Jurisprudência vacilante

Tentar furto em lugar monitorado é crime impossível?

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3 de outubro de 2012, 7h24

Comumente a defesa se depara com denúncias por furto tentado em estabelecimento comercial que, em razão de seu sistema de monitoramento eletrônico e físico, tornaram impossível a consumação do delito. São casos em que o réu subtrai bem de determinado local e, vigiado por câmeras e seguranças, tão logo sai do estabelecimento é detido.

As grandes lojas de departamento são as maiores vítimas deste tipo de crime e, por esta razão, investem em equipamentos de segurança para impossibilitar a prática de pequenos delitos em seu interior. Referidos valores gastos a título de segurança e equipamentos são diluídos nos valores cobrados dos consumidores finais, independentemente do índice de investidas criminosas nos meses subsequentes à instalação. Cabe ao juiz, conforme o caso concreto a ele submetido, decidir se a tentativa do crime de furto em estabelecimento desta natureza, provada a eficiência do sistema de segurança, deve ser punida, ou não.

Diz o Código Penal, em sua parte geral, especificamente em relação ao artigo 17, “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.

Referida opção legislativa é no sentido da adoção da Teoria Objetiva Temperada ou Intermediária. Isso porque, para a configuração da espécie, é necessária a escolha de um meio de execução absolutamente inidôneo ou a constatação de um objeto material absolutamente impróprio. Assim, entendendo o magistrado que o meio escolhido pelo réu para consumar a infração era absolutamente ineficaz pelo sistema de monitoramento e sua pronta intervenção, pode deixar de punir a tentativa e absolver o acusado.

Fica evidente que em determinados casos o denunciado não conseguiria sair do local com os bens da vítima, posto que toda sua movimentação estava sendo observada, desde o início, por pessoas que apenas o aguardavam sair do local para a abordagem. Portanto, o bem jurídico tutelado pelo Estado, a propriedade, nunca esteve em risco, pois a coisa sempre esteve sob completa vigilância da vítima. Tanto é que o delito não se consumou e nem se consumaria em hipótese alguma, já que houve a ineficácia absoluta do meio escolhido.

A matéria não é nova, eis que sempre teve repercussão em nossos Tribunais. Insta relembrar algumas decisões do antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

Inocorre tentativa de furto na hipótese em que o agente desperta a desconfiança dos seguranças do estabelecimento-vítima, permanecendo vigiado, de forma contínua e ininterrupta, pois em nenhum momento o patrimônio esteve desprotegido, não sendo possível ao acusado se apossar dos objetos, eis que o meio empregado foi absolutamente ineficaz, fazendo com que o fato se torne penalmente impunível, nos termos do artigo 17 do CP. (TACRIM-SP – AP. – Rela. Angélica de Almeida – j. 05.08. 1998 – RJTACrim 41/166.

Diz-se crime impossível, ou falha a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto é irremediavelmente inviável a consumação da infração. Mas é mister que a inadequabilidade do objeto ou o meio empregado seja invencível, insuperável, mesmo pelo esforço incomum do agente (TACRIM-SP- AC 348.477 – Rel. Canguçu de Almeida).

Crime impossível é aquele que caracteriza pela ineficácia absoluta do meio utilizado ou pela absoluta impropriedade do objeto, de modo a tornar impossível a concretização do resultado lesivo e, portanto, a consumação do crime (TACRIM-SP – HC – Rel. Marrey Neto – RJD 7/175).

A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 2010, já se posicionou em relação à temática:

DIREITO PENAL. CRIME IMPOSSÍVEL. ABSOLUTA INEFICÁCIA DO MEIO EMPREGADO. “É de se reconhecer a ineficácia absoluta do meio empregado pelo agente de furto cuja ação, no interior de estabelecimento comercial, foi todo o tempo monitorada por agente do fundo de comércio. Assim, ante a impossibilidade de consumação do crime, não se pune a tentativa.” (TJMG – 3ª Câm.Crim – AP 1.0024.06.238598-4/001 – rel.Fortuna Grion – j.27.10.2009 – DOE 11.02.2010)

Da mesma forma o brilhante Aramis Nassif:

A tutela jurídica visa proteger os bens do patrimônio da vítima. Se a res esteve sob a vigilância da “segurança”, que percebeu a ação do suspeito, e a qualquer tempo poderia evitar a prática delituosa, o bem juridicamente tutelado não esteve sob risco de expropriação, tratando-se de crime impossível. A presença do funcionário não é a de testemunhar delitos, mas evitá-los. O crime não envolve apenas a realização típica, mas, também, a superação dos meios defensivos empregados pela vítima, ou que haja relativo sucesso na tentativa de sua consumação. (TARS – Ap. – Rel. Aramis Nassif – j. 12..11.1997 – RT 750/721)

O grande dilema que gira em torno do tema é que há quem pense que não se deve analisar o caso concreto em exame, se o sistema de segurança, para aquele caso, tornou absolutamente impossível a consumação. Mas que se deve analisar abstratamente, ou seja, que todo e qualquer sistema de segurança é falível e, dessa forma, inaplicável para todos os casos desta natureza o crime impossível.

É o que decidiu recentemente a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO. AGENTE VIGIADO POR SEGURANÇA. CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO RECONHECIMENTO. PRECEDENTES.

1. A vigilância eletrônica ou realizada pelo segurança do estabelecimento sobre o agente não ilide, de forma absoluta e eficaz, a consumação do delito de furto, uma vez que existe o risco, ainda que diminuto, de ele lograr êxito na consumação do crime e causar prejuízo à vítima, não havendo se reconhecer o crime impossível.

2. Ordem denegada.

(HC 165.119/RS, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 05/06/2012, DJe 28/06/2012)

Da mesma forma a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. CRIME IMPOSSÍVEL. NÃO RECONHECIMENTO. VIGILÂNCIA ELETRÔNICA. INFALIBILIDADE NÃO EVIDENCIADA. POSSIBILIDADE DE FUGA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

VALOR CONSIDERÁVEL DA RES FURTIVA.

1. Apesar de ter sido constantemente monitorada mediante sistema de vigilância, a paciente não esteve totalmente impedida de obter sucesso na empreitada delitiva. Infalibilidade do sistema de vigilância não evidenciada. Precedentes.

2. O furto de mercadorias no valor de R$ 219,00 (duzentos e dezenove reais) não pode ser considerado ínfimo, de modo que, diante da ausência da mínima ofensividade da ação, é de se afastar a aplicação do princípio da insignificância.

3. Ordem denegada.

(HC 179.433/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/03/2012, DJe 09/04/2012)

Neste julgamento, o relator ministro Sebastião Reis Júnior enfatiza que:

“Corroborando esse entendimento, a jurisprudência desta Corte assevera que a vigilância em estabelecimentos comerciais, realizada por seguranças ou mediante câmaras de vídeo em circuito interno, não torna impossível a consumação do furto. Embora tais elementos tornem dificultosa a consumação do crime, existe margem a que o agente ludibrie a segurança e conclua o seu intento (HC n. 208.958/SP, Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, DJe 17/8/2011).

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal segue no mesmo sentido do Superior Tribunal de Justiça (HC 107.577/MG – 1.ª Turma/STF – rel. Min. Carmen Lúcia). Da mesma maneira, a 2ª Turma do STF (HC HC 104341, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 8.11.2010, e HC 97129, Rel. Min. Eros Grau, DJe 4.6.2010; HC 95613, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 14.8.2009; HC 104105, Rel. Min. Ricardo Lewandoski, Primeira Turma, DJe 4.11.2010).

Contrariamente à aferição abstrata do tema pelo Superior Tribunal de Justiça, o doutrinador Cleber Masson entende que deve ser analisada a existência ou não de crime impossível tornando como base os elementos de determinado caso concreto, afastando a abstração, senão vejamos:

Dá-se a ineficácia absoluta quando o meio de execução utilizado pelo agente é, por sua natureza ou essência, incapaz de produzir o resultado, por mais reiterado que seja seu emprego.

(…)

A inidoneidade do meio deve ser analisada no caso concreto, e jamais em abstrato. O emprego de açúcar no lugar de veneno para matar alguém pode constituir-se em meio absolutamente ineficaz em relação à ampla maioria das pessoas. É capaz, todavia, de eliminar a vida de um diabético, ainda quando ministrado em dose pequena.

(Direito Penal: parte geral. São Paulo: Método. 2009, p. 336)

Ainda que o posicionamento deste defensor público seja na linha da doutrina acima citada, é certo que a matéria aparenta estar pacificada no âmbito dos tribunais superiores, no sentido de aferição abstrata da temática, estando ainda a jurisprudência vacilante no campo dos tribunais de Justiça estaduais.

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