legal está também presente na Administração, visto que é inerente ao Estado Democrático de Direito e ao exercício da cidadania. Significa para as partes o conjunto de garantias que lhe são propiciadas para a tutela de posições jurídicas ante a Administração. Sob o ângulo do poder público consiste na obrigatoriedade de atuar mediante processo em determinadas situações.[4] Como aponta também Habermas, é necessário desenvolver-se o processo administrativo como meio de eficaz atendimento às reivindicações dos cidadãos.[5]

Pela evolução doutrinária do tema, reconhecendo a importância nos dias atuais das lides administrativas, aliada às expressas previsões constitucionais sobre o tema, a conclusão inarredável a que se chega é a que aponta para a necessária e real existência do processo administrativo no direito pátrio, com todas as garantias do devido processo legal, especialmente a ampla defesa.

Estabelecido tais pressupostos, cabe expor um dos princípios de maior relevância do processo administrativo, que é o informalismo, embora frequentemente olvidado. Como a Administração visa à verdade material, e as impugnações e solicitações são, na maioria das vezes, redigidas pelos próprios interessados, não seria razoável exigir-se grande apuro técnico, o que traduziria verdadeira limitação de direitos.

Em virtude do informalismo, pequenas falhas e omissões, que não comprometam a matéria tratada, podem ser corrigidas posteriormente ou, até mesmo, ignoradas. Aliás, se passíveis de omissão sem prejuízo para o processo, deveriam ser eliminadas do mesmo, pois a demanda administrativa deve possuir procedimento o mais singelo possível.

A verdade material ou, segundo Hely Lopes, também conhecida como liberdade na prova, impõe a aceitação de qualquer prova, desde que idônea, em qualquer fase do processo, para permitir a perfeita identificação da realidade dos fatos, ao contrário do processo judicial que, em regra, se restringe à verdade formal, isto é, aos fatos e provas constantes do processo até determinado ponto.

Com este princípio, novas provas no decorrer do processo podem gerar decisões favoráveis ou até mesmo desfavoráveis para o particular. A garantia de defesa nada mais é do que o princípio da ampla defesa e contraditório assegurados pela Constituição, porque um processo no qual o interessado não teve plena ciência de todas as possibilidades de impugnação é irremediavelmente nulo. Não basta a previsão genérica, mas sim a efetiva informação, constante de cartas, notificações, editais etc. Somente assim será assegurada a garantia constitucional do administrado.

Tal atributo, facilmente reconhecido no processo referente aos benefícios previdenciários, ainda encontra escassa acolhida nos processos de custeio, os quais, por influência do processo civil, adotam, atualmente, uma formalidade que contraria totalmente os objetivos da lide administrativa, a qual visa, na melhor medida do possível, resolver conflitos sem a necessidade de demandar o Judiciário.

Tanto a eficácia (alcance do objetivo traçado) como a efetividade (concretização da meta com o menor custo possível) somente serão consagradas a partir do momento em que o processo administrativo previdenciário abrir mão da formalidade exagerada, equivocadamente importada do processo civil, e assumir sua verdadeira vocação de mediadora de conflitos, na busca da melhor solução, de acordo com os preceitos constitucionais.


[1]  Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo, in Série Direito em Foco – Direito Administrativo (Coord.: Valter Shuenquener de Araújo). Niterói: Impetus, 2005, p. 140.

[2]Comentários ao Código de Processo Civil. Rio: Forense. Tomo I, 1974, p. 205.

[3]  BALERA, Wagner. Processo Administrativo Previdenciário – Benefícios. São Paulo: LTr, 1999. Como aponta este mesmo Autor, ao contrário do processo comum, no contencioso administrativo, a instituição previdenciária não se situa em situação exatamente antagônica ao segurado – esta deve buscar também a verdade material, no sentido da adequação da demanda do segurado ao direito vigente, ou não. Somente assim poderá atingir sua finalidade que é a justiça social. E por isso força reconhecer que, nos domínios da jurisdição administrativa, os princípios processuais estão colocados em termos muito mais amplos e maleáveis do que como foram originariamente formulados pela clássica doutrina processual (p. 138 e seg.).

[4]  MEDAUAR. Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 83.

[5]Faktizität und Geltung, p. 525. Apud Ricardo Lobo Torres, “A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial”, in Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado (org.: Ingo Wolfgang Sarlet). Rio: Renovar, 2003, p. 17.

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