Contas à vista

A recuperação de créditos de ICMS e a dívida pública

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

9 de outubro de 2012, 8h00

Spacca
Tenho a nítida percepção de que a dívida pública brasileira é maior do que a contabilizada e controlada pelos órgãos públicos, tais como a Secretaria do Tesouro Nacional e Tribunais de Contas. Isto decorre de algumas dívidas que não vejo registradas nos documentos disponibilizados pelos entes públicos — salvo pontualíssimas exceções. Destaco três, dentre outras:
a) O valor a ser devolvido pelos estados aos contribuintes que pagaram mais ICMS do que o devido, seja em face de exportação (créditos de ICMS-Exportação), seja em face de Substituição Tributária praticada a maior.

b) O valor a ser devolvido aos litigantes que efetuaram depósitos judiciais. A União pode utilizar integralmente e estados e municípios até 70% do montante depositado. Ora, se o litigante vencer a demanda, o valor utilizado lhe deverá ser devolvido. Logo, se trata de uma espécie de “adiantamento” ou de “empréstimo” que o particular faz ao Poder Público, dependente de decisão judicial.

c) O valor dos precatórios devidos e não pagos, anteriores a 5 de maio de 2000, data da publicação da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que passou a obrigar seu registro como dívida pública. A Resolução 40/2001 do Senado Federal criou uma distinção que jamais existiu na LRF, qual seja, a divisão do estoque da dívida pública com precatórios em antes e depois de 5 de maio de 2000. Logo, para fins de apuração do endividamento, o valor anterior à LRF não é computado.[1]

Estou convencido que a LRF focou nas dívidas financeiras, não dando tanta importância a estas outras dívidas, que se acumulam no quotidiano e não estão sendo devidamente contabilizadas. Não se há de esquecer que o “estoque de dívida” é muito importante para os estados e municípios, pois se caracterizam como um limite para novos endividamentos. Foi divulgado esta semana que a União autorizou o estado de São Paulo a aumentar seu endividamento financeiro em mais R$ 10 bilhões. O argumento é que a dívida pública paulista era de 2,27 vezes sua Receita Corrente Líquida e foi reduzida para 1,44. Duvido que os milhares de credores de precatórios paulistas subscrevam esta análise contábil — segundo estimativas da OAB-SP a dívida de SP com precatórios chegou em 2012 a mais de R$ 18 bilhões. É claro que o estado de SP financia seu desenvolvimento à custa do descumprimento de ordens judiciais.

Poderia discorrer sobre os três itens acima, mas isso demandaria texto demais para um só artigo, motivo pelo qual neste tratarei apenas de como o contribuinte pode recuperar o valor que os Estados devem de ICMS em face da exportação. Dos demais temas tratarei posteriormente.

A Constituição Federal de 1988 originalmente outorgava aos estados-membros a possibilidade de, “nos termos de lei complementar”, tributar a exportação de mercadorias através do ICMS.

Tratava-se de um erro, pois as questões envolvendo exportação dizem respeito ao balanço de pagamentos, às relações de comércio exterior, que só devem ser tributadas em face de aspectos regulatórios pelo Estado Nacional, jamais pelos entes subnacionais. No Brasil atual, compete à União estabelecer o Imposto de Exportação, com finalidade eminentemente extrafiscal. Deixar a possibilidade de os estados-membros criarem uma incidência tributária sobre bens exportados foi um erro crasso de nossa Carta, felizmente consertado após muito debate jurídico, judicial e político — mas não de forma plena, pois até os dias atuais permanecem efeitos deletérios daquele erro original.

O “conserto” veio com a Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir), no artigo 3º, II, que afastou a incidência do ICMS sobre as exportações. Porém, por ser um imposto plurifásico, era necessário também afastar as incidências anteriores para que realmente houvesse a desoneração das exportações. Fazer apenas na ponta final do processo não afastaria integralmente o custo fiscal, pois os créditos de ICMS utilizados na aquisição dos insumos não seriam recuperados uma vez que a etapa seguinte estava desonerada.

A possibilidade de aproveitamento dos créditos anteriores de ICMS consta do artigo 21, parágrafo 2º e, em especial, do artigo 25, parágrafo 1º, da Lei Kandir, que permitiu que os saldos credores de ICMS fossem: “I — imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado; II — havendo saldo remanescente, transferidos pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, mediante a emissão pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito”. Esta matéria foi constitucionalizada pela Emenda 42/03, que alterou o artigo 155, parágrafo 2º, X.

Observe-se que nesta situação os polos ativo e passivo da relação de crédito se invertem, pois o Estado passa a ser devedor, e o contribuinte se torna credor. Logo, é o inverso de uma relação tributária, caracterizando-se como uma obrigação financeira do Estado para com o particular.

Duas possibilidades se abrem nesta relação em face do artigo 25, parágrafo 1º, da LC 87/96: (I) O Estado é obrigado a acatar a imputação dos saldos credores de ICMS realizada pelo credor privado a qualquer estabelecimento seu no Estado (podendo contestar eventual incorreção de valores). Ou ainda, (II) na hipótese de haver saldo remanescente – e apenas nesta hipótese — o credor privado (originalmente sujeito passivo da obrigação tributária) poderá transferir estes valores a outros contribuintes do mesmo estado.

Neste segundo caso (II), a norma exige que o estado (devedor) emita um documento que reconheça (declare) a dívida pública para com aquele credor privado, a fim de permitir a cartularização do crédito — nada além disso. Não se trata de um documento que tenha caráter constitutivo, mas meramente declaratório, pois o débito do estado para com o credor privado já está constituído em face da existência de saldos credores acumulados.

Fazendo um paralelo com as normas tributárias, esta apuração dos saldos credores equivaleria ao lançamento por declaração, onde o contribuinte informa ao Fisco os dados solicitados e este procede ao lançamento — só então o contribuinte estará obrigado ao pagamento. Haveria uma espécie de “fiscalização prévia” por parte do Fisco neste tipo de lançamento.

Ocorre que, como é de todos sabido, o lançamento por declaração, que era predominante até meados dos anos 80 do século passado, tornou-se peça de museu, em face da adoção rotineira do lançamento por homologação, ou autolançamento, onde o contribuinte apura e paga o tributo, pendente de atuação do Estado (fiscalização ou homologação, mesmo que tácita) posterior ao lançamento. Isto ocorreu porque o Fisco não possuía pessoas e tecnologia suficiente para fazer este procedimento prévio à arrecadação. Por este motivo, pouco a pouco, a sistemática foi sendo alterada, obrigando o contribuinte a pagar primeiro e depois aguardar o procedimento fiscal. Portanto, o que era ”por declaração” tornou-se “por homologação”. Recordemos que, em ambos os casos, o lançamento não constitui o crédito, apenas o declara, pois este é preexistente àquele. A obrigação tributária surge com a ocorrência do fato gerador e o crédito se materializa (torna-se cártula) com o lançamento — são velhas lições que devem ser retomadas.

No caso em tela, de devolução do valor pelo estado ao credor-exportador, a situação é semelhante. O estado, mediante a emissão deste documento, apenas declarará a existência do saldo de crédito, jamais o constituirá. O saldo de crédito é preexistente e decorre das operações anteriores à exportação. A função deste documento será apenas de cartularizar o crédito que o credor privado possui contra o Fisco, recebível através de dinheiro ou de compensação, que pode ser negociada com terceiros.

Assim, sendo pré-existente o crédito, a função do estado ao “emitir o documento que reconheça o crédito” é apenas a de transformá-lo em cártula, a fim de facilitar sua comercialização e, principalmente, realizar os devidos registros contábeis. Afinal, na hipótese do inciso II, haverá uma compra e venda, que será registrada contabilmente entre as partes privadas envolvidas, e este documento facilitará tal procedimento.

Mas, será este documento fiscal imprescindível para a realização desta operação de compra e venda de créditos? Se o estado não expedir ou retardar a emissão desse documento (que tem caráter declaratório) o credor/contribuinte não poderá vender estes créditos? Trata-se de um elemento essencial ao reconhecimento do crédito?

Entendo que não. O estado não pode se eximir ou retardar indefinidamente (o que, na prática, produz o mesmo resultado) a emissão deste documento. Pode até discutir se o valor está ou não adequado, se foi apurado de forma correta jamais se negar ou protelar sua expedição.

A base jurídica para contestar esta inação do estado tem alguns caminhos, dentre eles o Princípio da Razoável Duração do Processo, (inciso LXXVIII, art. 5º, CF)[2].

Alguns credores/contribuintes tem buscado o amparo direto junto ao Poder Judiciário para obter o direito de transferir seus saldos credores acumulados em caso de exportação, argumentando ser o artigo 25, parágrafo 1º, da LC 87/96 uma norma autoaplicável. O leading case foi favorável aos contribuintes e decorre de uma ação proposta contra o Estado do Pará, que não reconhecia o direito das empresas a transferir os créditos de exportação (RMS 13.544/PA, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 19/11/2002, DJ 02/06/2003)[3]. Outros estados já tiveram seu procedimento contestado, tal como o Rio Grande do Sul e o Maranhão.

O problema que remanesce é: como dar agilidade à cartularização dos créditos acumulados de ICMS na exportação, se é rotina os estados engavetarem os pedidos, retardando a emissão do documento previsto no inciso II do parágrafo 1º do artigo 25 da Lei Complementar 87/96, mesmo sendo meramente declaratório? Explorei algumas alternativas em outro texto[4], mas, em resumo: O credor privado deve pedir ao Poder Judiciário que supra a omissão administrativa do devedor/Estado, que é meramente declaratória, pendente de posterior fiscalização para averiguar a correção dos valores apurados.

Certamente o Poder Judiciário não se transformará em instância homologatória de valores — não é o seu papel. E também não deve se transformar em escritório de contabilidade. O Judiciário deverá apenas declarar a omissão administrativa do Estado em analisar o pedido de manutenção e aproveitamento dos saldos credores de ICMS, pendente de fiscalização para averiguar a correção dos valores envolvidos. Ou seja, o que é uma etapa prévia a ser cumprida, embora declaratória, se transformará em uma etapa posterior, em caso de duração irrazoável do processo administrativo de reconhecimento dos créditos, com ou sem a intervenção do Poder Judiciário suprindo esta omissão.


[1] Já tratei minuciosamente deste tema em um trabalho publicado com Cesar Seijas de Andrade, intitulado “A dívida pública com precatórios após 10 anos da lrf ou Como a Resolução 40/2001 do Senado caloteou a República”publicado em uma coletânea que organizei juntamente com José Maurício Conti, denominada “Lei de Responsabilidade Fiscal – 10 anos de vigência”, Conceito Editorial, 2012.

[2] Para maior detalhamento recomendo o artigo Duração Razoável do Processo Administrativo Fiscal Federal. Fernando Facury Scaff In: Grandes questões atuais do direito tributário. Coord. Valdir de Oliveira Rocha. 12º volume. São Paulo: Dialética, 2008. P. 116/130.

[3] Faço aqui um registro e uma homenagem ao professor e advogado paraense Aldebaro Klautau Filho, já falecido, que advogou esta questão e de forma pioneira iniciou os debates acerca desse assunto perante o Judiciário.

[4] Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. Editora Dialética, SP, volume 16º, 2012.

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