Vácuo legislativo

Direito de resposta foi sacrificado desnecessariamente

Autor

  • Carolina Scherer Bicca

    é procuradora federal no exercício do cargo de procuradora-chefe do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

4 de outubro de 2012, 13h54

A Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, conhecida como Lei de Imprensa, editada em plena época da ditadura militar no Brasil, e sob a proteção de uma ordem constitucional que foi posteriormente revogada pela Constituição Federal de 1988, regulava a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, tratava dos abusos do seu exercício, tutelando, igualmente, o direito de resposta e a responsabilização civil e penal daqueles que no exercício da liberdade de imprensa violassem direito ou causassem prejuízo a outrem.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 2008, ingressou com Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental visando à declaração de inconstitucionalidade total da lei supracitada, com o objetivo de evitar que determinados dispositivos legais defasados pudessem dar azo a prática de atos lesivos aos preceitos fundamentais assegurados nos incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV do artigo 5º e artigos 220 a 223 da Carta Magna.

Como resultado, a Lei de Imprensa, conforme decidido pela Corte, foi abolida do ordenamento jurídico na sua integralidade, tendo sido declarados inconstitucionais todos os dispositivos que a integravam.

Restou reconhecido, no entanto, não haver óbice de natureza constitucional à regulamentação de matérias reflexas à liberdade de imprensa, tendo, referida decisão, inclusive, enumerado, de forma exemplificativa, o rol destas matérias, que são aquelas elencadas pela própria Constituição, entre elas o direito de resposta.

Apesar desta ressalva, a maioria dos ministros do Supremo optou por retirar do ordenamento jurídico referida lei na sua totalidade, invalidando, inclusive, aqueles dispositivos que tratavam destas matérias.

A Corte, todavia, talvez em face do grande trauma causado pela censura durante a ditadura em nosso país, aboliu a Lei de Imprensa do ordenamento jurídico na sua integralidade, talvez mais pelo caráter simbólico do que jurídico da decisão, pois, se referida norma não ostentasse essa carga negativa, talvez parte dela teria sido preservada.

Na Alemanha, a liberdade de imprensa passou a ser considerada, a partir do julgamento do famoso caso Lüth em 1958,[1] um direito subjetivo fundamental e, ao mesmo tempo, uma garantia institucional, tendo essa ideia, aliás, moldado o direito constitucional alemão no sentido de que: “A garantia constitucional dos direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais são, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’.”[2]

Partindo dessa premissa, Gilmar Mendes conclui que “o caráter institucional da liberdade de imprensa não apenas permite como exige a intervenção legislativa, com o intuito de dar conformação e, assim, conferir efetividade à garantia institucional”.[3]

Importa destacar não se ter dúvida de que muitos dos dispositivos da Lei de Imprensa, por caracterizarem um tipo de censura prévia, não se compatibilizavam com a ordem constitucional vigente, que estabelece como regras essenciais do Estado Democrático de Direito a liberdade de expressão ou da palavra e o acesso do cidadão à informação.

Com efeito, sob o pálio destas regras é que se estipulou que a liberdade de comunicação social não poderá sofrer restrições de qualquer espécie (art. 220 da CF).

Isso não significa, no entanto, que tal garantia é irregulamentável.

Como já dizia Nelson Hungria:
“Liberdade de imprensa é o direito de livre manifestação do pensamento pela imprensa; mas, como todo direito, tem o seu limite lógico na fronteira dos direitos alheios. A ordem jurídica não pode deixar de ser um equilíbrio de interesses: não é possível uma colisão de direitos, autenticamente tais. O exercício de um direito degenera em abuso, e torna-se atividade antijurídica, quando invade a órbita de gravitação do direito alheio. Em quase todo o mundo civilizado, a imprensa, pela relevância dos interesses que se entrechocam com o da liberdade das idéias e opiniões, tem sido objeto de regulamentação especial.[4]

Ademais, o próprio artigo 220 da Constituição Federal não considera a liberdade de comunicação social um direito absoluto, pois determina que o seu exercício deve observar o disposto na Constituição.

E não se pode concluir que por não ter o legislador constituinte contemplado diretamente a possibilidade de intervenção legislativa no tocante à liberdade de comunicação que não seja possível a existência de lei conformando os direitos constitucionais conflitantes.[5]

Nossa crítica repousa no fato de que vários artigos da Lei de Imprensa poderiam ter sido preservados pelo STF, pois não incidiam no núcleo do direito de imprensa, como aqueles dispositivos, por exemplo, que regulavam o direito de resposta (artigos 29 a 36 da Lei).

Ademais, não nos parece que a regulamentação do direito de resposta tivesse aquele viés preconizado pelo Supremo de sufocar o pensamento crítico do país, mas apenas o de inibir o cometimento de abusos, preocupação esta manifestada pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto.

Na ponderação levada à cabo pelo STF entre o direito à liberdade de imprensa e o direito individual à honra e à imagem das pessoas, o primeiro ocupou um lugar de destaque na hierarquia de valores.

A par desta posição adotada pelo Supremo, questiona-se a necessidade de abolição total da Lei de Imprensa, que dispunha de outras questões, as quais, inclusive, conferiam efetividade à garantia institucional da liberdade de informação, na medida em que visavam conter os abusos praticados no seu exercício e garantiam o contraditório, como, por exemplo, aquelas disposições atinentes ao direito de resposta.

De acordo com Alexy, o balanceamento faz parte da aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual é dividido em três sub-princípios, quais sejam: o da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, sendo que ambos expressam a ideia de otimização, no sentido de que “princípios são normas que requerem que algo seja realizado na máxima extensão possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas”[6].

Aplicando-se a tese de Alexy ao caso ora analisado, verifica-se que o julgamento efetuado pelo STF na ADPF 130 foi desproporcional na medida em que para satisfazer a primazia do direito à liberdade de informação, adotara uma medida severa e desnecessária que fora a declaração de inconstitucionalidade da totalidade dos dispositivos da Lei de Imprensa, inclusive daqueles que tratavam de questões reflexas à liberdade de informação, tendo sacrificado de forma injustificada o direito de resposta.

Efetuando-se o balanceamento preconizado pelo autor supracitado, constata-se que, ao invalidar os dispositivos da lei que regulamentavam o direito de resposta, o grau de não-satisfação de tal direito foi enorme, pois aqueles dispositivos garantiam efetividade e agilidade na promoção de tal direito. Ao princípio concorrente, qual seja, o direito à livre informação foi atribuído elevada importância. Ocorre que, a importância de se satisfazer o direito à informação não justificava a restrição imposta ao direito de resposta.

O Supremo, assim, mesmo entendendo que devem ser protegidos, ainda que de forma secundária, os direitos à imagem e à honra, que incidirão posteriormente ao direito à livre manifestação do pensamento, conferiu plenitude a este último, mas enfraqueceu sobremaneira os primeiros, ao não preservar na Lei de Imprensa os dispositivos atinentes ao direito de resposta.

Pode-se dizer, inclusive, que a abolição da regulamentação de tal direito foi contrária ao “princípio da proibição do retrocesso social”, segundo o qual “uma vez concretizada a norma constitucional, o legislador não mais poderia retroceder, revogando a legislação concretizadora”.[7]

A posição adotada pela Corte acabou por gerar um desequilíbrio enorme entre o bloco dos direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa e o bloco dos direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada, que poderiam ser reparados de forma eficaz mediante o direito de resposta. Ainda que se considere, como o fez o Supremo, de que deve haver a precedência do primeiro bloco, incidindo o segundo bloco a posteriori, a medida adotada pela Corte foi extremamente severa, quando não havia necessidade para tanto, configurando-se aí a desproporcionalidade da decisão.

A postura do Supremo ao julgar a ADPF 130, concedeu, na prática, caráter absoluto à liberdade de imprensa e destituiu de instrumentos hábeis de defesa aqueles que tiveram sua honra ou sua imagem lesada em razão do exercício abusivo da imprensa.

A Corte até que se preocupou em ressalvar o direito de resposta, frisando que, em relação a tal direito, não se criou um vacum legislativo, o que a nosso ver não corresponde à realidade.

Com efeito, os ministros entenderam que o inciso V do artigo 5º da Constituição Federal[8], que assegura o direito de resposta proporcional ao agravo e de indenização pelo dano causado, é autoaplicável, sendo desnecessária legislação que o complemente, devendo aplicar-se ao direito de resposta as normas da legislação comum.

Ocorre que as normas comuns existentes, não preveem, por exemplo, a forma como o direito de resposta deve ser exercido, o prazo para atendimento ao direito de resposta e o prazo para que o pedido de resposta seja concedido judicialmente, o que garantiria a plena eficácia de tal direito. Sem isto, tal direito não é exercitável a tempo, só sendo concedido o direito de resposta ao cidadão ou à pessoa jurídica lesada depois de muito tempo, quando, na verdade, o dano à imagem já se perpetuou, só restando a reparação pecuniária, que, em muitos casos, é de somenos importância.

O vácuo legislativo em relação ao direito de resposta, gerado pela decisão adotada pelo STF no julgamento da ADPF 130, poderá ser remediado com a edição de nova lei tratando do assunto.

Recentemente, texto de autoria do senador Roberto Requião foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça, seguindo para votação na Câmara.[9]

Assim, pode ser que com a aprovação de uma nova lei que regulamente o direito de resposta a lacuna existente no ordenamento jurídico seja preenchida.


[1] Lüth havia convocado o público alemão, os donos de casas de cinema e os produtores de filme a boicotarem os filmes produzidos após 1945 por Veit Harlan, pois ele fora o diretor nazista de maior destaque. Lüth referia-se, em especial, ao filme “Jud Suss”, o filme líder da propaganda nazista antissemita. O Tribunal Distrital de Hamburgo decidiu que Lüth deveria deixar de promover qualquer boicote ao novo filme de Harlan, “Amante Imortal” (Unsterbliche Geliebte). O Tribunal fundamentou sua decisão ao afirmar que incitar o boicote a filmes como esse violava o art. 826 do Código Civil Alemão, sendo contrário à política pública. Lüth apresentou uma queixa constitucional contra essa decisão. A corte Constitucional Federal Alemã considerou a incitação ao boicote de Lüth a tais filmes como prima facie protegida pela liberdade de expressão garantida na primeira seção do art. 5º da Lei Fundamental. A segunda seção do art. 5º da Lei Fundamental, no entanto, contém três cláusulas limitadoras da liberdade de expressão garantida na primeira. A primeira delas seria de uma “lei geral”. O Tribunal Constitucional reconheceu que o art. 826 do Código Civil, aplicado pelo Tribunal de Hamburgo, era uma lei geral no sentido da primeira cláusula limitadora, o dispositivo referente à “lei geral” (Decisões da Corte Constitucional Federal, BverfGE, vol. 7, 198, 211f.) A Corte requereu que houvesse um balanceamento ou um sopesamento dos princípios constitucionais colidentes em que a aplicação de regras do Direito Civil poderia limitar um direito constitucional. O resultado do seu balanceamento foi que ao princípio da liberdade de expressão deveria ser dado prioridade sobre considerações constitucionais concorrentes. Ele exigiu que o dispositivo “contra a public policy” do art. 826 do Código Civil Alemão fosse interpretado de acordo com essa prioridade.[2] Alexy, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003 (p. 131-40), p. 132.

[2] Tradução livre para: the constitutional guarantee of individual rights is not simply a guarantee of classical defensive rights of the citizem against the state. The constitutional rights embody, to cite the Federal Constitucional court, “at the same time an objective ordem of values.” ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing, and Rationality. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140, p. 133.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. p. 18.

[4] Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955,  v. VI, p. 261.

[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. p. 19.

[6] Livre tradução para “principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible, given the legal and factual possibilities”. Alexy, Robert. Op. cit. p. 135.

[7] SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 266.

[8] Art. 5º (…)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

[9] Senado aprova lei que regulamenta direito de resposta. Disponível em: http:www.estadao.com.br/noticiais/nacional, Acessado em 14/05/2012.

Autores

  • Brave

    é procuradora federal, no exercício do cargo de procuradora-chefe do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!